entrevista de Diego Queijo
Vitor Ramil deixou o frio do Rio Grande do Sul para encarar o calor do planalto central. Com duas apresentações na capital do país, o músico saiu de Pelotas, onde a umidade é de pelo menos 77% ao longo de todo o ano, para destilar seu repertório na desértica Brasília, que na semana passada bateu recorde histórico ao atingir sufocantes 7% de umidade relativa do ar. Na bagagem, a visão da neblina e canções de alguns de seus 12 álbuns. Uma obra que ganhará novos capítulos a partir deste mês, com o lançamento do single “Amar Você”, no dia 26 de setembro, e que antecede o novo trabalho de 15 canções para poemas de Paulo Leminski, ainda sem título divulgado, que será lançado no dia 3 de outubro.
Há alguns anos, ele vem sendo reverenciado por atravessar fronteiras geográficas e culturais. Sua obra dialoga com diferentes tradições, unindo a estética do frio do sul do Brasil ao calor dos aplausos em países como Argentina, Uruguai, Espanha e Portugal. Com raízes familiares espalhadas por esses territórios e uma formação musical que combina influências locais e internacionais, o músico construiu uma carreira marcada pela introspecção e pela experimentação. Tudo mediado por conceitos profundos.
Conhecido por seu pensamento cuidadoso e perfeccionista, Vitor Ramil é um arquiteto de sua própria trajetória musical. Ao longo da carreira, consolidou um conjunto de princípios estéticos inovadores calcados no “rigor, profundidade, clareza, concisão, pureza, leveza e melancolia”, como canta em “Milonga de Sete Cidades”. Vitor criou, ou adaptou, ou impôs um conjunto de regras até então não-escritas, e autoexigentes, para desenvolver o senso das ideias que permeiam álbuns como “Tambong”, “Satolep Sambatown”, “délibáb” e “Campos Neutrais”. Assim, tornou-se um dos grandes expoentes da música brasileira contemporânea, conhecido por sua capacidade de capturar a essência da cultura sulista e traduzi-la em sons e palavras.
De personalidade subtropical, passa longe do inconformista desinibido e espontâneo atrelado aos tropicalistas. Tornou-se um estandarte da imagem do cool (cold) habitante de uma região do Brasil que compartilha costumes, palavras e sons com vizinhos de outros países. Um artista que se mostra em paz com as próprias escolhas. O que resulta na serenidade e na autoconfiança necessárias para refletir, aqui, sobre seu papel na música brasileira e sua conexão com o público.
Consultado sobre a possibilidade de a entrevista ser realizada presencialmente ou por e-mail, Vitor, claro, preferiu a segunda opção. Vitor em seus próprios termos. Sem cronômetro, e com toda a liberdade para pensar e articular as respostas considerando seu tempo próprio e seu próprio tempo, seu momento. O resultado é uma entrevista reveladora em que o músico fala sobre o trânsito entre diferentes culturas, o relançamento do emblemático “Ramilonga”, e a marca indelével que o violão deixou em sua trajetória artística. A conversa passa ainda por sua relação com o palco e o legado de artistas como Belchior, Bob Dylan e Milton Nascimento, revelando um pouco mais da mente por trás de algumas das canções mais introspectivas da música brasileira. O campo neutral onde Vitor Ramil ecoa.
Vitor, em 2022 você participou do Festival Coma, em Brasília, no Clube do Choro (local que também recebeu Paul McCartney). Qual foi sua impressão da cidade e do público?
A melhor possível. Eu tinha chegado em Brasilía todo errado, meio resfriado e mal dormido, vindo da úmida Pelotas, com uma passagem rápida por Floripa para participar de um show do Antonio Zambujo. Estava preocupado. Mas o clima seco e o público grande e caloroso me revigoraram e encheram de ânimo e alegria.
Qual será a base do repertório desses dois shows previstos para setembro em Brasília? Haverá alguma mudança entre um show e outro? Alguma participação especial prevista? Qual a sua expectativa e o que o público pode esperar?
Pretendo fazer um apanhado de canções de vários discos a partir de “Estrela, Estrela”, reunindo canções que goste de cantar e aquelas que o público costuma querer ouvir. Pode haver mudanças de um show para o outro, sim. Não tenho nenhuma participação prevista. O público pode esperar de mim muita vontade de tocar e cantar. Algumas canções não toco há muito tempo. Vou gostar de voltar a elas. Além disso, acabo de gravar um disco novo, o que deixa a gente meio submerso por um tempo, movido a música.
