Texto por Leonardo Vinhas
Fotos por Paulo Capiotti
Somadas suas seis edições anteriores, o festival El Mapa de Todos trouxe nada menos que 96 artistas de 11 países – não só das Américas, mas também de Espanha e Portugal. E embora já houvesse a presença de artistas desses países esporadicamente em um ou outro festival, o El Mapa foi indiscutivelmente o primeiro a tomar a bandeira da integração pela música como sua razão de ser.
Essa história nos traz a sua mais recente edição, a primeira organizada com mais de um ano de intervalo em relação à anterior, e a menor em número de atrações. Em 2016, por questões de orçamento e logística, o festival não ocorreu. Somente agora, em 2, 3 e 4 de maio de 2017 (antes acontecia em novembro ou dezembro), que a sétima edição ganhou vida, com sete artistas (houve anos em que chegaram a ser 17) pinçadas de Brasil, Colômbia e Uruguai (e México, se você contar que dois integrantes da Francisco el Hombre nasceram no país norte-americano). Apesar das dificuldades – ou até por causa delas – a organização decidiu apostar no fortalecimento de sua proposta. “Um festival só passa a existir depois de sua quinta edição”, diz Fernando Rosa, o idealizador do El Mapa. “Até então, é tentativa e erro até acertar”.
O secular Theatro São Pedro (fundado em 1858!), no centro de Porto Alegre, foi o palco de todas as noites do festival em 2017, e em sua escolha residem dois diferenciais repetidamente defendidos por Rosa: o primeiro é a concentração de todos os shows em um só lugar, o que evita a dispersão de público que fatalmente ocorreu nas duas últimas edições, que se dividiram em diferentes locações; e a escolha por um lugar onde a música é o único objetivo possível.
“Já tem muito evento que traz opções de oficinas, comidas, diversões e outras artes, tudo junto. E é bom que exista essa diversidade. Mas nosso foco é totalmente a audição de música”, explica Rosa. E de fato, o objetivo é cumprido: mesmo nos momentos mais explosivos, viu-se uma compenetração por parte do público que não seria possível em outro lugar que não um teatro.
A primeira noite foi a mais intensa e mais emblemática. Isso porque a Francisco el Hombre é indubitavelmente “a cara da integração latino-americana”, como diz Fernando Rosa. E isso não é exatamente porque é uma banda formada por brasileiros e mexicanos, mas principalmente porque sua música congrega elementos do Brasil, do México e da América do Sul em tão grande profusão que fica difícil enxergar limites entre eles. E honestamente, limites para que?
A banda – que tem feito uma média de 15 shows por mês – comprovou seu poder de convocatória garantindo a lotação total do Theatro São Pedro (640 pessoas) e ainda deixando gente de fora. E o estado de comunhão que se gerou entre eles e seu público foi algo para ficar na história do El Mapa e até mesmo dos palcos porto-alegrenses.
Os presentes só não invadiram o palco porque a organização, temerosa que algo assim acontecesse (como tinha acontecido em 2015 no show do Onda Vaga no Salão de Atos da UFRGS), pediu encarecidamente que não o fizessem antes do show. Isso, porém (e felizmente), não impediu que as pessoas dançassem praticamente sem pausa entre as fileiras de assentos, se esgoelando nas canções que já têm status de hit underground, como “Bolso Nada”, “Tá com Dólar, Tá com Deus” e “Calor da Rua” – essa com citação de “Meu Maracatu Pesa Uma Tonelada”, da Nação Zumbi.
Aliás, ecos de Chico Science (e não a Nação Zumbi atual) e Novos Baianos podem ser identificados no som, especialmente no poder percussivo e na leitura mais roqueira da música brasileira. Porém, se é para buscar um referencial, é mais adequado recorrer ao Mano Negra, devido à alternância e combinação de vozes (da percussionista Juliana Strassacapa, do baterista Sebastián Piracés-Ugarte e de seu irmão, o violonista Mateo), à energia bruta dos integrantes no palco e pela proposta que condensa, em som e discurso, uma vida sem fronteiras étnicas ou nacionais.
É incrível ver como evoluíram de uma banda de músicos de rua para a artilharia rítmica que são hoje. Não só a sonoridade cresceu, mas também a performance, em especial a figura andrógina e hipnótica de Mateo. Mas todos os cinco (fazem parte ainda o guitarrista Andrei Martinez Kozyreff e o baixista Rafael Gomes) têm seu lugar no palco – que aliás, é montado com todos no mesmo nível e na mesma linha horizontal, bateria ao centro.
