Cinema: Entre a invenção e a convenção, M. Night Shyamalan acerta mais uma vez com “Armadilha”

texto de Leandro Luz

M. Night Shyamalan sempre enfrentou turbulências em sua trajetória no cinema. Do ponto de vista da recepção crítica, os seus filmes costumam causar reações extremas: há os que louvam o diretor indiano radicado nos Estados Unidos pela sua ousadia e originalidade constantes e há os que o julgam como um prestidigitador de segunda categoria. Independentemente de para qual time torcemos, o fato mais curioso que podemos constatar, a partir de uma observação atenta e minuciosa de uma carreira que já ultrapassa três décadas, é como Shyamalan soube conviver com a frustração na lida com a forja hollywoodiana e, após percalços do ponto de vista comercial (sobretudo os quatro filmes que dirige entre 2006 e 2013), como ele conseguiu manejar a sua base sólida de admiradores e aliados importantes da classe em prol de sua própria independência financeira e, consequentemente, artística. “Armadilha” (“Trap”), seu mais recente longa, se funde muito facilmente com o tom e com a abordagem que o seu cinema passa a ter a partir de “A Visita” (2015) que, de certo modo, funcionou como o seu grande pequeno retorno à boa forma – ou talvez seja mais correto dizer: uma reconquista de sua própria autoestima -, sobretudo após os desastres comerciais de “O Último Mestre do Ar” (2010) e “Depois da Terra” (2013), duas obras imperfeitas, sim, mas que foram injusta e grosseiramente massacradas.

“Armadilha” é um filme sobre controle e liberdade, não à toa o seu título é um amálgama perfeito entre as contradições que enfrenta o protagonista. Cooper é pai de Riley e ambos estão a caminho de um concerto da cantora pop Lady Raven, da qual a adolescente é fissurada. Os dois chegam ao local do show e logo percebemos que há algo errado na forma como a equipe de segurança está concentrada, não apenas pelo fato de haver mais efetivos policiais do que normalmente veríamos em uma situação como esta, mas principalmente pela forma como a direção conduz o nosso olhar. Shyamalan se demora em planos analíticos que fazem uma varredura na arquitetura externa e interna dos espaços. E o que mais chama a atenção é que esse ponto de vista não é apenas do diretor, como também de seu protagonista. Cooper, personagem interpretado com muita confiança e audácia por Josh Hartnett, é quem vasculha cada canto do campo de visão para tentar primeiro entender o que está acontecendo para, logo em seguida, descobrir uma rota de fuga. Isto se dá porque muito cedo (mais ainda se considerarmos que esta revelação de trama já constava no trailer do filme) descobrimos que o show nada mais é do que uma grande armação para prender o “Açougueiro”, um serial killer à solta que, irônica e evidentemente, é o papai que logo nos primeiros segundos aprendemos a simpatizar.

Há de se dedicar um pouco mais de tempo ao trabalho de Josh Hartnett aqui. Quem poderia adivinhar que o galãzinho Trip Fontaine de “As Virgens Suicidas” (1999) ou que o bom moço Danny Walker de “Pearl Harbor” (2001) dariam lugar a uma interpretação tão interessante e calculada como a que o ator engendra para o seu Cooper em “Armadilha”? A cada microexpressão no rosto do ator, valorizadas pelos closes implacáveis de Shyamalan, mergulhamos mais fundo na complexidade do personagem e no quão habilidosa é a sua construção para que o espectador possa comprar a devida dose de absurdo (os ecos de Jack Nicholson em “O Iluminado” e de Anthony Perkins em “Psicose” abrilhantam ainda mais a atuação). Está certo que o pacto a ser feito entre o filme e o público reside justamente na compreensão desse personagem. Caso você, espectador, venha a rechaçar o maneirismo de Cooper / Hartnett, é bem provável que pouca coisa na obra vá funcionar. Por outro lado, para os que venham a abraçar a sua loucura (in)contida, a viagem valerá a pena. Vale mencionar que, recentemente, Gartnett fez uma ponta bem interessante na terceira temporada de “O Urso” (2022-2024), premiada série sobre os bastidores de um restaurante de bairro em Chicago, e interpretou um personagem historicamente relevante em “Oppenheimer” (2023) – ainda que dramaticamente pouco marcante -, o que pode revelar um momento precioso de um ator em geral subvalorizado.