É curioso pensar que Portugal sempre buscou o novo no além mar, mas de costas, geograficamente, para a Espanha. E que aqui na América do Sul, o Brasil também sempre olhou para as referências culturais do além mar (EUA?) tendo nas costas, também geograficamente, os países da América espanhola. Essa relação (ou falta de relação macro) entre países de língua portuguesa e espanhola parece criar algumas barreiras para a produção cultural e para o público majoritário. Entretanto, parece que você consegue transitar entre essas diferentes culturas, sendo reverenciado pela crítica tanto no Brasil como em Portugal, Espanha, Argentina e Uruguai. Qual o desafio para sua obra nesse contexto de expansão de fronteiras e como você vê a percepção do público para além dos críticos?
Para mim não chega a ser um desafio de ordem artística, porque, convivendo com o espanhol como segunda língua em casa, sendo cidadão espanhol e uruguaio além de brasileiro (meu avô era espanhol; meu pai, uruguaio) e tendo tido contato com a cultura de todos esses lugares, tudo se deu sempre de modo muito natural, inevitável mesmo. A percepção de crítica e público acho bem parecida. E em geral me surpreende, não pelo modo como me veem, mas porque algumas coisas que faço repercutem entre eles mais do que seria esperado por mim, considerando que nunca botei energia em ter muito reconhecimento. Em Lisboa, um jornalista muito importante me perguntou qual era a minha explicação para o êxito de “délibáb” (2010). Eu disse que não sabia, porque era um disco metade em espanhol, metade num dialeto gauchesco que mesmo no RS era pouco compreendido. E devolvi a ele a pergunta. Ele então me disse que para eles, em Portugal, “délibab” era como receber notícias de um lugar novo no mundo. Para mim, pensando na estética do frio, no RS como um lugar que não aceito à margem de um centro, mas no centro de uma outra história, foi sensacional ouvir isso. Depois, quando lotamos a enorme sala da Culturgest, em Lisboa, e o público se mostrou emocionado, crítica e público me pareceram muito alinhados.
O clube de assinaturas de discos de vinil da revista Noize trouxe uma edição do álbum “ Ramilonga – A estética do frio” (lançado originalmente em 1997). O que esse relançamento representa para você e para a sua carreira?
Quando preparamos o álbum para este lançamento, confirmei que ele tinha mesmo vocação para o formato, pela quantidade de músicas e até pela ordem original das canções. Apenas tiramos uma faixa e lá estava um álbum que parecia ter sido lançado originalmente em LP. Nessa época em que se começa a desejar manusear de novo um disco, olhar seu encarte, ouvir até o final tendo que virar para o lado B, este lançamento é um prazer. Eu me criei ouvindo LPs e comecei profissionalmente gravando LPs. Até hoje tenho o cacoete do LP na hora de selecionar músicas e definir o roteiro de um álbum. Com o formato LP a gente se ocupa do suporte, do objeto; nos voltamos para a música, botamos nela o foco, tiramos aquele momento para aquela experiência. Streaming é feito para funcionar na dispersão. O LP, para operar a vitrola, sentar e ouvir com atenção. No caso do lançamento pela Noize, houve ainda o engajamento do projeto nas ações de apoio aos artistas afetados pelas inundações no RS. Uma honra pra mim que o “Ramilonga” tenha sido lembrado como emblemático para estar nesse contexto colaborativo.
Alguns álbuns seus já são considerados clássicos, mas há um que acaba sendo pouco lembrado ou mencionado, talvez até subestimado, que é o “Satolep Sambatown” (2007), feito com o percussionista Marcos Suzano. A única faixa do álbum entre as suas 10 mais ouvidas no Spotify, inclusive, é “Viajei”, mas na versão do álbum “Foi no mês que vem”. Qual a sua relação com este trabalho e como você vê ele hoje?
