texto de Davi Caro
Muitos adjetivos poderiam ser utilizados para definir o The National, para o bem e/ou para o mal: iconoclastas, pretensiosos, fascinantes, difíceis, intensos, morosos… a lista poderia se estender. Mas enquanto a palavra “singulares” insiste em aparecer sempre que o quinteto de Cincinnati (formado oficialmente no Brooklyn nova-iorquino) é mencionado em conversas, outro vocábulo parece quase nunca aparecer junto ao nome do conjunto: “engraçados”.
É algo que não surpreende ninguém, necessariamente: com o vocalista Matt Berninger à frente de um grupo com não um, mas dois pares de irmãos – o baixista Scott e o baterista Bryan, bem como os gêmeos Aaron e Bryce Dessner – a tensão gerada a partir da junção de forças familiares é parte fundamental da dinâmica aperfeiçoada desde o lançamento de seu debut homônimo, em 2001, onde iniciaram seu processo de amadurecimento em meio à uma cena que inclui os Strokes, o Yeah Yeah Yeahs e o LCD Soundsystem.
Poucos discordariam, no entanto, que os consecutivos “Alligator” (2005) e “Boxer” (2007) ainda são mais representativos do impressionante desenvolvimento musical dos cinco (e de um pretenso “auge musical”) enquanto “High Violet” (2010) e “Trouble Will Find Me” (2013), mais comportados, marcam o encontro da banda com um público cada vez maior (“Boxer” bateu na posição 68 da Billboard enquanto “High Violet” e “Trouble Will Find Me” chegaram na 3ª posição e o seguinte, “Sleep Well Beast”, alcançou o 2º lugar em vendas na semana de seu lançamento.
O ano de 2013, porém, além do lançamento de “Trouble Will Find Me”, veio acompanhado de um documentário que, além de mostrar parcialmente o início das sessões de gravação do novo material, registra várias passagens de performances ao vivo realizadas ao longo do ano de 2010, durante a turnê de “High Violet”. E não se trata de um filme como qualquer outro: conduzido (?) pelo irmão mais novo do cantor, Tom Berninger (originalmente chamado para acompanhar a turnê da banda do primogênito como roadie), “Mistaken For Strangers” (título de um dos hinos da banda, presente em “Boxer”), é um dos mais delicados longas deste tipo jamais vistos. Áspera, por vezes desconfortável e ocasionalmente tocante, a produção coloca as filmagens de show em segundo plano para centrar foco nas múltiplas dicotomias existentes por trás de uma relação de irmandade.
Tom, como já mostrado logo de cara, não possui a ambição e nem a entrega apaixonada de seu irmão junto ao que faz: um headbanger que ainda vive com os pais e não demonstra muito apreço pelo nicho indie no qual o The National reina, o rapaz se mostra exultante pela oportunidade de cair na estrada com Matt e seus companheiros, e vê, na possibilidade de realizar um documentário, a chance de ouro de provar seus talentos, outrora registrados no formato de películas amadoras de horror. Todas as responsabilidades inerentes à função de roadie parecem secundárias diante da possibilidade de gravar as performances do grupo em um de seus períodos mais triunfais – além da promessa de realizar um bom trabalho, Tom vê na viagem a chance de se conectar com o irmão mais velho, com quem tem uma relação um tanto distante.
Não que qualquer um dos membros da banda pareça levar a ideia do aspirante caçula muito a sério. Desconcertantes entrevistas com os músicos se alternam com a frustração do líder de equipe de turnê, que chama constantemente a atenção de Tom para as funções pelas quais foi contratado, e pelas quais não demonstra tanto apreço. Sua insegurança transborda em momentos nos quais tenta abordar Matt, recém-saído do palco, somente para não receber a atenção que julga merecer. Da parte do vocalista, a tensa paciência dá lugar à incredulidade frente, por exemplo, à uma lista de convidados (que incluem o cineasta Werner Herzog) que o mais novo, de modo displicente, se esqueceu de entregar à equipe, resultando em um constrangedor impasse.
Ao longo das passagens mais difíceis, porém, é possível vislumbrar mais sobre a personalidade do diretor, bem como sobre suas vulnerabilidades e fragilidades: Tom teme ser visto como um fracassado ao lado do sucesso de Matt, cujas frenéticas atuações ao vivo são capturadas de modo glorioso no filme. À medida que o espectador toma mais e mais conhecimento da história prévia do entusiástico cabeludo por trás da câmera – o momento em que este pensa ter sido barrado de encontrar o então Presidente Barack Obama junto à banda por causa de seu histórico de direção embriagada é primoroso – e de sua sensível relação familiar com o frontman, o constrangimento dá lugar à simpatia e à compaixão, abrindo espaço inclusive para algumas relutantes gargalhadas.
