Cinema: “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch, é para entender e admirar

texto por Marcelo Costa

Oscar 2002. Whoopi Goldberg apresentava a cerimônia e ia encaixando aqui e ali suas piadinhas. Numa dessas, Goldberg solta: “Eu entendo tudo! A única coisa que eu não consegui entender foi ‘Mulholland Drive’. Era para entender?”, risos gerais da platéia. A pergunta em questão era direcionada para David Lynch, responsável pelo filme e, ali, concorrendo ao Oscar de Melhor Diretor.

David Lynch é, com toda certeza, o diretor mais estranho a andar pelos estúdios de Hollywood pois tem fascínio por histórias que beiram o bizarro, mas, vez por outra, esbarra no cinema humanista (“História Real”, 1999), no tocante (“O Homem Elefante”, 1980) e no suspense (o primoroso “Veludo Azul”, de 1986, e a série “Twin Peaks”, 1990/1991).

“Mulholland Drive”, seu novo longa (no Brasil, “Cidade dos Sonhos”) é uma mistura de tudo isso. É cinema humanista (quer coisa mais humana que filmar o amor?), tocante (“Crying”, imortalizada na voz do destruidor de corações Roy Orbison, ganha uma dolorida versão em espanhol) e suspense dos bons. Tudo isso batido no liquidificador e jogado na tela sem ordem aparente, com várias pequenas dicas que, ao final, parecem não levar a nada, beirando o estranho e abrindo margens para mil e um entendimentos.

Resumo? Hummm, o próprio Lynch diz que é uma história de amor na cidade dos sonhos. Mas, verifico, amor e sonho se confundem a todo o momento, principalmente na cabeça dos apaixonados. Não é sempre assim?

“Cidade dos Sonhos” começa com um acidente na auto-estrada (uma estrada perdida?) que Michael Stipe canta em “Electrolite”, faixa derradeira de “New Adventures in Hi-fi”, do R.E.M.: a Mulholland Drive.

O violento acidente de carro, por mais bizarro que pareça, salva a vida de uma garota (a bela Laura Harring), morena, linda, que se perde pelas ruas da cidade até encontrar uma casa, para dormir. O acidente afeta a memória da garota que, simplesmente não lembra quem é e nem porque carrega uma pequena fortuna dentro da bolsa. Para não parecer maluca, ela decide assumir o nome de Rita (após ver um pôster de “Gilda” com Rita Hayworth na parede). E é assim que ela se apresenta a Betty (Naomi Watts), sobrinha da dona da casa que foi invadida por Rita, em sua busca por um lugar para descansar após o acidente. Betty acaba de chegar a Los Angeles, a Cidade dos Sonhos, e chega com todos os sonhos que levam aspirantes a atrizes à capital do cinema mundial.

Betty acaba tornando-se amiga de Rita e procura auxiliá-la em sua busca pela memória perdida. Tudo nos trilhos até aqui, certo? Possivelmente errado. Toda primeira hora da trama surge, aparentemente, como um sonho. Na hora final, após sermos apresentados a um diretor de cinema em fase de testes para seu novo filme e que se vê obrigado, pela máfia, a ceder o papel principal para um atriz indicada pelos mafiosos, a um cowboy e uma misteriosa caixinha azul, a um restaurante e cinzeiros, anões, monstros, copos e um teatro chamado “Silêncio” (em espanhol mesmo), tudo parece inversamente o que era, em uma obra que traduz a dualidade confundível do real/irreal (aqui, amparada na beleza de duas mulheres: uma loira e uma morena).

Lynch brinca com o espectador. A memória acostumada a preencher vácuos de uma história de suspense perde-se totalmente na riqueza de detalhes que, por vezes, parece não significar nada. Alguns, todavia, se sobressaltam. O principal é seu título: Mulholland Drive, a tal auto-estrada que nomeia o filme, é zona residencial de astros de Hollywood tanto quanto zona de suicidas, de gente que sonhou alto demais com a fama e o sonho tornou-se pesadelo.