Adoro este disco. Observa que depois dele parei muitos anos de usar baixo elétrico ou acústico nos meus discos. Como no “Satolep Sambatown” éramos só Suzano e eu, meu violão foi para a frente definitivamente. Antes, muito dele sempre se perdia na relação com o baixo, principalmente na hora da mixagem. O violão tendia a ser sacrificado em seus graves, perdia corpo. Depender só do violão me fez evoluir no instrumento, explorá-lo mais e melhor, até porque o Suzano toca percussão e meu violão não é rítmico, está mais mais para atmosférico. Nossas diferenças viraram o conceito do trabalho. “Satolep Sambatown” tem alguma das canções que mais gosto, como “Livro Aberto”, “Astronauta Lírico” ou “12 segundos de oscuridad”, essa com o Jorge Drexler. O Suzano é um músico de gênio e parceiro dos melhores. Muito do que há de modernidade no álbum vem das experiências dele e se consolidaram em meus discos posteriores. Quanto ao uso de baixo, só agora, no álbum que está por ser lançado é que voltei a usar. E radicalizei, fui muito fundo, literalmente, fundo e pesado, usando synth bass de modo a fazer a terra tremer enquanto preservava a integridade dos violões (que a partir de “Campos Neutrais”, de 2017, passei a gravar dobrados). Gosto muito de graves pesados, definidos, breves e rítmicos. Mas quero que tudo o mais soe também, lógico, que ele não ocupe todo o espectro sonoro. Aprender a lidar com os baixos, e mesmo a amá-los, começou no “Satolep Sambatown”, até porque o Suzano senta a marreta.
Queria falar sobre dois artistas que talvez de alguma forma tenham alguma ligação entre si e com você. O primeiro deles é um compositor que não aparece como referência patente na sua obra, que é o Belchior. Belchior nasceu no Nordeste, esteve no topo da MPB em pleno Sudeste, e no fim da vida foi buscar algo no Sul do Brasil. Mais especificamente na fronteira com o Uruguai, com passagens por Jaguarão, Santa Vitória do Palmar e Aceguá (UY), por exemplo. Tanto que morreu no Rio Grande do Sul. Mas ele não parecia buscar apenas o anonimato. Talvez algo de inspiração ou atraído pelo modo de vida com base na cultura da região, enfim, suposições. Mas você também saiu do RS e voltou. O que há no RS, além da família, que te atrai e provoca em outros artistas essa curiosidade?
Não sei o que trouxe o Belchior para RS e Uruguai. Para o andarilho que ele demonstrou ser, o sul/sur pode ser um grande ímã. A milonga sureña é música de espaços, silêncios, distâncias, vazios. Convida à reflexão, a se perder. Também assim é o sul/sur, seu habitat. Não sei se o Belchior tinha notícia disso, mas certamente se deu conta quando chegou. Soube que no final ele andava escutado as canções do meu disco “Tango” (1987), o que me comoveu. Voltei ao Sul pela família e pela casa em que moramos ainda hoje, uma casa chorizo, como dizem os argentinos, estreita, alta e comprida. Muitas vezes abro a janela da frente, onde trabalho, respiro o ar fresco, olho o sol, a rua, de preferência quando está deserta, e agradeço por estar ali. Me motiva muito, me emociona. Acho que tem a ver com o fato de, na minha infância, termos passado muitos invernos no Uruguai e ter sido sempre bom. Era quando via meu pai feliz, coisa que não costumava demonstrar no dia a dia. Pelotas é uma cidade muito uruguaia, não só pela luz, pelas ruas planas, mas também por ser cheia de uruguaios, com boas parrilladas e outros sinais culturais del paisito.
O outro é Bob Dylan. Talvez seja um dos artistas mais versionados em seus discos (“Joquim”, “Um dia você vai servir a alguém”, “Só você manda em você” e “Ana”). Queria saber o que te toca na obra dele e o porquê dessa ligação no seu trabalho?
Todo mundo fala nas letras de Bob Dylan como sendo o seu melhor, talvez a única coisa boa. Pois sempre fui atraído por sua música (aliás, quase não presto atenção em letras), em parte por associá-la às imensidões norte-americanas, às estradas, às desolações, e estas às distâncias retilíneas do Sul e ao meu estado de espírito quando estou nesses lugares. Gosto de repetição em música, e isso ele sempre fez muito bem, de uma maneira que as canções poderiam nunca terminar que nós continuaríamos ouvindo. A música dele tem um poder de chegada imenso, refrãos arrasadores, melodias que, improvisando ao cantar, ele não deixa nunca serem as mesmas. Acabo de versionar “The ballad of a thin man” (Nota: segundo Vitor, a canção não estará no álbum dedicado a Leminski, mas no próximo, a princípio). Como fiz com as outras, trouxe para um contexto brasileiro. É um exercício maravilhoso para mim. Ele é um poeta democrático, parece que escreve para ser versionado, com suas palavras que parecem nascer de um jorro, receber pouco tratamento; com seus temas-enigmas ou suas histórias com personagens-modelo; com suas associações doidas e suas rimas super musicais. Como gosto do trabalho fino, de ir no detalhe, sinto-me entrando num mundo aberto por ele, autorizado a recolocar as coisas de modo a corresponderem ao meu próprio mundo, como se entrasse em uma sala com móveis incríveis que me dão vontade de dispor de outra maneira e ele ainda tivesse deixado lá um aviso: arrume como quiser e fique à vontade para colocar seus próprios objetos.
