texto por João Paulo Barreto
É pertinente iniciar esse texto falando sobre Paul Giamatti, possivelmente o ator mais subestimado de sua geração. Mas a ideia que envolve essa reflexão pode não ser tão adequada, uma vez que leva a crer que sua impressionante competência cênica requer um reconhecimento com indicações ao Oscar e subsequentes premiações. É válido frisar que alguém com tamanho talento está acima dessa necessidade do aval de um Cinema como indústria. O que temos aqui é um ator que não vai movimentar a engrenagem verde dos dólares, mas, sim, despertar em espectadores atentos aquele sentimento de estarmos diante de alguém cujas performances cômicas ou dramáticas sempre nos marcarão ao saírmos da sala escura.
Em seus diversos papéis, a presença em cena de Giamatti pode ser discreta como se faz necessária no critério do menos é mais, ou histriônica e absurda quando aquele protagonista que ele encarna é tão excêntrico que parece sobressair-se da pele de seu intérprete. E quando temos um ator como ele nessa posição, perceber isso se torna um presente. Antes de adentrar no ponto central dessa crítica, no caso, sua renovada parceria com o cineasta Alexander Payne, é válido voltarmos ao primeiro trabalho conjunto da dupla, a comédia dramática “Sideways – Entre Umas e Outras”, pérola lançada há longínquos vinte anos, em 2004.
No papel de um escritor e profundo conhecedor de vinhos, Giamatti deu a Miles, seu protagonista tragicômico há duas décadas, toda a presença de alguém que esconde na pretensa sofisticação de taças especiais e degustações enólogas, um alcoolismo latente a disfarçar toda tristeza e frágil esperança de ter de volta seu casamento fracassado. Em uma de suas últimas cenas, Miles descobre, ao conversar com a sua ex-esposa, que se revela para ele, ali, feliz e grávida de seu novo marido, que aquele capítulo de sua vida passou e que é preciso seguir em frente. Giamatti desenha o momento com uma sutileza extraordinária, colocando em seu olhar uma tristeza quase lacrimosa que dura menos de um segundo, mas o suficiente para nos fazer perceber como aquela dor o atingiu.
No ano anterior, 2003, ele trouxe um novo sentido à expressão “dar vida ao personagem”, quando encarnou com toda excentricidade física, postura, olhar e voz, a figura do escritor de quadrinhos Harvey Pekar, no tesouro chamado “American Splendor” (“Anti-Herói Americano”, no Brasil). Daquele tipo de construção de personagem que impressiona não por (apenas) nos fazer compará-lo à sua matéria prima original, mas por nos dar um vislumbre do quão exíguo e homérico é o trabalho de composição para um ator ao mergulhar em seu texto. Como Harvey Pekar, Paul Giamatti não somente desaparece em nossa frente ao se transformar (sem maquiagens ou modos de se camuflar, friso) em seu protagonista, mas, também, se transmuta utilizando “somente” sua postura corporal, voz e olhar na figura de seu objeto de estudo. Daquelas atuações que nos fazem refletir e nos perguntar como aquilo é possível.
O título nacional de “The Holdovers” (“Os Rejeitados”, 2023), sua reunião mais que bem vinda com Alexander Payne (“Os Descendentes“, “Nebraska”), pode até representar a proposta de análise trazida aqui. Mas abordar a ideia de vê-lo como um rejeitado pelo sucesso não seria o modo mais justo de se criar essa metáfora. Longe disso. Talvez seja justamente por planar acima da fugacidade da indústria blockbuster que faça dele um ator tão especial. Mas não que ele não tenha adentrado por esse caminho comercial. Não sejamos ingênuos. Boletos chegam para todos e Giamatti se aventurou como um quase Rhino, vilão clássico do Homem-Aranha, na produção de 2014. Mas esse citado modo de planar acima se sobressai e é o que lhe dá papéis como o do professor Paul Hunham, protagonista de “Os Rejeitados”. E que papel!
Metódico em sua postura como mestre, o solitário historiador de meia idade lida com a estupidez de seus alunos naquele começo da década de 1970 com a secura irônica de quem se delicia falando sozinho e degusta seu cachimbo ao corrigir provas repletas de erros absurdos cometidos por quem ele classifica como filisteus. Ao se ver na função de “babá” de um dos jovens, alguém que não tem para onde ir durante a pausa para as festas de final de ano, é que o modo de buscar uma maneira menos ácida de encarar o seu entorno fará com que Hunham encontre um eixo diferente daquele que o manteve solitário em meio aos seus estudos durante décadas.
Neste aspecto, “Os Rejeitados” segue uma premissa comum a muitos filmes que abordam essa ideia de reencontro consigo e consequente melhora social (Jack Nicholson em “Melhor é Impossível”, de 1997, é um exemplo marcante). No entanto, o modo como esse desenvolvimento de seu protagonista se dá, juntamente ao tesouro que são os seus dois coadjuvantes e a química que o trio encontra, cria naqueles 130 minutos uma obra saborosa, cujos diálogos fluem entre uma graça irônica, mas que disfarça uma incômoda tristeza. “A vida é como um pau de galinheiro, sr. Tully. Cheia de merda e curta”, diz Hunham ao seu pupilo vivido pelo estreante Dominic Sessa. Em ambos, professor e aluno, porém, há pontos em comum que vão surgir de maneira a criar uma rima entre aquelas duas gerações. Uma pena que tal rima seja a depressão diagnosticada, coincidência infeliz que o professor descobre com uma expressão amarga, mas acompanhada de um “fazer o que, né?!”.
O terceiro pilar daquela relação fugaz de Natal é Mary Lamb, a cozinheira da escola, vivida por Da’Vine Joy Randolph (que já havia roubado a cena na série “Alta Fidelidade”, de 2020). Sua presença ilustra a dor da perda do filho, que antes de morrer no Vietnam com menos de 20 anos, estudava como bolsista na escola onde ela cozinha para os arrogantes filhos dos patronos e mecenas ricos. Sua personagem, apesar de gradativamente se afogar no alcoolismo diante da dor, nunca se torna frágil ou caricata, impondo-se perante qualquer possibilidade de humilhação de classe social.
No seu texto, David Hemingson, roteirista do filme, insere, novamente de maneira sutil, essas análises do modo como a guerra do Vietnam deformou aquele país governado pelo pilantra do Nixon. O momento em que um jovem surge em um bar com um gancho no lugar da mão, perdida no conflito, cria essa reflexão sem panfleto ou alarde. A crítica, porém, está ali, evidente.
Os rejeitados (ou remanescentes, em uma tradução mais exata de seu título original) se tornam aqui não somente apenas um professor amargo e inerte que, finalmente, encontra uma motivação para concretizar planos; um jovem depressivo por sua família e com receios e inseguranças comuns de sua idade, e uma mãe na busca por superar algo impossível, mas toda uma geração vitimada pela simples complexidade da vida, algo que pode até soar como um presente, mas que, muitas vezes, parece um fardo difícil (mas não impossível) de se levar pra frente. Para Paul Giamatti, mais um dia de (um excelente) trabalho.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
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