“Triste, Louca ou Má” foi o único momento de descanso rítmico, mas não emocional. Numa versão ainda mais climática que a de estúdio, contaram com a participação da gaúcha Lara Rossato, dividindo as vozes e os olhares com Juliana Strassacapa. Teve muito olho marejado (inclusive das duas cantoras), reação condizente com a forte declaração da canção (“Um homem não te define / sua casa não te define / sua carne não te define / você é seu próprio lar”). Daria para descrever outros momentos de emoção, como a catarse provocada pela mudança na letra de “Não Vou Descansar” (“Não vou descansar / até o Temer derrubar”), o choque causado em alguns dos cascudos e conservadores roqueiros porto-alegrenses ou os muitos presentes de cabelos brancos (de ambos os sexos) que mostravam vigor e sorriso de moleque durante toda a hora e vinte de show. Mas isso seriam apenas retratos de uma paisagem maior. O fato é que Francisco el Hombre é um fenômeno, e se nada interromper esse caminho, não tardará a fazerem história no panorama cultural brasileiro.
Antes deles, a caxiense Yangos entregou sua sonoridade inspirada em gêneros tradicionais dos pampas, só que filtrada por energia roqueira. O veterano jornalista argentino Claudio Kleiman, da Rolling Stone de seu país, definiu tal sonoridade como “power folklore” (ou “power folk”, para simplificar) – um rótulo bastante justo. A estampa gaudéria do quarteto demorou a se dissolver na percepção da plateia, já que começaram um pouco mais contidos que de hábito. Mas já na quarta música o pianista Cesar Casara estava com seus habituais remelexos tal qual um Flea do piano, e os antes pacíficos Tomás Savaris (violão) e Rafael Scopel (acordeão – ou gaita, dependendo de onde tu vives) se mostraram soltos como nunca, com entrosamento superior à muita dupla de guitarras do metal por aí (não por acaso, gravaram há pouco uma versão de “The Trooper”, do Iron Maiden). O percussionista Cristiano Klein, por sua vez, não sabe parar quieto mesmo, e já estava desde a primeira canção tirando timbres quase de acid jazz à charrua em seu bombo leguero.
Em teatro, aparecem mais claramente as nuances da música da Yangos, e é interessante que isso aconteça sem tirar a força bruta que diferencia seu trabalho de qualquer outra coisa que use elementos de milonga, chamamé e murga. Trazendo no repertório muitas composições do novo álbum, “Chamamé” (a ser lançado no final de maio), conseguiram cativar o público que havia ido lá para ver a atração principal. Ainda que não tenha sido uma apresentação tão brutal quanto costumam fazer em palcos menos formais, foi igualmente consagradora.
Já o dia 3 trouxe uma mudança radical de tom ao palco do El Mapa. A gaúcha Carmen Correa e o uruguaio Daniel Drexler se apresentaram cada qual sem banda, e isso trouxe resultados diferentes para ambos.
Para Carmen, que lançou no fim do ano passado o excelente álbum “Do Outro Lado”, a situação foi algo ambígua. Por um lado, o formato minimalista destacou sua voz, de uma gravidade ímpar, que em nada lembra o triste padrão repetitivo que se consagrou na MPB. Por outro, a sonoridade, completada por loops de violão e percussão criados na hora por seu parceiro de palco Gabriel Sá, despiu as canções de boa parte de sua força. “Tivemos que escolher um formato que nos permitisse circular mais”, explicou a moça. É justificável, mas realmente é uma pena deixar de lado os arranjos tão bem montados.
Carmen tem carisma e uma postura meio deslocada com o palco que até funciona como charme. Mas em alguns momentos ela parecia realmente atrapalhada com a dinâmica do show, desconfortável com o senta-e-levanta que ela mesma concebeu. Esse “estranhamento”, e a notável preocupação de Gabriel com a construção dos loops, engessam um pouco o formato. Assim, o show resulta interessante, mas com uma inegável sensação de que poderia ter sido melhor. Mais solto.
Já no caso do irmão menos famoso do clã Drexler a ausência de banda foi benéfica. O som de Daniel é bastante decalcado de seu irmão Jorge, especialmente em algumas construções líricas, e não traz o vigor mostrado por seu outro irmão, Diego. Porem, munido apenas de um belíssimo violão Yamaha e uma boa escolha de timbres, Daniel conseguiu revelar um carisma e um apelo pop que não aparecem em suas versões de estúdio.
Drexler toca com frequência em Porto Alegre, e formou um público local fiel. Mesmo sem ter esgotado as entradas, atraiu uma plateia mais que respeitável para uma quarta-feira. Com um desenho precioso de iluminação e com a comunicação em português fluente, manteve a atenção desse mesmo público durante os quase 90 minutos de seu show. Porém, tivesse sido menos e a impressão final teria sido melhor para um convertido – ou mesmo para os fãs, já que o bis não foi assim desesperadamente solicitado… Uma hora só de violão e voz deixou uma alternância de simpatia e sono, aqui e ali. De qualquer forma, despido dos arranjos sem graça do estúdio, a música de Daniel Drexler mostra-se bem mais acessível que em estúdio.