Mas Dylan tem um apreço muito grande pelo palco e continua. Desde 1988 ele inventou a Never Ending Tour, que percorre o mundo até os dias de hoje, inclusive com shows espalhados pelos Estados Unidos no último verão no hemisfério norte. Já você parece ter uma relação mais complexa com os palcos, mesmo já tendo realizado apresentações em várias regiões do país, na América Latina e na Europa. Por que isso? Como está a sua relação com os palcos?
De tudo que eu faço, estar no palco não é o que mais me motiva. Depois que lá estou, eu gosto. Posso adorar um show, transcender de emoção enquanto canto, mas ainda posso me sentir desconfortável em muitos momentos, às vezes sem saber por quê. Demorei muito a aprender a lidar com os imprevistos do palco ou a impedi-los de acontecer, tudo porque não gostava de subir nele. No começo, por muito tempo não precisei fazer isso porque tinha ganho uma boa grana editando minha obra, então não precisava correr atrás fazendo shows. Mas não recomendo a ninguém. Aquilo me fez demorar muito a adquirir experiência de palco, coisa que é vital para qualquer artista. É no palco que se aprende a cantar e tocar bem. O Barão de Satolep, meu personagem, me ajudou nisso, me deu desenvoltura. Para não dizer que não houve ganhos, evitar os palcos me deixou mais tempo e foco para apenas compor e escrever, que é o que eu mais gosto mesmo de fazer.
Parte da sua marca sonora, do seu som, está calcada no violão como instrumento primordial de expressão artística. Inclusive, em 2012, você foi eleito pela Rolling Stone como um dos 70 mestres brasileiros da guitarra e do violão. Diante das possíveis limitações do instrumento, você sempre buscou dedilhados, dissonâncias e afinações fora do padrão. Como se deu essa busca pela sonoridade no início da sua carreira e como você trabalha hoje para chegar a um som ou ideia de violão que te deixe satisfeito na hora de compor?
Lá no começo, estudar violão clássico foi determinante para mim, no sentido de dominar o instrumento, principalmente desenvolver a mão direita e tirar o melhor som. Quanto a desenvolver uma maneira pessoal de tocar, isso veio com o tempo. Começou pra valer quando troquei o violão de nylon pelo de aço, por ocasião do álbum “À beça” (1995), mas principalmente do “Ramilonga”. Trouxe para o aço a técnica do clássico. Mas nylon e aço soavam distintos um do outro. Comecei então buscar com minhas unhas o som do nylon no aço. Fiquei mais joãogilbertiano no sentido do rigor na execução, da regularidade, das sutilezas rítmicas e timbrísticas, embora, diferentemente dele, meu violão seja feito principalmente de arpeggios, pedais, afinações preparadas, acordes não filiados à bossa nova, acordes sem terças, abertos, com estranhezas, dissonâncias que criam tensões onde são necessárias. Quanto menos dedos eu utilizar para armar um acorde, quando menos eu precisar levantar a mão para trocar de acorde, ou seja, quanto mais cordas soltas permanecerem soando nessas trocas, quanto menos se perceber que gravei dois violões que parecem um só, mais estarei no meu ambiente sonoro. Meu violão é uma planície levemente ondulada com algum evento aqui e ali. A repetição torna as estranhezas parte natural da paisagem. O fato de dever pouco à bossa nova foi buscado de forma consciente, porque Tom Jobim e João Gilberto são para a canção no Brasil o que Astor Piazzolla é para o tango na Argentina: novos compositores precisam se puxar para não ouvi-los protagonizando em sua própria música. A gente aprende com os mestres, depois tem de lutar contra eles, disse Picasso (parece que a frase era de um mestre dele…). Neste processo, minha maneira de tocar tornou-se parte da minha composição e vice versa. Busco no violão uma linguagem que demarque que estamos no centro de uma outra história, entre o “Brasil” e os países do Prata. Ele tem elementos de lá, cá e acolá, filtrados por minhas próprias invenções. Para lidar com o fardo tradicionalista-regionalista, passadista e restritivo, afinei-me com a ideia de Ítalo Calvino de adotar um novo ponto de observação, outra ótica, lógica. Isso se reflete no instrumento e em seu uso também. É preciso reagir ao mundo quando ele nos parece condenado ao peso. E instaurar a leveza. Só assim se combate o que já está esgotado pelo uso e se abre espaço para o novo.