A passagem na qual o Berninger mais velho suplica ao empolgado diretor para que desligue a câmera durante um encontro no backstage com diversos convidados (entre os quais estão o casal John Krasinski e Emily Blunt, além do ator Will Arnett) sem sucesso apenas mostra a linha tênue sobre a qual relações entre irmãos caminham, onde um passo em falso pode levar a agudas farpas distribuídas de modo discreto. Os depoimentos dos outros membros (sobretudo aqueles concedidos pelos irmãos Dessner) a respeito do frontman e de sua às vezes difícil personalidade também elucidam, embora de forma menos certeira, a forma com a qual Matt é visto por seu público, seus companheiros e seu consanguíneo: três pontos de vista diferentes podem, mesmo na mais incerta das hipóteses, ter muito em comum.
Mesmo a insistência e o pensamento positivo do primogênito não são capazes de remediar os muitos momentos constrangedores nos quais Tom deixa de lado suas funções como parte da equipe, e instâncias nas quais este parece perder o foco e começa a se comportar como um dos membros da banda são a gota d’água em direção ao inevitável. Ao ser demitido da equipe e mandado de volta para casa após alguns meses, o diretor passa a questionar seu valor, realizando reveladoras entrevistas com os próprios pais que aprofundam sua visão sobre si, sobre sua família e a forma com a qual as pessoas mais próximas dele o vêem.
Ao receber o convite de Matt para passar tempo em sua casa a fim de concluir o filme – no qual tanto o cantor quanto sua esposa figuram como produtores – Tom se sente ao mesmo tempo apreensivo e realizado com o voto de confiança recebido, mesmo que pouco pareça ter mudado. Um dos mais dolorosos momentos ocorre quando, ao exibir uma cópia preliminar do documentário, a exibição falha, no que parece decorrer de falta de preparo. Confrontado com sua própria inexperiência e, de certo modo, imaturidade, o diretor (após aparecer em filmagens chorando e impotente diante da situação) se vê sendo entrevistado ao lado de Matt, onde externaliza sua falta de confiança chamando a atenção para o fato de nunca haver, por exemplo, visto o irmão chorar. Alguns trechos, ainda assim, são mais descontraídos: seja filmando diferentes introduções dos outros membros do The National, ou questionando compradores em lojas de discos de sua cidade natal a respeito da fama do grupo de Matt, Tom se mostra esperançoso e orgulhoso do patamar artístico alcançado pelo irmão.
A cena final do documentário, na qual este último acompanha concentrado o frontman em sua peregrinação no meio do público segurando o longo fio do microfone que o conecta ao palco e ao sistema de som num misto de empolgação, foco e deslumbre, é evidência da frágil beleza escondida atrás dos vários instantes de tensão e constrangimento precedentes: sim, sob qualquer aspecto, Tom poderia ser considerado um fracassado ao lado de seu familiar; sim, sua falta de profissionalismo ao realizar uma atividade de suma importância pela primeira vez pode ser visto como irritante ou como fruto de intensa vergonha alheia; sim, é inescapável a sensação de que os outros músicos se esforçam para acomodar sua empolgação frente a eventos, para eles, já bastante cotidianos. Mas não se pode negar, principalmente ao ver o filme finalizado, a honestidade e a vontade de fazer um bom trabalho que se sobressaem no esforço do filho mais novo dos Berninger.
Atualmente, Matt se encontra bastante ocupado com o The National, já que só em 2023 o grupo lançou dois bem recebidos discos de inéditas, “First Two Pages of Frankenstein” e “Laugh Track” (e tem apresentações marcadas para 2024 no Primavera Sound de Barcelona – que bem que poderiam figurar por aqui). Porém, o cantor já declarou estar, em paralelo, desenvolvendo um projeto novo com Tom, envolto em certo mistério e que teve seu desenvolvimento interrompido pela recente greve entre roteiristas de Hollywood; o que se sabe é que se trata de um sitcom “um pouco autobiográfico” que, segundo o vocalista, já tem o título “Dos Apes” e conta com sua companheira, Carin Besser, retornando como produtora. Seja qual for o rumo tomado pela tal série, é difícil supor que, por mais distinta que seja, chegue a eclipsar o feito dos irmãos Berninger, cada um em seu papel, em “Mistaken For Strangers”: Trata-se de uma transposição, ainda que não sem seus altos e baixos, da beleza contida em todos os trabalhos lançados pelo grupo antes e depois: alguns podem não gostar, outros podem achar indigesto. Mas, para aqueles dispostos a procurar e a olhar com atenção, é difícil não se emocionar, identificar, entreter e, sim, rir: afinal, à exemplo tanto da música que permeia o filme quanto da complexa relação fraternal posta à frente do espectador, nada pode ser ao mesmo tempo tão engraçado e tocante quanto uma boa dose de honestidade.
“Mistaken For Strangers” foi exibido no Festival In-Edit Brasil em 2014, sendo um dos grandes documentários de uma edição repleta de destaques. Você pode assisti-lo online no site do próprio filme (mediante aluguel ou compra) com direito a extras como comentários em áudio de Matt e Tom, uma música inédita em WAV e diversas cenas deletadas extras.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.