texto por Ana Clara Matta
fotos de GiuPera Visual Artist
“Se você colocar os discos certos, eles virão.”
Essa versão da famosa citação (errada) do filme “Campo dos Sonhos” (1990), “If you build it they will come”, é como uma promessa, uma profecia que mudou a história da música, originou diversos novos gêneros musicais, alterou nossa forma de curtir obras coletivamente e popularizou diversas formas de expressão pessoal e lazer.
No início, era um radialista, sua voz potente (sem presença corpórea, podendo até mesmo tornar popular um homem negro em um país segregado como os EUA da lei Jim Crow) e sua coleção de discos. Entre discos, o radialista apresentava artistas e introduzia comerciais com um ritmo peculiar em seu discurso. O disc jockey e o mestre de cerimônias se tornaram então, em uma mitose musical, duas pessoas diferentes nos Soundsystems da Jamaica, agitando as festas surpresas realizadas nas ruas do país, o MC avisando as próximas músicas e convocando reações do público.
O DJ e o MC retornaram juntos aos EUA em um modo mais experimental, com duas pickups, o disco se tornando um instrumento musical. Herc, Grandmaster e Bambaata disputando o domínio dos bairros de New York numa batalha de decibéis e com crews cada vez mais disputadas dos agora chamados “rappers”. Com o tempo isso viajou países, etnias, se misturou com outros gêneros. Mas não importa em qual de suas iterações, de Run DMC até Beastie Boys, de New Metal até K-Hip Hop, a origem sempre será um indivíduo e seus discos, um indivíduo e seu microfone. O DJ e o MC.
É uma experiência cada vez mais incomum no mainstream ir a um show de hip hop e ser confrontado pelos elementos fundamentais. A pickup sozinha no palco, elevada. Os rappers no chão do palco, convocando o público, pedindo os gritos ritmados de “eh-yo” e agitando os braços. Ver o Epik High mostrando no Vibra São Paulo que é sim possível entregar uma performance completa e complexa sem tirar o “combo” clássico do hip hop da mira é uma experiência arrepiante. Tablo, Mithra Jin e DJ Tukutz trouxeram sua block party para São Paulo, colocaram os discos certos, chamaram a galera e um público apaixonado, mesmo que (infelizmente) consideravelmente menor do que a capacidade de um Vibra lotado, respondeu e transformou essa festa numa experiência inesquecível.
O Epik High, trio de hip hop fundado em 2003 na Coreia do Sul entre os rappers Daniel “Tablo” Lee (nascido no país, mas criado no Canadá) e Choi “Mithra” Jin, e o DJ Kim “Tukutz” Jeongsik, fez 20 anos depois de sua estreia seus primeiros shows no Brasil, no Rio de Janeiro e em São Paulo, e atraiu um público heterogêneo que refletia profundamente a história de sua carreira. Deixando seus olhos traçarem um panorama do público, você encontrava fãs de hip hop em seus 30, 40 anos, famílias de ascendência coreana que acompanham há anos a carreira do grupo, e entusiastas de K-Pop com seus lightsticks, atraídos pela influência enorme que o Epik High teve na fundação e carreira de grupos focados em rap como BTS e Big Bang.
É difícil montar uma setlist para um show quando tantos dos seus maiores sucessos incluem uma lista ampla de artistas convidados. Para contornar isso, o Epik High condensa as músicas em seus elementos essenciais. Tablo e Mithra Jin apresentaram ao vivo com muita energia seus versos em clássicos como Born Hater e No Thanxx, separados por refrões tocados por DJ Tukutz nas pickups, que ainda preenchia espaços com solos de “scratch” complexos e bem trabalhados. Quando o refrão de Rosario, cantado originalmente pela lenda CL, do 2NE1, soa nas caixas de som do Vibra, um coro de vocalistas da platéia substitui perfeitamente a presença da artista. Esqueçam Gaeko, Yankie, Taeyang, Mino, Simon Dominic, B.I.,Colde- o artista convidado do Epik High nessa noite era o fã brasileiro. Em poucos momentos isso se torna mais claro do que nas duas colaborações com membros do BTS apresentadas no show, “All Day”, faixa deliciosa de “Indigo”, disco solo de RM, e “Eternal Sunshine”, produzida originalmente por Suga e inserida especialmente na setlist dos shows brasileiros da turnê.
“All Day” foi uma de duas performances solitárias apresentadas por Tablo nos palcos paulistanos. Daniel Lee também encheu sozinho o palco com “Eyes Nose Lips”, uma confessional e melódica declaração de ódio para uma ex-namorada manipuladora que funcionou como o coração do show, seu momento de maior conexão com o público, uma catarse coletiva de corações partidos.
A música não era a única atração do show do Epik High. Entre performances, o expansivo Tablo comandava o público com senso de humor, contando histórias, interagindo com pessoas na plateia e comentando reações e coisas trazidas pelos fãs. Era como um pequeno show de comédia, um “roast” de coração leve dividido entre o público e o rapper. Ao fim da apresentação, a banda autografa uma camiseta e Tablo faz questão de deixar claro que escreveu nela “Brasil. Com S.” gerando uma onda de gritos de aprovação. Mithra lança a camiseta, que encontra lar nas mãos de uma fã nas primeiras filas da pista premium.
Para começar uma festa, você só precisa disso – plugar as caixas de som, trazer os discos certos e convocar a galera no microfone. O público pode até não lotar a pista, mas a noite inesquecível está garantida, entre DJ, MC, e sua legião de fieis.
a– Ana Clara Matta (@_ana_c) é editora do Ovo de Fantasma e escreve para o Scream & Yell desde 2016.