Você é um compositor compulsivo? As músicas saem naturalmente prontas ou há um trabalho de autocrítica e perfeccionismo que pode demorar? Pode citar exemplos?
Fui compulsivo no período de musicar os poemas do Paulo Leminski, por exemplo. Era um impulso irresistível. Cheguei a fazer três canções num dia. Mas normalmente não sou assim. Algumas canções nascem quase prontas. Outras se fazem de modo mais lento. “Estrela, Estrela” saiu inteira assim, tipo em menos de meia-hora. Já “Longe de você”, compus com um tipo de acordes mais convencionais. Meses depois, mudei a afinação do instrumento e, consequentemente, todos os acordes. A letra, só vim a escrever um ano depois. O fazer em si é rápido, mas as decisões prévias, às vezes, podem demorar muito, como nesse caso.
Recentemente o colunista do G1 Mauro Ferreira publicou um texto questionando sobre o porquê de os grandes nomes da MPB não serem biografados em vida. Algo diferente do que acontece na Argentina, por exemplo, onde é possível encontrar várias biografias e ensaios sobre músicos vivos. Mas, aqui, você e sua obra são temas de pelo menos dois livros, o “Nascer leva tempo”, de Luís Rubira, e o mais recente, “O astronauta lírico”, de Marcos Lacerda. A que você atribui esse interesse e o que você acha desse tipo de documento ou reflexões sobre as obras dos grandes artistas?
“Nascer leva tempo” e “Vitor Ramil – o astronauta lírico” são sobre o meu trabalho. Uma vez que experimento muito, que mudo bastante de um disco, show ou livro para outro, já que sou movido pelos desafios formais, a leitura do que faço pelos autores desceu luz sobre coisas que muitas vezes as pessoas não conseguem conectar entre si. O que tem a ver “Ramilonga” com “Satolep Sambatown”, “Pequod” com a “A primavera da pontuação”, Angélica Freitas com Jorge Luis Borges ou o ácido Barão de Satolep com o Vitor lírico de “Estrela, Estrela”? Acho que a minha produção vai se justificando num grande arco de tempo. Leituras de fora ajudam nesse sentido. O Lacerda, por exemplo, se ligou muito no personagem expressionista do Barão, vampiro, corcunda, assustador e engraçado. Sua abordagem fez meus contemporâneos repensarem o sentido do personagem e jovens descobrirem um Vitor Ramil que jamais imaginariam existir. Resulta não só num conhecimento maior sobre o que fiz e faço, mas também num fortalecimento cultural da cena cultural de que faço parte, o que é benéfico para todo mundo. História acontecendo. O mesmo vale para outros livros dessa linha sobre os outros artistas.
Como você vê o atual momento da música brasileira em que temos gigantes se aposentando dos palcos, como Milton e Gil?
