entrevista de Bruno Capelas e Igor Müller, do Programa de Indie
O Ride está de volta em 2024. Isso não é exatamente uma novidade: já faz dez anos que o grupo britânico, um dos bastiões do shoegaze, decidiu regressar aos palcos. A “segunda fase” do Ride, inclusive, já é mais longeva do que a primeira, que durou apenas de 1988 a 1996. Mas antes que o leitor feche a aba procurando uma notícia, alto lá: o grupo de Andy Bell e Mark Gardener lançou um disco novo em março deste ano: “Interplay”. Quem for ouvir o trabalho procurando o Ride de sempre, porém, irá se surpreender com um disco cheio de sonoridades dignas dos anos 1980, seja numa cadência “rock de pista” à la New Order ou na busca por um som grande, radiofônico, daqueles de ouvir bem alto no rádio do carro.
“Seria errado se a gente só se repetisse o tempo todo. Se o Ride fosse uma banda só nostálgica, acho que não suportaria fazer isso por muito tempo para ser honesto. Para mim, a música nesse disco novo é uma ‘transfusão de sangue sônica’, que me dá nova vida mesmo”, conta empolgado o inglês Mark Gardener, em entrevista via Zoom ao Programa de Indie – aqui publicada no Scream & Yell em versão texto. Ele fala direto de sua casa, em Oxford, que também agora é a casa do Ride: “Interplay” foi gravado no OX4 Sound (lê-se “ox-four”, em uma piada com o nome da cidade), estúdio montado por Gardener em sua residência. “É a primeira vez que temos um estúdio para chamar de nosso e isso ajudou muito, sem pressão de tempo ou dinheiro”, diz o guitarrista.
O trabalho não só reflete a ânsia criativa do grupo, mas também a superação das adversidades dos últimos anos: além da pandemia, o grupo ainda enfrentou uma batalha com seu antigo empresário. “Ele nos processou por um dinheiro que não tínhamos. Por outro lado, passar por isso nos fez lembrar da energia que tínhamos quando começamos e das bandas que ouvíamos, como Talk Talk, Depeche Mode ou Tears For Fears”, comenta Gardener, que também desabafa sobre o status financeiro atual do grupo. “Para as pessoas, o Ride parece uma banda grande, mas até mesmo o Ride está lutando para se manter vivo e fazer turnês atualmente. Os custos subiram demais nos últimos anos, enquanto nosso cachê se manteve num patamar parecido desde 2015”, revela.
Na entrevista a seguir, Gardener fala mais sobre o status da indústria da música, explica outras inspirações por trás de “Interplay” e também confirma uma lenda de que o Ride teria goleado o Radiohead numa pelada entre duas das maiores bandas de Oxford. Ele também revela seu amor por caipirinha, Elis Regina e diz que está pronto para voltar ao Brasil. Alô, produtores de shows! Mas… enquanto eles não vêm, bom passeio nesse papo!
“Interplay”, o novo disco do Ride, é o terceiro desde o retorno em 2014 – e o primeiro depois da pandemia, um período muito difícil para quem vive na indústria da música. Como foi voltar ao estúdio para escrever esse novo capítulo da história da banda?
Mark Gardener: De 2019 para cá, vivemos um período de muitas adversidades, então ficamos bastante felizes de poder voltar ao estúdio e finalmente começarmos a fazer um disco juntos de novo. Nós tentamos gravar algumas vezes durante a pandemia, mas a Inglaterra tinha muitas regras sobre quantas pessoas poderiam ocupar o mesmo espaço, e não sabíamos como fazer isso direito. Foi tudo muito louco pra gente, como foi pra todo mundo. Uma das grandes diferenças de “Interplay” é o fato de que nós o gravamos aqui em Oxford, no estúdio que montei aqui em casa, o OX4 Sound. É a primeira vez que temos um estúdio para chamar de nosso e isso ajudou muito. Ficamos muito felizes de poder trabalhar sem pressão de tempo e dinheiro. Montamos os equipamentos e começamos a fazer jams, do mesmo jeito que fazíamos no começo da banda, sem pressão. Aos poucos, começamos a ver partes de músicas se formando, e essas partes foram virando canções, até chegarmos ao resultado do disco. É importante dizer que, além da covid-19, também tivemos uma briga enorme com nosso antigo empresário – que estava tentando transformar o Ride na sua grana para a aposentadoria. Ele nos processou por um dinheiro que não tínhamos, aquela coisa bem clássica que a gente lê nas biografias das bandas. Foi algo que ameaçou nossa existência. Mas quando você se recupera depois de algo desse porte, isso faz a banda ficar mais forte, mais unida… e acho que o resultado é um disco forte também.