Michael Stipe canta em “Electrolite”, na primeira estrofe do refrão: “Se você quiser voar/ Mulholland Drive / eu estou vivo / com Hollywood abaixo de mim / eu sou Martin Sheen / sou Steve McQueen / sou James Dean”. A segunda estrofe é ainda mais esclarecedora sobre a estrada: “Se você quiser voar / Mulholland Drive / suspensa no céu / vá à beirada do despenhadeiro e olhe lá para baixo / não tenha medo / você está vivo.” Suicidas não tem medo, talvez apenas da vida após a morte, mas e se aos mortos for concedido o prazer dos sonhos?

Seguindo essa ótica (das várias possíveis), Lynch aproxima-se de Billy Wilder e seu “Sunset Boulevard” (“Crepúsculo dos Deuses”, 1950) na tentativa de desmistificar a idolatria hollywoodiana. E se no filme de Wilder o personagem relembrava histórias após a morte, aqui Lynch vai além permitindo que seu personagem, morto, sonhe. Genialidade absurda. Real ou irreal? Cada um escolhe como quer lembrar das coisas, isso é inevitável.

A estrada é objeto de culto e análise de muitos: Nabukov já escreveu em um poema que “por baixo de Mulholland há corpos enterrados” enquanto o ensaísta David Thomson dizia que quem trafega na estrada, que tem de um lado as montanhas de Santa Mônica e, de outro, permite avistar-se o Hollywood Bowl, o letreiro HOLLYWOOD e, olhando para baixo, os arranha-céus da Baixa LA, ou é aventureiro ou é suicida. Um território real/irreal onde convivem vivos em suas mansões (o próprio Michael Stipe e Courtney Love, Marlon Brando, Jack Nicholson, entre outros) e mortos em suas histórias (foi lá que Charles Manson abrigou sua seita e que vários artistas optaram pela saída suicida).

Se encararmos o filme como um retrato de dualidades (morena x loiras – irreal x real – sonhos x pesadelos – lógica x imaginação) e dividirmos o filme em dois – em sonho e realidade – podemos perceber que a loira, Betty, sorri apenas no primeiro (sonho) e no segundo é apenas uma sombra escura masturbando-se entre lágrimas. Rita, por sua vez, é conduzida na primeira parte em que, sem memória, apóia-se inocentemente em Betty (outra vez o sonho). Na segunda, quando tudo parece voltar ao real, Rita – que já não é mais Rita, encharca seu personagem de libido e um q de arrogância passando a conduzir Betty. O amor impossível brindado em copos de vinho a beira de uma piscina em uma mansão acima da estrada.

David Lynch levou o prêmio pela direção em Cannes e foi indicado também ao Globo de Ouro e ao Oscar. No Globo de Ouro, “Cidade dos Sonhos” ainda foi indicado para roteiro, filme drama e melhor trilha sonora.

Lírico até não poder mais, num apoio cinematográfico de duas belas mulheres se amando (aliás, apenas uma delas diz “eu amo você”. A recíproca não surge), Lynch preenche com confusões/perversões sua obra. O resultado é esquizofrênico, enigmático, surpreendente e… genial?!?! A certa altura da trama, um dos personagens diz: “É tudo ilusão”. Mas ninguém vai entender nada. E é para se entender?

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.

Dez dicas para se entender “Mulholland Drive”
por David Lynch

Em um texto especial para o jornal inglês The Guardian, o diretor David Lynch, também autor do roteiro, elaborou dez pistas sobre Cidade dos Sonhos. Anote num papel, decore direitinho e divirta-se.

1) No começo do filme, antes dos créditos, duas pistas são reveladas.

2) Fique atento para o que está escrito no luminoso vermelho.

3) Qual o título do filme, para qual o personagem Adam Kesher está realizando teste de elenco? Ele será mencionado mais uma vez durante CIDADE DOS SONHOS?

4) O acidente é um importante acontecimento em CIDADE DOS SONHOS. Onde ele acontece?

5) Quem entrega a chave azul e porque?

6) Fique atento para o roupão, o cinzeiro e a caneca de café.

7) Qual mistério é revelado no palco do “Club Silencio”?

8) Somente o talento de Camilla pode ajudá-la?

9) Fique atento para o objeto que está nas mãos do estranho homem que vive perto da lanchonete “Winkie”!

10) Onde está tia Ruth?

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