Pois é… Aos 13, 14 anos assisti Milton Nascimento ou Egberto Gismonti em seu auge criativo apresentando-se para pouca gente. Aprendi quando guri a amar esta geração que agora está na casa dos 80. Eles se tornaram grandes por seus imensos talentos, mas também porque o mercado da música era outro, dava tempo para um artista crescer, formar seu público, se consolidar, enfim. Eu esperava anualmente os discos de cada um deles. Que gravadora major suportaria hoje um artista com a devolução de discos que teve Caetano Veloso em “Araçá Azul” (1973), com o fato de ele só ter chegado ao Disco de Ouro na maturidade? Qual delas contrataria Egberto Gismonti? Atualmente, com as mudanças tecnológicas e respectivas estratégias de mercado, a música popular se pulverizou, tornou-se parte de um pacote de entretenimento. Pode-se dizer mesmo que perdeu relevância. Por que registrar uma obra extensa ou mesmo um conjunto de canções se os ouvintes das plataformas mal passam das primeiras músicas de um álbum? As crianças nem mesmo escutam hoje uma música inteira. Virou coisa para abnegados. Acho que a música brasileira de hoje, que poderia ser filiada àquela iniciada por Chico Buarque, Gil e outros dessa geração, tornou-se um segmento quase para iniciados. Quando gravei meu primeiro disco em 1981, aos 18 anos, a previsão inicial da gravadora era de que em quatro anos eu estaria estourado. Olha só, eu teria quatro anos para me firmar! Mas com o advento da gravadora Ariola, que entrou no país comprando o passe dos artistas que tinham começado a vender bem, ouvi o seguinte: por que vamos investir em você se daqui a pouco vem outra companhia e te leva? E fui pra rua. Estava acabando ali o capitalismo romântico, se isso é possível, dos anos 70. Em breve não adiantaria mais ser jovem e talentoso. A vendagem tinha que estar assegurada já na largada. Hoje em dia, para interessar aos grandes grupos empresariais, é preciso ser um grande vendedor já antes de gravar. Mas, claro, muitos como eu não dão a mínima para grandes grupos empresariais. Vas fuden, como diria o Barão. O que não nos impede de produzir, com outras ambições, outro alcance, sabedores de estar em outro mundo.
Sua carreira é bastante marcada pelo sentimento do não-lugar (ou lugar), pela inquietude musical, conceitual e pelo pertencimento de uma cultura sulista que ultrapassa fronteiras. Mas olhando para sua própria história, você está onde queria estar? O que falta para você?
Estou exatamente onde queria estar. Moro no interior com a Ana Ruth, amor de toda a vida, numa casa de 100 anos a duas horas do Uruguai. Nossos filhos e netas são o máximo. Lembro que eu simpatizava com o João Gilberto por ser recluso, com o Chico Buarque por se recusar a aparecer na TV ou fazer poucos shows. Sempre fui um sujeito perfil bajo. Tornei-me o que sou, como se diz. Passo os dias muito sozinho, escrevendo. A vida afetiva e amorosa está mais que encaminhada. Da artística me falta muita coisa, lógico, do contrário não haveria mais motivação. Termino um disco já pensando no próximo; avanço num livro tendo sempre no horizonte outro já iniciado. Sempre me falta o que só saberei quando chegar lá e descobrir que não era bem o que eu não sabia que era.
Vítor, para onde suas ideias estão indo nesse momento? O que você está planejando? O que está no horizonte?
Estou escrevendo “A estética do frio”, um desenvolvimento e aprofundamento da ideia original, que nunca cheguei a fundamentar e expor completamente. Acabo de gravar um disco com 15 canções para poemas de Paulo Leminski. Mais uma vez um trabalho diferente dos anteriores, mas aposto que será possível identificar nele muita auto-referência. O lançamento será em 3 de outubro, com um single, “Amar você”, saindo em 26 de setembro. Desse disco agora preciso montar o show de lançamento. Mas, como sugeri antes, já tenho esboços para um próximo álbum e para um livro de ficção, que interrompi para poder avançar nos outros projetos.
Você ainda se emociona com a música? O que te emociona?
Escutar Glenn Gould tocando Bach ou alguma linda melodia numa linda voz sempre emociona. Mas, de um modo especial, minha família me emociona mais que tudo: ver a Ana Ruth pesquisando e desenvolvendo lindas ideias, meus filhos crescendo como pessoas e artistas (o Ian e a Isabel produzem coisas incríveis) e minhas netinhas, Nina e Olívia, sendo a alegria da vida.
– Diego Queijo é jornalista! Acompanhe: instagram.com/diegoqueijo.
Parabéns!!!! Adorei a matéria!!! Sou tua fã número um!!!! Deus te abençõe sempre!!!
Lembro de ter sido talvez o único a votar no tambong como disco do ano aqui no Screamyell. Pena que muitos dos leitores/colaboradores desse espaço tenham mais a ver com o hype de momento (marina sena ou ana frango elétrico, por exemplo) do que atentarem a coisas como aquele disco lindo que a Cátia de França lançou há alguns poucos anos. O disco do Jards Macalé pouco foi lembrado aqui nos melhores do ano. Exemplos do imediatismo que nos acomete e da busca pelo hype fácil.