Bobalização
por
Flávia Ballve B.
Não, você não
está lendo errado. O Scream & Yell não está publicando
um artigo como os da Exame (não mesmo!). Você sabe, aqueles
artigos que começam com algo do tipo: "Com o advento da globalização
e com as rápidas mudanças do mundo moderno..." Quem nunca
começou um trabalho de faculdade ou uma conversa entre amigos assim,
que atire o primeiro mapa-mundi. Virou lugar comum citar a globalização
em qualquer conversa. Mas será que as pessoas realmente sabem do
que estão falando?
Lemos em todos os lugares: o ritmo
de mudanças está cada vez mais estonteante, o mundo está
menor, o profissional do futuro terá que ser um super-homem blá
blá blá... Até reportagem sobre a crise da família
põe a culpa na globalização. Se no seu discurso você
não jogar essa palavrinha de repente, como quem não quer
nada, então você é um retrógrado que não
acompanha as "estonteantes mudanças do mundo moderno" e por aí
vamos de novo.
A impressão às vezes
é que cada país, cada pessoa, virou um caipira deslumbrado
com as novidades da cidade grande. A diferença é que esta
"cidade grande" está, de uma certa forma, apenas na cabeça
das pessoas. Não estou negando, por exemplo, a interligação
do mercado financeiro mundial - aliás, é curioso ver como
ele se sustenta sobre uma confiança de que não vai quebrar,
porque aquele dinheiro todo não "existe" de verdade - mas sim tentando
me livrar da chateação que é ter que ouvir o tempo
todo "por causa da globalização..." como explicação
para qualquer coisa.
Esse é o meu ponto. Não
é que a globalização não exista ou não
seja importante. O que eu condeno é o fato de as pessoas, em todos
os aspectos das suas vidas, ficarem deslumbradas tentando achar alguma
palavra ou atitude bacaninha para se diferenciarem.
Uma coisa é certa: para cada
um de nós, há hoje informação disponível
sobre mais assuntos. Não que a quantidade de informação
tenha aumentado tanto - é que nunca foi tão fragmentada.
Recebemos pílulas de informação sobre cada pequenino
assunto - do novo namorado da atriz famosa à crise política
do Zimbabwe. Francamente: será que isso tudo importa? Ou será
que buscamos nos manter "informados" assim apenas por medo de ficarmos
para trás?
Ao mesmo tempo que esta angústia
do "não sou bom o bastante" cresce, outros medos aparecem. As pessoas
percebem uma maior competição - justamente porque agora podem
comparar-se com qualquer outro do mundo, devido à tal disponibilidade
dos dados. Publicam-se reportagens sobre médias anuais de relações
sexuais, de cortes de cabelo, de meleca produzida em cada nação;
a estatística é uma feroz rainha e de alguma forma todos
viramos números. Serão estes os 15 minutos de fama que Warhol
previu?
Categorizações são
a nova tônica: não "é" simplesmente, mas sim é
"o mais novo filme de 2 horas de um diretor negro vivendo nos Estado Unidos",
"o acidente com maior número de vítimas menores de 18 anos
da história da aviação comercial da China nos últimos
10 anos". Todos temos que ser mais, melhores, maiores, mesmo que tenhamos
que inventar a categoria. A luta pela sobrevivência é grande.
Sempre temos menos dinheiro e sempre achamos que o outro tem mais. E para
termos certeza de que ainda somos um pouquinho melhores do que alguém,
o que assistimos na televisão? Programas que explorem a miséria
humana como Ratinhos e Leões e coisas do gênero. Vamos rir
da estupidez dos outros que é para disfarçar a nossa.
Transformar qualquer boato em notícia
cria uma sensação de proximidade com qualquer assunto ou
pessoa. Todo mundo se sente íntimo amigo dos artistas de TV. Já
sabemos como é a Austrália sem nunca termos ido lá.
Um produto novo, comprado pela primeira vez, não é nenhuma
novidade, porque já havia sido consumido antes pela TV. É
a hiper-realidade. Viver o que não existe, de uma certa forma, mas
que se torna real a ponto de, mesmo sabendo que não é real,
acreditarmos. Aliado à terrível e inescapável sedução
que os modismos exercem sobre nós, está a insegurança
própria do ser humano de querer ser admirado. O que leva as pessoas
a agir sem pensar, falar sem pensar, nunca pensar. Filhotes da bobalização,
deste sentimento de aceitar o que ouvimos sem tentar criar argumentos novos.
Por causa de falta de tempo para pensarmos
por nós mesmos, e por causa da busca desesperada para não
ser passado para trás, as pessoas se sujeitam a aceitar que as empresas
de mídia selecionem por eles o que deverão ler, ver, pensar.
Mas se esquecem que estas são também empresas que precisam
dar luvro. Afinal, qual o papel da imprensa? E vou além: qual seria
a verdade? Será que cada grupo interessado não teria sua
própria verdade? E não são todas elas então...
verdadeiras? Poder-se-ia usar estas múltiplas verdades para um debate
sério. Interessa a alguém? Busca-se a unanimidade, mais que
isso até, a "carneirice" pura. Preza-se o "preciso ser igual a todos
para não acharem que falhei".
Essa angústia, essa necessidade
de falar besteira só pra poder falar de alguma coisa, essa falta
de vontade de ir além do artificial, o nivelamento por baixo, a
apologia da mediocridade - tudo isso leva as pessoa a caírem na
armadilha que eu chamo de bobalização.
Bobalização é
esta busca desesperada pelo último modismo para não ficar
atrasado. É tentar justificar tudo que acontece com as simplificações
mais bobas. Ninguém pára pra pensar seriamente sobre nada.
É falar como todo mundo fala, concordar com o que todo mundo diz,
porque se não temos tempo nem mesmo para expressar nossa concordância,
que dirá então tempo para estudar e pensar por si próprio.
Quebra de paradigmas tornou-se demodè.
Caindo na bobalização,
as pessoas perdem o foco do que é realmente importante. Há
pouco tempo uma estação de rádio aqui do Rio noticiou,
no boletim de trânsito, que havia um certo congestionamento em uma
dada rua porque havia tido um acidente: "Os corpos das vítimas ainda
estão no local mas não há interrupções
no trânsito". É isso então, pelo jeito. Chegar logo
no trabalho, não perder tempo com engarrafamentos, torna-se maior
do que a morte destas pessoas, que afinal apenas atrapalha o bom e tranqüilo
andamento da civilização. Tudo bem: nada mais há a
ser feito e de fato as pessoas estão mortas e atrapalhando o trânsito.
Mas a forma com que a notícia é dada insinua que corpos de
pais de família ou sacos de batata caídos de um caminhão
atrapalhariam o trânsito igualmente. Nenhum comentário "melhor",
"humano", sobre as mortes; apenas o "morreu, morreu, antes ele do que eu"
presente na incomodação com o trânsito lento.
Acho que não precisava ser
assim, esse deslumbramento todo, essa vontade de ser melhorzinho do que
os outros, essa ânsia de querer passar todo mundo para trás.
As pessoas estão deixando de ver as coisas como elas realmente são.
Um acidente com mortes é um acidente com mortes, algo bem triste,
e não apenas um engarrafamento a mais. Mas não sei. Talvez
eu mesma seja uma vítima da vontade de falar besteira.
Flávia,
25, que perdeu o manual de instrucões de varias coisas da
vida. Texto originalmente publicado no S&Y On paper 3, fev 1999.
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