Texto e fotos por Marcelo Costa
Neste exato momento, em algum lugar desta imensa bolotinha azul condenada a extinção, alguém está dizendo: “O rock morreu”. Essa afirmação pode ser tanto fruto de desinformação, preguiça e clichê (quem diz que não existe nada de bom no rock atual e entoa a máxima “bom mesmo eram os velhos tempos” não está vivendo o hoje, mas si existindo em um passado remoto, uma múmia musical) quanto uma extensa teorização sobre como o rock, antes rebelde e provocador, foi assimilado, aceito, customizado e vendido a uma sociedade zumbi, que apenas consome e sorri, e hoje serve mais a uma engrenagem capitalista da indústria cultural vendendo aroma de atitude a rebeldes sem causa com iPhones nas mãos. Neste cenário, dizem, o rap, o afrobeat e o new axé (do BaianaSystem) são muito mais rock em atitude do que o próprio rock. Pausa para uma dose de Jack Daniels. Ui.
No mês em que celebra desde meados dos anos 90 (e apenas no Brasil) o Dia “Mundial” do Rock (período em que as discussões do paragrafo anterior parecem se acirrar), o Centro Cultural São Paulo montou uma programação para calar a boca de fulanos e cicranos, com alguns dos melhores nomes do “rock moderno brasileiro”, segundo palavras do jornalista Alexandre Matias, responsável pela área de música do CCSP em 2017. Com o nome de Centro do Rock, passaram pela mítica Sala Adoniram Barbosa nomes como Rakta (“A melhor banda de rock do Brasil hoje é uma banda de mulheres sem guitarras”, destacava Matias), Garage Fuzz (“Pedra fundamental do hardcore brasileiro”), um show conjunto dos cariocas da Ventre com os paulistas do E a Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante mais Thiago Pethit, Maglore, MQN, o internacional Boogarins, Deaf Kids, Labirinto, Jonnata Doll e Vermes do Limbo, entre outros.
Na quinta-feira, dia 20, quem estava disposto a colocar suas (in)certezas a prova saiu da sala Adoniram Barbosa de alma lavada e ouvidos zunindo. No palco, o duo sergipano The Baggios surgiu em formato quarteto com o guitarrista e vocalista Julio Andrade e o baterista Gabriel Carvalho acompanhados por Rafael Findas no baixo e Felipe Faraco nas teclas, formação que deu muito mais peso e punch ao som do The Baggios, que alcançou a maturidade no pesado e politizado “Brutown”, um dos grandes álbuns nacionais de 2016. Com set list decidido no “feeling” do momento (como confessou Julico depois), o Baggios fez um daqueles shows irrepreensíveis no que o rock tem de melhor: barulho, inconformismo, crítica e força. Para reforçar o que já estava perfeitamente azeitado, a noite ainda contou com as participações de mestre Siba e Tagore.
Se a criação da Arte (com A maiúsculo) muitas vezes é indissociável do tempo / espaço que a abriga (e a influencia), “Brutown” foi gestado num dos momentos mais críticos da jovem democracia brasileira, em particular, e da liberdade como ato político, no mundo. Não à toa, uma das peças chaves (do álbum e do show), “Sangue e Lama“ versa tanto sobre a tragédia de Mariana quanto sobre o atentado ao Bataclan, em Paris: “E nas redes sociais eu lia pessoas discutindo qual tragédia era mais importante, com qual devíamos nos preocupar mais”, provocou Júlio antes de tocar a canção que pede “menos ganância e egoísmo”. Outro grande momento do disco e do show, “Saruê” recebeu apresentação especial: “Essa música poderia se chamar #ForaTemer”, avisou o guitarrista, que foi além. “Hoje ele se chamará #ForaTemer”. Na letra, ataques diretos: “Da lama constrói seu abrigo” / “Seu discurso dilacera”…
A base do show é o álbum “Brutown” com canções como “Estigma” (que no álbum conta com participação de Emmily Barreto, vocalista do Far From Alaska), “Desapracatado”, “Soledad”, “Miquin”, “Como um Tiro de Bacamarte” e a faixa título cravando solos nervosos de guitarra e pancadas certeiras de bateria no ar rarefeito do Centro Cultural de São Paulo, cravado entre a avenida 23 de maio e a Rua Vergueiro. Teclado e baixo deixaram a sonoridade ainda mais compacta e, para os fãs mais antigos (a banda foi formada em São Cristóvão no ano de 2004 e lançou um belo registro em DVD contando sobre seus primeiros 10 anos), vieram “O Azar Me Consome” (do álbum que leva o nome do duo, lançado em 2011) mais “Sem Condição” e “Salomé Me Disse” (do segundo disco, “Sina”, de 2013), que abriram as portas para a fusão de rock com sonoridades nordestinas que movem o excelente “Brutown”.