O rapper pelotense Zudizilla abriu a última noite do festival, e fez história por ter sido o primeiro show de rap realizado no Theatro São Pedro. E não dá para destacar muito mais que isso. Apesar do notável bom gosto dos samples tirados pelo DJ Micha, o som não escapava das fórmulas do gênero, repetindo clichê atrás de clichê – não só na estrutura das canções, mas também no discurso. O populismo de palco (“Vamo fazê barulhoooooooo”, repetido à exaustão), sua insistência em lembrar que o rap é “marginalizado” e que “tem que ser aceito” deram certo com o público naquele momento, mas é um trabalho ainda bastante imaturo e incipiente.
O oposto pode ser dito do Romperayo, um quarteto colombiano que pega os estilos musicais de seu país, do Pacífico e do Atlântico (sim, cada litoral tem sua tradição), e os transforma em uma música solta e vibrante. Vallenato, mapalé, cumbia, zouk e outros passam por uma concepção muito particular da psicodelia e disparam numa locomotiva dançante conduzida pelo monstruoso baterista Pedro Ojeda (que também integra Los Pirañas, Frente Cumbiero, Meridian Brothers e outras muitas bandas). Sua maneira de tocar levaria um desavisado a pensar que tem pelo menos dois percussionistas a acompanhá-lo. Mas não: é só que o magrão, com um visual de Nick Cave desencanado e tropical, é um dos melhores bateristas do mundo. Se fizéssemos com nossa vida o que ele faz com seu kit percussivo, o mundo seria um lugar muito melhor.
Os timbres da guitarra do francês Guillo Cros passam longe da obviedade (em alguns momentos, sequer soam como guitarra), Jhon Socha (baixo) e Juan Manuel Toro (sampler e efeitos) criam o trilho para a tal locomotiva passar, enchendo a paisagens de detalhes divertidos. Aliás, o humor é essencial para a banda que, mesmo instrumental na maior parte do tempo, capricha em títulos como “Que Viva la Vida y Muera la Muerte” ou “Alegría por um Zumo de Naranja con Panela”. E o comando de Pedro Ojeda com a plateia é notável – já na terceira faixa, interrompeu uma música ainda na introdução para dizer que havia algo errado. “Vocês estão sentados!”, apontou, e logo o público estava em pé e dançando atrás dos assentos (ou entre eles). Dançou quem sabia e quem não sabia – se a música da banda é livre, por que os movimentos do corpo não seriam? Show de deixar sorriso na cara de todo mundo.
A alegria tomaria outra forma durante o show do Boogarins. Anunciada pela organização como “a banda brasileira que mais circula no exterior”, os goianos comprovaram seu status de banda de culto junto ao público gaúcho, que cantou junto suas canções, mesmo que a maioria delas tenha estrutura e fonética bem pouco convencionais (uma exceção mais assimilável, “6000 Dias”, foi recebida como gol em final de Copa do Mundo). Ao vivo, estão mais intensos e menos ruidosos do que em seus primeiros anos (2013-2015). Há ainda momentos excessivamente “quebrados” – algumas passagens tão cheias de efeitos, dissonâncias e “uóuóuóns” que ficava difícil para um “não-devoto” manter a atenção. Porém, esses não tomam grande importância diante da força coesa criada pela bateria de Ynaiã Benthroldo e a guitarra de Benke Ferraz. Dinho Almeida usa a voz como um instrumento, intensificando as tramas dos companheiros, ou criando choque entre elas, e o baixo de Raphael Vaz adota semelhante alternância. O “produto externo bruto” disso tudo é um show que não segue nenhum padrão identificável, e que mesmo não agradando a todos, recupera o bom nome e o sentido real da expressão “música psicodélica”. Encerraram o show com uma versão estendida de “Lucifernandis”, que dedicaram a Pedro Souto, baixista brasilense (das bandas Almirante Shiva, Judas e Cassino Supernova), falecido naquele mesmo dia.
Ainda que mais breve, a sétima edição do El Mapa de Todos apresentou uma proposta de formato mais que satisfatória para público, organização e crítica. A missão de integrar as linguagens do continente segue vigente, ainda que seja justo torcer para que as novas edições ocorram em tempos menos bicudos no país, para que caibam mais convidados dos países latino-americanos, como costumava ser. Na verdade, esse é o grande diferencial do El Mapa: mesmo que com acertos e erros, cada edição termina deixando a forte sensação de que um mundo menos sisudo e menos preconceituoso é possível. Nunca é pouco, mas é especialmente valioso nos dias atuais.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
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