Muito bom! É interessante você falar sobre isso: adversidades, especialmente, as financeiras, são coisas nas quais ninguém pensa quando resolve montar uma banda. Mas elas fazem parte do trabalho, né?
Exatamente! Um problema que temos hoje é descobrir como ganhar algum dinheiro com o Ride – o que é um problema para muitas bandas. Quando você tem 20 anos e só precisa cuidar de si mesmo, ganhando dinheiro para pagar uns drinks, é fácil não ter responsabilidades. Mas hoje, todos na banda temos filhos, temos responsabilidades. Seria totalmente irresponsável dedicar meu tempo ao Ride se eu não tiver dinheiro para pagar minhas contas ou dar comida para minha filha. Quando você fica mais velho, os desafios se tornam mais presentes – mas isso te leva a buscar melhorar as coisas. Uma das definições de insanidade é fazer a mesma coisa inúmeras vezes e esperar por um resultado diferente, então esses desafios nos fazem buscar algo diferente. Com sorte, esperamos estar em uma condição melhor, para que a vida seja um pouco mais fácil. Além do Ride, hoje todos temos empregos no dia a dia. Para fazermos uma turnê, o Steve tem que sair do emprego; o Andy tem os trabalhos dele como músico e com mixagens; o Loz é professor de música numa faculdade. Já o meu trabalho é no estúdio, então é um pouco mais fácil, mas ainda assim é complicado. É difícil deixar a vida de lado para sair numa turnê e ver se vai dar certo. Estamos prontos para começar uma turnê nos EUA e não sabemos se vamos ganhar algum dinheiro com a viagem – e só saberemos ao chegar lá e ver se vamos vender merch. É curioso: para as pessoas, o Ride parece uma banda grande, mas até mesmo o Ride está lutando para se manter vivo e fazer turnês atualmente. Há muitas bandas hoje em dia que não conseguem nem fazer turnês por conta de dinheiro. Os custos subiram demais nos últimos anos, enquanto nosso cachê se manteve num patamar parecido desde 2015. O streaming é um grande problema, também. Se eles dessem um pouco mais de dinheiro para os artistas, isso mudaria tudo. Precisamos mudar isso, porque bandas novas estão sumindo todos os dias. Elas não conseguem pagar para trabalhar enquanto o dinheiro está indo para gente como Taylor Swift ou Britney Spears. Infelizmente, é algo que reflete a sociedade: os grandes artistas e os ricos ficam ainda mais ricos, enquanto o resto está lutando para seguir em frente. Deveria haver mais equilíbrio. Pelo menos é o que eu penso!
Obrigado pela sinceridade, Mark! Acredito que concordamos em muita coisa aqui.
Sabe, eu tenho aprendido muito com as bandas que passam pelo meu estúdio. Consigo ver como é difícil para eles. Algumas das bandas que passam ali poderiam ser o novo Radiohead, sabe? Mas muitas delas simplesmente vão acabar antes de ter a chance de chegar nesse lugar. É muito difícil mesmo. Mas acho que isso é tudo que vou dizer sobre esse assunto agora! (risadas)
A despeito dessas adversidades, o Ride já está na sua segunda fase há mais de uma década. É mais tempo que a fase inicial da banda. Em “Interplay”, vocês soam diferentes de antigamente – tem muitas bandas que são influenciadas pelo Ride que parecem mais com o Ride dos anos 1990 do que vocês mesmos. Qual é o segredo aqui para ficar junto por tanto tempo e criar novos sons?