Esse é um bom exemplo de como Shyamalan não está mais tão disposto a fazer concessões na tentativa de agradar um grupo maior de pessoas. Em “Armadilha”, ou vai ou racha! Não que se deva amar ou odiar o filme. Aliás, em comparação com os seus trabalhos anteriores, este sofre um pouco mais com a construção de alguns personagens coadjuvantes e perpetua um problema recorrente que o diretor vem enfrentando com a transição entre o desenvolvimento da trama e a resolução de seus conflitos. Não é por acaso que, mais recentemente, a forma como Shyamalan estabelece as premissas e os conflitos de suas histórias nas primeiras sequências é tão admirável e mais notável do que a maneira como ele as resolve. Basta olhar para um filme como “Tempo” (2021), com aqueles minutos finais desastrosos, ou mesmo para este aqui, que perde muito de seu impacto em virtude do ritmo da montagem nos 20 minutos derradeiros e das inúmeras reviravoltas que exigem mais substância para funcionarem plenamente.

Outra coisa que chama a atenção em “Armadilha” é a relação que a câmera de Shyamalan estabelece com o espaço. E aqui cabe mencionar o trabalho minucioso do tailandês Sayombhu Mukdeeprom na direção de fotografia, profissional extremamente versátil com uma carreira peculiar, tendo colaborado para a definição do estilo visual dos filmes de Apichatpong Weerasethakul, passado pela trilogia d’As Mil e Uma Noites do cineasta português Miguel Gomes e, finalmente, tendo sido o responsável pelos filmes mais aclamados de Luca Guadagnino, inclusos os malabarismos visuais das partidas de tênis em “Rivais”, lançado também neste 2024. Ainda que Mukdeeprom tenha sido o quarto diretor de fotografia a estabelecer uma parceria com Shyamalan desde 2015, nota-se o resguardo de uma unidade dessa relação entre os enquadramentos e os movimentos de câmera com os espaços, e até mesmo em como a fotografia contribui na composição da atmosfera de cada filme. Se em “Tempo” as personagens performavam para uma câmera que abolia regras de eixo e propunha demarcações abstratas em um espaço fluido como o da faixa de areia na praia deserta, em “Batem à Porta” (2023) o casal que precisa salvar o mundo está a todo o tempo sendo testado em sua fé, tendo que ignorar o confinamento da cabana (e de sua própria convicção) para enxergar uma trilha possível para além do visível. O ponto em comum, a unidade, portanto, é o confinamento, o espaço delimitado que em “Armadilha” ganha uma proporção mais espetaculosa e dialoga diretamente com a ideia de controle que o filme se propõe a debater.

O procedimento é evidente: o espectador está, durante todas as sequências ambientadas no show, ao lado de Cooper, enxergando “apenas” o que ele enxerga, farejando exatamente o mesmo senso de perigo e excitação. A câmera respeita a distância de seu protagonista para com o objeto observado, reforçando o ponto de vista estabelecido. Vemos a apresentação de Lady Raven a uma distância considerável, incômoda até. Diferente de Riley, profundamente conectada com a cantora, nós e Cooper nos distraímos facilmente, seja com a intensificação da ação policial no local, com a mãe insuportável da amiga da filha que constantemente interrompe a ação ou com a tensão progressiva que anuncia engolir de vez a narrativa. Uma sequência que ilustra bem essa artesania é quando a Dra. Josephine Grant, especialista em localizar serial killers e agente do FBI no comando da operação, começa a se aproximar de Cooper tal como um fantasma: em um primeiro momento, apenas ouvimos a sua voz autoritária sussurrando orientações num canal de rádio; em seguida a notamos de corpo presente, ora de costas, ora de perfil, até que aparece de frente, com sua figura ao mesmo tempo mirrada e intrépida, percorrendo cada setor do local no encalço de sua presa; por fim, ela se aproxima de Cooper quando este já está no palco, sem sucesso em alcançá-lo. A personagem é interpretada com austeridade pela veterana Hayley Mills (dêem uma olhada na filmografia da atriz) que, adotando um tom grave, contribui para a construção do suspense. Já na sequência final, a Dra. volta para assombrar Cooper em sua própria casa, violando a sua segurança calcada na cisão entre o monstro e o pai de família que ele mesmo estabelece para si.