No quesito participações, a entrada de Siba, que chegou disposto a duelar riffs de guitarra, foi impactante, com o músico recifense entoando “Canoa Furada” com apoio da banda, e depois se rendendo aos versos de “Medo”, outra grande faixa de “Brutown”. Já Tagore foi escalado nos últimos minutos do show e subiu ao palco para encorpar a envenenada versão do Baggios para “Vou Danado Pra Catende”, registrada no tributo “Ainda Há Coração” (2016), lançado pelo Scream & Yell em homenagem a Alceu Valença (download gratuito aqui). Como um trem descarrilhado atropelando a audiência, a grande versão sugeria ser o ponto final da noite, mas ainda entorpecido o público clamou por mais uma, e o Baggios voltou com Julico improvisando o clássico “As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor” no melhor estilo “Toca Raul”, o que por si só já resumia uma noite em que, mais uma vez, ficou nítido que “não importa o sotaque e sim o jeito de fazer” provando que o rock só morreu para quem já está culturalmente morto. Não é o seu caso, caro leitor? Ou é?
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
Acho que nem tanto ao mar nem tanto à terra, Marcelo. Hoje, coincidentemente, numa reunião aqui em casa para discutir o roteiro de um clip para o guitarrista Pio Lobato, falávamos justamente disso. E, por mais que haja algum espasmo aqui e ali, é também um fato que o rock não representa mais efetivamente o que representou para gerações passadas. Inclusive, uma das coisas que dizíamos, entre cerveja e macarronada, é que pouca gente diz hoje ‘sou roqueiro’, como se apresentavam os moleques roqueiros de minha geração. Havia nisso, um sentimento de diferenciação em relação a quem não era. Hoje – e isso tem seu lado bom e seu lado ruim- essa demarcação territorial praticamente não existe (a não ser entre headbangers e alguns punks empedernidos) já que se dizer roqueiro num mundo tão múltiplo nem tem mais tanta razão de ser. Claro que bandas, shows e grandes momentos do rock ainda vão sobreviver (é só assistir a um show do Pearl Jam ou do Wilco para se constatar isso), mas dizer que o rock significa a mesma coisa para o mundo hoje também é mascarar esse momento atual, cada vez mais feito de fugacidades e valores definidos por Balman como de ‘relações líquidas’. Nesse cenário, o rock é cada vez mais como diria Gessinger, feito para vender refrigerante. Ou coisa similar.
Discordo, Ismael. O rock é usado para vender algo desde Elvis, Beatles e Mutantes (“Algo Mais” era uma vinheta da Shell, né), passando por todas as bandas que a gente ama. Mas não é isso que estou discutindo, essa politização do rock, a música como uma bandeira, essas coisas. Até porque o “roqueiro” que gosta de Classic Rock (um gênero que abrange de Pearl Jam e Wilco a Lynyrd Skynyrd a Bruce Springsteen – e sempre vai ter gente desinformada não entendendo a letra de “Born in The USA”) é notadamente despolitizado. Não é essa a questão (inclusive sou um dos que “dizem” que o rap o afrobeat e o new axé do BaianaSystem são muito mais rock em atitude do que o próprio rock), mas sim que o rock como o conhecemos é dado como morto por legistas a torto e direito, só que o que eles estão dando como morto é, muitas vezes, a própria adolescência, aquele tempo que permitia a ele ouvir e ir atrás de música quando agora há fraldas, cartão de ponto e aluguel. O rock, como estilo, está vivíssimo, e essa mostra no CCSP é uma pequena ponta de iceberg (na minha curadoria do Prata da Casa, em 2014, eu fiz um mês com a mesma tag, que exibia quatro bandas de rock de fora de São Paulo para quem achava que o rock havia morrido). Então não há aqui nenhuma tentativa de mascaramento, e sim uma constatação: há uma cenário foda de bandas de rock no Brasil hoje. Quem quiser buscar significados que vá atrás, mas ali, no calor do show, da transpiração e da cerveja quente, a coisa está funcionando, mesmo que muita gente insista em não querer ver.