Algo que nos conecta no Ride é o fato de que não queremos fazer sempre as mesmas coisas. Não é como se entrássemos no estúdio e disséssemos “ok, vamos tentar fazer um disco diferente”, mas estamos sempre avançando, experimentando. É assim que avançamos. Experimentamos novos sons e isso é bom porque não nos mantém restritos a ser “só” uma banda de guitarras. Seria errado se a gente só se repetisse o tempo todo. É bom se colocar à prova. Para mim, a música nesse novo disco é como uma “transfusão de sangue sônica”, que me leva a novos lugares, é algo que me dá uma nova vida mesmo. Claro, ainda temos que tocar as músicas antigas nos shows, seguir a coisa da nostalgia, mas, como artista, fazer coisas novas, sentir que as coisas estão avançando, isso é o que eu preciso. Não estou numa banda só para escavar o passado. Se o Ride fosse só uma banda nostálgica, acho que não suportaria fazer isso por muito tempo, para ser honesto. Foi bom ter voltado à ativa, porque sabíamos que tínhamos uma química boa e poderíamos fazer música nova e interessante. Não sei qual é a química que nos une, mas sei que ela existe – e é disso que gosto na música. A música não é uma ciência exata, não é uma fórmula… é algo aleatório, e gosto disso!
Há vários momentos em “Interplay” que remetem aos anos 1980, por dois motivos. De um lado, há músicas dançantes, bem ao estilo New Order, num rock de pista que é raro hoje em dia. Do outro, há músicas que parecem buscar o conceito do “big sound”, aquele tipo de canção pop que você ouve bem alto no rádio do carro. É algo que também não se faz mais atualmente. Faz sentido?
Espero que sim! De certa forma, passar pelos problemas que passamos até conseguirmos gravar o disco nos fez lembrar um pouco da energia que tínhamos quando a banda começou – e da música que ouvíamos quando éramos jovens, no final dos anos 1980. Estou falando de bandas como Talk Talk, Depeche Mode ou Tears for Fears, junto a coisas “mais clássicas” que são referências para nós, como Beatles ou My Bloody Valentine. Esse som dos anos 1980 sempre foi uma referência, e de uma maneira meio nostálgica, são coisas que ainda escuto. Há alguns dias, ouvi bastante o “The Head on the Door”, do The Cure. Acho que queremos abraçar alguns dos sons que nos fizeram querer ter uma banda, no começo de tudo. Além disso, eu e Andy participamos de um tributo a Mark Hollis, do Talk Talk, no Royal Festival Hall, o que nos fez entrar nessa onda de novo. Ficamos pensando: “que banda incrível é o Talk Talk”. Isso nos influenciou muito, embora nós também ouçamos coisas novas. Na maior parte do tempo, são as bandas que tocam no meu estúdio, porque faço muitos trabalhos de mixagem e masterização. Além disso, Steve e Andy são muito curiosos, estão sempre tentando descobrir bandas novas e eles me alimentam com isso. E tem outra coisa: não tem porque acharmos que não podemos fazer essas músicas “grandes”, esse “big sound” de que você fala. Queremos fazer boas músicas, ainda queremos fazer sucesso, temos esse tesão de buscar o sucesso. Sabe o que eu quero dizer? De um lado, é muito difícil rasgar o livro de regras e começar tudo do zero, mas para nós é o jeito mais fácil de fazer as coisas. Nós nunca fizemos muito sucesso, então não temos aquela pressão arrasadora de fazer algo igual de novo. Ainda temos tesão!
Vamos falar um pouco de produtores: ao longo da carreira, vocês fizeram discos com gente como John Leckie, que gravou o Stone Roses, e com Alan Moulder, que co-produziu discos de Smashing Pumpkins, U2, Killers, e claro, “Going Blank Again”. Em “Interplay”, foi a vez de trazer o Richie Kennedy, um discípulo do Alan Moulder. Como foi trabalhar com ele e por que vocês o escolheram?
