Três filmes presentes na 18ª edição do Festival de Cinema Italiano no Brasil, evento anual gratuito que selecionou 32 filmes, entre lançamentos e clássicos do cinema italiano, para o público brasileiro em sessões presenciais e via streaming entre 8/11 e 9/12/23. Consulte a programação (presencial e virtual) no site oficial.
“As Minhas Garotas de Papel”, de Luca Lucini (2023)
Nos primeiros minutos de projeção, o travado Primo Bottaccin (Andrea Pennacchi, ótimo) está prestando uma “prova” para um cargo público. Assim como toda a sua família, ele cresceu no campo, afastado da “cidade grande”, mas Primo anseia por mudanças. Casado com Anna (Maya Sansa) e pai do adolescente Tibério (Alvise Marascalchi), Primo parte com os dois para Treviso, cidade de pouco mais de 80 mil habitantes próxima de Veneza, para assumir o cargo de carteiro, e encarar de frente todas as mudanças e adaptações que uma pessoa do final dos anos 1970 precisa enfrentar ao sair do campo (onde o banheiro, único para toda a enorme família, era fora de casa, no meio do mato) para viver em um apartamento numa cidade (com banheiro dentro). “Le Mie Ragazze di Carta” (título original), porém, não é sobre Primo, ou apenas sobre ele. É também sobre a esposa Anna com seus desejos (uma TV colorida de 99 canais!) e, principalmente, sobre o jovem Tibério, que está passando por todas as transformações da adolescência, incluindo descobrir o sexo – o título, ruim, pois não dá conta de tudo que acontece nos 101 minutos de projeção, é uma alusão a paixão do garoto por revistas pornográficas – e uma atriz pornô em particular. Lucini cria pequenos núcleos narrativos independentes, e tanto não coloca nenhum em evidência, deixando todos com um mesmo peso narrativo, quanto não acaba aprofundando nenhum, como exemplifica o melhor, que flagra o contato do pai carteiro com um travesti (Cristiano Caccamo, outro destaque do longa), situação que vai do asco a uma amizade bonita e delicada baseada em… jogos de xadrez (que em outras mãos poderia se transformar em uma deliciosa metáfora… mas que aqui não deixa margens para segundas intenções). O resultado final é um filme terno, mas simplório, que transpira inocência e nostalgia, piscando o olho para temas tabu sem ousar falar deles com convicção. Os personagens, repletos de potencial, são tratados de forma rasa numa história agradável, mas que frustra exatamente por ser muito menos do que poderia.
Nota: 6.5
“A Sombra de Caravaggio”, de Michele Placido (2022)
Michelangelo Merisi, conhecido como Caravaggio (nome herdado da vila em que nasceu na região italiana da Lombardia) foi um revolucionário que pintou, fundamentalmente, temas religiosos, radicalizando o chiaroscuro até criar o tenebrismo. De temperamento impetuoso e claramente imã de confusão (a NPR o definiu como o primeiro “bad boy” da arte), Caravaggio atiçou a ira (de parte) da igreja católica (no auge da inquisição), primeiro por assassinar um desafeto em 1606, segundo por sua vida “blasfema”, pois, bissexual, mantinha um romance com um jovem auxiliar tanto quanto com prostitutas, e, principalmente, por utilizá-las como modelos para suas obras religiosas ao lado de enfermos e ciganos em clima de tristeza, desolamento e violência, algo proibido pelo Concilio de Trento, de 1563 – a Igreja provavelmente perdoaria o crime e faria vista grossa para as questões sexuais, mas recrimanaria a representação artística de seus santos por pessoas mundanas. “L’Ombra di Caravaggio” flagra o período final da vida do pintor, interpretado por Riccardo Scamarcio. O roteiro desenha seu crime como uma emboscada e centra foco no trabalho do inquisidor Ombra (Louis Garrel, deslocado), escolhido pelo Papa Paulo V para analisar o pedido de perdão do pintor. Pessoas da alta sociedade romana (de ricaços como Costanza Sforza Colonna, interpretada por Isabelle Huppert, cuja voz foi dublada, a futuros candidatos ao papado, como o Cardial Del Monte, vivido pelo diretor Michele Placido, ou mesmo um sobrinho do próprio Papa Paulo V, o cardeal Scipione Borghese – grandes obras de Caravaggio foram protegidas por ele e hoje estão expostas na bela Galeria Borghese, em Roma), então, são entrevistadas e contam sobre suas relações com o artista (muitas delas também sexuais). Placido “ilumina espaços escuros” da vida de Caravaggio de forma romanceada (o pintor pouco escreveu sobre si, e muito do que se sabe sobre ele surge de sua extensa ficha policial), o que esvazia o final do filme, hipotético demais, ainda que possível – morto em 1610 aos 39 anos, seu corpo só foi identificado 400 anos depois – numa obra que soa a pontinha pequenina de um enorme iceberg. Assista… e mergulhe na obra. Ela é espetacular (o filme é apenas mediano).
Nota: 6.5
“O Primeiro Dia da Minha Vida”, de Paolo Genovese (2023)
Num primeiro momento, a sensação é de que um motorista de Uber está pegando pessoas em pontos de uma cidade italiana numa noite chuvosa. A coisa toda muda de figura quando percebemos dois policiais em um carro, um homem e uma mulher, numa leve discussão. Ele entra numa cafeteria enquanto ela, no carro, encosta sua pistola na parte inferior do queixo. Antes que ela aperte o gatilho, porém, o tal motorista de Uber a resgata e a “separa de seu corpo” inerte no banco do carro. No final desta noite de muito trabalho ele resgatará quatro suicidas pedindo a eles uma semana de reflexão em que, envoltos em um espaço/tempo em que não é permitido comer nem beber, eles poderão pensar um pouco mais sobre a decisão que tomaram, e, quem sabe, voltar atrás. Esse tal homem (vivido por Toni Servillo, do maravilhoso “A Grande Beleza”) irá mostrar, nestes setes dias, o que acontecerá quando eles não estiverem mais entre os seus, o que eles vão deixar para trás, o que perderão, qual será a reação de amigos e parentes. A policial se chama Arianna, e a perda da filha fez com que sua vida perdesse o sentido; há um rapaz chamado Napoleon, que ganha a vida como um guia motivacional (que não consegue encontrar sentido na própria vida); Emília é uma ginasta condenada a ser sempre segundo lugar, e que vê os sonhos de uma medalha de ouro irem embora devido a um problema nas pernas; por fim, o garoto Daniele é um Youtuber que sofre bullying tanto quanto é explorado pelos pais. Nem mortos, nem vivos, essas quatro almas são convidadas a refletir sobre sua decisão, um tema delicadíssimo e repleto de gatilhos, que Genovese explorou primeiramente num livro de mesmo nome, “Il Primo Giorno Della Mia Vita”, lançado em 2018. O inglês Nick Hornby já havia explorado o tema em “Uma Longa Queda”, de 2005, também com quatro suicidas, e se em seu livro havia gordura demais, e a adaptação cinematográfica se saia melhor (com uso de humor, inclusive), as escolhas de Genovese soam excessivamente reflexivas, mecânicas, frias. Na luta por devolver esse grupo de pessoas à vida, o roteiro racionaliza demais coisas não racionais como a emoção, o amor, a alegria, os pequenos milagres que tornam nossos dias superáveis, o que torna seu desenrolar cansativo, e seu desfecho, artificial.
Nota: 5
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.