texto de Lucas Reis
A violência presente nas entranhas chilenas, fruto de uma ditadura militar cruel e extremamente violenta, tensionam o diretor Pablo Larraín desde o início de sua carreira. “Tony Manero” (2008), seu primeiro sucesso internacional, assim como os posteriores “Post Mortem” (2010) e “No” (2012) lidam diretamente com a brutalidade sanguinária do período. Outro ponto marcante da trajetória de Larraín é seu interesse por política e a vontade de avaliar a intimidade de famílias significativas como em “Jackie” (2016) e “Spencer” (2021), que lidam com os bastidores da família Kennedy e da família real britânica, respectivamente.
Em seu novo trabalho, “O Conde” (2023), há quase uma mistura entre as duas temáticas. Larraín se dedica a radiografar os bastidores da família de Augusto Pinochet, o general ditador que derrubou o presidente comunista Salvador Allende democraticamente eleito, manteve-se no poder no Chile entre 1973 e 1990 e nunca foi julgado por seus crimes. Ainda inseriu o país em uma economia neoliberal de contextos caóticos que são fundamentais para analisar as enormes manifestações sociais que tomaram o Chile desde a década retrasada.
No entanto, em “O Conde” há uma monstruosidade incomum aos trabalhos do diretor. Pinochet é um vampiro que iniciou a vida na França do século XVIII e, desde então, mantém uma vida de contrarrevolucionário. Sempre do “lado errado da história”, o francês se estabeleceu no Chile com o nome de Augusto Pinochet e se tornou o sanguinário ditador. Esse dado de realismo fantástico oferece à obra uma possibilidade de trabalhar com metáforas para compor a imagem do personagem histórico.
Pinochet é pintado como um homem de 250 anos que não entende mais por que deveria continuar vivendo e decide morrer. Ele não quer ser lembrado como um ladrão, embora não veja problemas em ser definido como um assassino, afinal, para ele não há problemas em matar comunistas. Algo que ele diz fazer com prazer, inclusive. O vampiro vive com a esposa numa região desértica e, por lá, também aparecem os filhos que se ressentem da vida eterna do pai e a impossibilidade de receberem a herança que seria de direito – se toda essa riqueza parte de saques e destruição do patrimônio chileno não importa muito para os rebentos.
A localização geográfica é fundamental em “O Conde” para criar uma atmosfera de terror. Para além do frio característico do deserto chileno durante o inverno, a direção de arte cria uma mansão isolada do contato humano e deteriorada por dentro (como é o próprio ditador). Além disso, a fotografia em preto-e-branco remete diretamente aos antigos filmes de monstros que permeiam o imaginário do subgênero. Há, ainda, outro fator essencial para o horror construído no filme, pois foi no deserto do Atacama em que grande parte dos presos políticos chilenos foram enviados e ficaram sob torturas em prisões construídas naquele período. Muitos foram assassinados no local e as famílias não tiveram o direito nem, ao menos, de velar os corpos dos militantes.
A trilha sonora arrepiante conduzida por cordas e a arquitetura composta por corredores estreitos e subsolos secretos são importantes para criar o clima fantasmagórico que ronda o ambiente da mansão de Pinochet. Entretanto, são aqueles corações em potes de vidro que os vampiros colocam nos liquidificadores para tomarem como uma batida que dão a principal dimensão do filme. É necessário destacar que todos os corações representam vidas humanas dilaceradas durante o período ditatorial chileno.
A principal força de “O Conde” é, ao mesmo tempo, a sua principal fraqueza. Pois, se há uma composição depurada de um universo monstruoso que é a característica óbvia para lidar com um ditador estúpido como foi Pinochet, a falta dos sujeitos que fazem parte dessa história retiram um pouco da força que a caracterização monstruosa poderia oferecer.
Na obra-prima “Nostalgia da Luz” (Patricio Guzmán, 2010), há um panorama da geografia do deserto do Atacama para indicar porque os presos políticos foram para tal região. Além da dimensão espacial, há os relatos de presos que sobreviveram ou de familiares dos que foram assassinados que implicam valor humano para toda a barbaridade ditatorial que massacrou o povo chileno por mais de duas décadas. “O Conde” se ressente de humanidade para contrapor a monstruosidade pretendida.
“A Valsa dos Inúteis” (Edison Cajas, 2013) é outro filme chileno que marca um período histórico conturbado no Chile, tratando das manifestações estudantis presentes no país desde o início do século XXI. A história de um jovem estudante e de um ex-militante do período de Pinochet se cruzam e a percepção de que apenas a luta muda a vida se faz presente para os dois. Ao contrário de “O Conde”, “A Valsa dos Inúteis” pinta a figura de Pinochet como um fantasma que ronda o ambiente político, mas que nunca aparece em tela, de fato. Por outro lado, as pessoas comuns agredidas cotidianamente pelo governo ganham o protagonismo.
A ditadura chilena foi marcante por transformar o país em um laboratório neoliberal. Em “A Valsa dos Inúteis”, a ligação dos protagonistas fica clara quando se manifesta que as paralisações estudantis são confrontos com um ideal econômico e social que assombra o país mesmo após o fim da ditadura. Se em “O Conde” não há uma relação direta com a população, não se pode falar o mesmo do neoliberalismo. Há uma evidência óbvia que indica como a política chilena foi afogada por ideais europeus que fizeram do país uma oficina para aqueles países. E, mesmo assim, eles não conseguem esconder o desprezo por nós, latino-americanos.
“O Conde” é um filme-síntese. Seja da carreira de Pablo Larraín, seja do Novo Cinema Chileno que teve o próprio Larraín como principal destaque. Dimensionar o neoliberalismo como a mãe da ditadura no Chile e envolver esse sistema como um movimento cíclico que pode retornar a qualquer descuido é uma bela aposta do roteiro que consolida o confronto com a ditadura de Pinochet até o fim. A falta de um olhar para a luta coletiva desequilibra o que poderia ser uma obra de muita força, mas não minimiza o valor de “O Conde”. Hoje e sempre, é preciso estar atento e forte.
– Lucas Reis é pesquisador de cinema brasileiro. Atua como crítico de cinema, histórias em quadrinhos e televisão. Escreve na Revista Aurora Cine.
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