Para mim, o Richie foi uma bênção! Nas primeiras sessões, eu estava cuidando de tudo: além de tocar, eu era responsável por gravar e fazer a engenharia de som, porque estávamos gravando no meu estúdio. Eu vivia pulando entre a sala de mixagem e a sala de gravação, além de limpar o estúdio e cozinhar para a banda. Por um momento, foi divertido e funcionou bem, mas depois eu fiquei exausto. Respirei fundo e descobri que precisava estar só com a banda na sala de gravação, percebi que precisávamos de um engenheiro de som enquanto eu podia só tocar, pensar em letras e melodias. Nosso novo empresário lembrou do Richie Kennedy, que trabalhou durante muito tempo com o Flood e o Alan Moulder. Ele também trabalhou conosco no último disco (“This is Not a Safe Place”, de 2019) e é um cara muito proativo, com uma energia incrível, gente boa mesmo. Quando Richie chegou, fiquei muito feliz: foi como se ele pegasse a bola e levasse pro ataque sozinho, deixando a gente na cara do gol. Ele é mais novo que a gente, então buscamos deixá-lo à vontade pra falar o que ele pensava, porque nós respeitamos muito a opinião dele. Aprendi muito com ele, acho que a gente sempre pode aprender com as pessoas. E como funcionou muito bem desde o começo, nós seguimos bem com ele.
Estamos quase chegando ao fim, mas vou tentar ainda fazer algumas perguntas importantes. Você citou o Radiohead no começo da entrevista, e sei que ambas as bandas vêm de Oxford. Ouvi falar de um jogo de futebol entre os grupos em que vocês supostamente deram uma sacolada nos caras. É verdade?
É verdade! (risos) Eu conheço os caras do Radiohead, vira e mexe a gente se vê por aí. O estúdio deles fica apenas a alguns quarteirões daqui de casa. Mas é verdade: eles são uns pernas de pau, nós goleamos o time deles. Somos bem bons. Foi 16 a 0 ou algo assim, mas acho que eles não se importaram muito. Por outro lado, eles venderam muito mais discos que a gente, então acho que eles podem rir por último.
Em 2019, vocês tocaram aqui no Brasil, num show que foi bastante elogiado. Como foi aquele show pra vocês?
Eu adorei! Adoro o Brasil, adoro São Paulo, é uma cidade que eu adoraria voltar, estou torcendo para conseguirmos com esse disco novo. Lembro que fomos a um jogo de futebol, não lembro exatamente qual era o time, mas sei que jogavam de verde.
Deve ser o Palmeiras.
Isso, era o Palmeiras, obrigado! Foi divertido! Eu amo o Brasil e cheguei até a ter um probleminha com a minha mulher naquela época. Alguém fez um vídeo meu bebendo caipirinha no meio da rua, gritando: “Eu amo o Brasil, eu quero viver aqui! Amo o Brasil”. E aí quando cheguei em casa ela só me dizia: “seu bêbado idiota, por que você fez isso?”. A minha desculpa é que eu não sabia que iam filmar e colocar no Facebook. Mas foi uma briga boa, porque eu realmente estava pronto para mudar praí. Eu amo o Brasil, amo o futebol, amo a música. Eu adoro Elis Regina, amo “Elis e Tom” e aquela gravação de “Águas de Março”. É uma grande música. Adoro a música brasileira tradicional, toda a vibe do Brasil. Espalhe a palavra por aí, adoraríamos voltar aí para tocar!
Muito bom! Vamos avisar os produtores de show por aqui que vocês querem voltar! Para a gente fechar aqui, Mark, a gente tem uma pergunta clássica aqui no programa. Quais seriam os cinco discos que você levaria para a ilha deserta?
Hmmm… Vamos lá. Eu levaria os “Greatest Hits” do Ennio Morricone, porque é uma seleção bem variada de música. Levaria também um disco do Vivaldi, seria minha opção de música erudita. Provavelmente levaria “Surf’s Up” dos Beach Boys, porque é um disco que me acompanhou a vida toda. Tenho que levar um disco do Cocteau Twins, então provavelmente seria “Heaven or Las Vegas”. E tenho que fechar com “Sgt. Pepper’s”, porque tem que ter um disco dos Beatles. Tá bom assim?
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
Parabéns pela entrevista, Bruno. Já tinha lido outras do Mark e ele sempre se mostrou um cara gente boa. Mas não lembro de ter lido uma em que ele abrisse o jogo em relação a posição do Ride no cenário musical atual.