As alegrias
de ser estrangeiro
por
Flávia Ballve B.
Cantarolando "hoje sou feliz e canto,
só por causa de você", me veio uma idéinha na cabeça:
puxa, como é bom ser estrangeira! Eu nunca cantaria uma música
baiana no trabalho lá no Brasil (a não ser que tivesse acabado
de voltar de Búzios, pro carnaval, e mesmo assim não sei
não). Eu não gosto de música baiana, axé, pagode,
funk, sertanejo, nada disso. Ou não gostava. Ou não me permitia
gostar? Não sei ainda se gosto, acho que não, mas a dúvida
é interessante e me faz sentir muito, muito livre - eu aqui posso
cantar o que eu quiser ("Num rancho fundo, bem pra lá do fim do
mundo…") sem nem prestar atenção no pensamentinho de auto-censura
que começaria a se formar, habituado a estar no Brasil (auto-censura
é uma palhaçada, é apenas uma censura prévia
para evitar a dos outros, mas o objetivo é sempre não sentir
o olhar reprovador do mundo).
E tem várias outras vantagens.
Pra começar, o sotaque: todo mundo se lembra que já falou
comigo, é prático à beça. Eu ligo para uma
loja 3 semanas depois de um primeiro e rápido contato e a pessoa
do outro lado lembra que eu liguei, qual era o meu problema etc. De mais
uma na massa, eu me torno única, exótica, inesquecível.
Tudo isso sem regime! E não dá pra negar o charme de um sotaquezinho.
Eu consigo o que quero, é só dar um risinho e gaguejar um
pouquinho um "como é que se diz isso mesmo?…" com mais sotaque do
que o meu normal, pronto, a pessoa está conquistada, seja homem
ou mulher, criança ou velho ou etc etc. Felicidade suprema pra mim,
que herdei do meu pai (que por sua vez tinha herdado do seu, numa longa
linhagem de tagarelas) o prazer de puxar papo na rua, do nada, só
para fabricar e trocar palavras. Fora a aposta sadiquinha que faço
comigo mesma: quanto tempo essa pessoa vai se aguentar de curiosidade,
antes de sucumbir e perguntar "esse seu sotaque… de onde é?". Delícia,
delícia!
Outra vantagem incomensurável
(eu adoro essa palavra porque ela é muito feia): a liberdade que
vem de ninguém, ou quase, conhecer o Brasil. Por exemplo, eu não
sei cozinhar. Mesmo. Mas às vezes cometo o crime de chamar alguns
amigos franceses pra jantar. E ouço, maravilhada, comentários
do tipo "aahhn, então essa farinha queimada se chama 'farof', é
isso?…". Posso queimar, solar, azedar, entornar, deixar cru o que eu quiser,
pois eu tenho o poder de dizer "é assim mesmo, lá no Brasil"
- que benção! (Claro que às vezes não dá
pra forçar tanto, mas é pra isso que eu trouxe 2 litros de
cachaça do Brasil, né? Só tascar 1 ou 2 caipirinhas
e ninguém percebe mais nada). Se vou para uma boate e começo
a "sambar" - eu, a verdadeira desajeitada, abobada da enchente - logo viro
a sensação do local; e se algum dia aparecer alguém
mais antenado que me diga que nunca viu samba assim, eu sempre tenho a
opção de dizer "ah, mas esse samba que aparece na TV é
só pra turista, o meu é de raiz, o verdadeiro…". Liberdade,
liberdade, abra as asas sobre nós! E o bom também é
que essa frase "no Brasil é assim" funciona pra tudo: dou uma patada
em alguém no trabalho, "desculpa, são diferenças culturais";
discuto com o marido francês, "poxa, me entende, eu venho de outro
país e estou acostumada a fazer isso desse jeito…". Geralmente ganho
(pode ser o sotaque. Ou a cachaça!).
Desvantagens, há algumas também.
Claro, tudo tem dois lados. Ainda mais para uma paranóica de carteirinha
como eu - "o que? a empresa está me pagando só isso? que
absurdo, só porque eu sou brasileira…". Mas até isso vira
vantagem - eu tenho um motivo que me agrada muito mais do que o "eu é
que não estou trabalhando direito". Estar no exterior até
mesmo dos meus próprios defeitos, nada melhor! Todo mundo que ficou
no Brasil de repente me ama mais - ninguém mais convive diariamente
com meus defeitos, todo mundo já esqueceu como eu sou chata e só
lembra do "poxa, a Flávia tinha uma presença de espírito,
né?…". Todo mundo morre de saudades e volta e meia recebo caixinhas
de presentes - uma Veja aqui, um doce de leite ali. Até estar longe
dos amigos e da família vira uma vantagem - acompanho só
os momentos bons, recebo telefonemas surpresa, super gostosos…
Resumindo, na França sou livre,
exótica, única, desculpada de tudo, e ainda por cima POSSO
CANTAR MUSICA SERTANEJA NO TRABALHO! Brasileiros, uni-vos e organizai-vos
- uma vida sem uma experiência como estrangeiro perde a metade da
graça!
Flávia,
diretamente do frio parisiense, anda achando que está recebendo
poucas caixas com Amendoim Agtal (aquele do saquinho azul).
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