Em certa medida, “Armadilha” se parece muito com “Fragmentado” (2016), sem a tresloucada e vertiginosa guinada para o realismo mágico cometida por este. Shyamalan pisou um pouco no freio durante o clímax desta vez, valorizando mais os elementos realistas convencionais da lógica de gato e rato. Quando Cooper parece que vai se transformar verdadeiramente em um monstro (tal como Kevin / James McAvoy nos minutos finais de “Fragmentado”), ele se contém, ou melhor, o filme o contém, até porque, aparentemente, Hartnett estava com toda disposição para perder a linha nesse abismo. Bem que o filme poderia se beneficiar com um passo a mais em direção ao fantástico: outro exemplo são as aparições da mãe de Cooper, que o assombra desde criança, materializando-se em um espectro em momentos-chave da narrativa, mas sem alcançar o impacto que Shyamalan parece almejar. O paralelo entre a assombração e a agente que o persegue é evidente, porém pouco aproveitado.

Outras duas personagens femininas ganham destaque da metade para o final e, de certo modo, revelam algumas limitações e salientam alguns problemas do filme. Lady Raven, a estrela pop, é interpretada por Saleka Shyamalan, filha mais velha do diretor, e Rachel, esposa do nosso protagonista, ganha vida com a interpretação de Alison Pill (“Scott Pilgrim Contra o Mundo“, “Meia-Noite em Paris“), boa atriz que andava um tanto sumida nos últimos anos. Saleka, além de responsável pelas composições e performances das músicas de Lady Raven, ainda ganha um destaque surpreendente como atriz ao tomar as rédeas da narrativa, assumindo o protagonismo que antes era apenas de Cooper / Hartnett. Uma vez que M. Night Shyamalan parte de uma relação entre pai e filha para construir a narrativa de seu filme, faz total sentido o espaço que a personagem de Saleka recebe – e é interessante o fato do filme ter sido lançado justamente no final de semana do dia dos pais no Brasil, como bem observou Marcelo Miranda no Twitter. Já Rachel, esposa d’O Açougueiro, aparece tarde demais na trama, e a sua participação, se melhor construída, poderia garantir maior impacto para a reviravolta principal (dentre as tantas) de “Armadilha”.

Verdade seja dita, a reviravolta no cinema de Shyamalan – lembremos especialmente de “O Sexto Sentido” e “A Vila” – é reconhecidamente uma marca de estilo. No entanto, a revelação de Rachel não cumpre com o principal papel das reviravoltas nos filmes do cineasta. Em geral, os roteiros de Shyamalan utilizam o recurso do “plot twist” para fazer o espectador repassar todo o filme na cabeça, de preferência sentindo prazer neste ato. Ao invés disso, o que a maioria dos filmes provoca com este recurso, e infelizmente é o caso aqui, ao menos parcialmente, é um sentimento vazio de surpresa, seguido de uma sensação de aborrecimento e obviedade. Deveríamos ter conhecido um pouco mais do passado de Cooper e da relação com a sua esposa e filhos para que essa regurgitação necessária funcionasse para além do primeiro choque. Não obstante, e isso não podemos nunca perder de vista, a subversão de expectativas é um trunfo de Shyamalan, sempre foi. Ele certamente é um dos roteiristas mais originais do século, e consegue brincar com a estrutura clássica de uma narrativa de thriller hollywoodiana, sempre trabalhando numa linha tênue entre o que já estamos acostumados a ver e o que nunca vimos antes. Aliás, como seria delicioso assistir a um bom filme de serial killer todo ano no cinema! Shyamalan faz a sua parte e, entre a invenção e a convenção, acerta mais uma vez.

O Scream & Yell também está no https://letterboxd.com/screamyell/

– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.

3 thoughts on “Cinema: Entre a invenção e a convenção, M. Night Shyamalan acerta mais uma vez com “Armadilha”

  1. [08:48, 16/08/2024] rodrigo f.: A música é a melhor coisa desse filme mesmo, mas que bomba essa que Shyamalan nos aprontou hein
    [08:49, 16/08/2024] flavianu maradona: Hahaha
    [08:49, 16/08/2024] flavianu maradona: Cara, roteiro tão sem pé nem cabeça que eu tava era me abrindo pesado
    [08:49, 16/08/2024] flavianu maradona: Dei boas risadas
    [08:50, 16/08/2024] rodrigo f.: O cara é um dos 3000 mil homens num universo de 20000 altamente vigiado e consegue aprontar todas aquelas presepadas
    [08:50, 16/08/2024] rodrigo f.: aquela saída do estádio a coisa mais ridícula
    [08:50, 16/08/2024] rodrigo f.: eu tava acompanhado da minha holandesa, consegui me abrir do começo do filme até começar a ficar puto

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.