texto por Marcelo Costa
fotos e vídeos por Bruno Capelas
A carreira artística em geral é sedutora, mas nada fácil, e a carreira de músico independente, em particular, soa ainda mais desafiadora, e não era necessária uma pandemia para escancarar a fragilidade que já era conhecida por (quase) todos da área, mas já que ela veio: “Temos de arranjar outras formas de existir e crescer para além das apresentações ao vivo. Não podemos ficar novamente nesta situação aflitiva perante o aparecimento de uma nova pandemia”, alertava Pedro Valente, o responsável da Azáfama (uma empresa sediada em Lisboa que se dedica ao agenciamento de artistas), em conversa com Pedro Salgado aqui no site em junho de 2021.
Do lado de cá do Atlântico, artistas independentes respeitados como Thiago Pethit, Karina Buhr e Johnny Hooker (entre outros com “habilidades extraordinárias“) repensavam e colocavam suas carreiras em xeque, e muitos outros buscaram alternativas e jeitinhos para sobreviver em meio a um cenário social caótico, afinal, os boletos não deixaram de chegar. Na estrada desde o século passado, o gaúcho Wanderley Luiz Wildner se virou como pode: ele tinha lançado um disco em janeiro de 2020 (“Canções Iluminadas de Amor”), dois meses antes da pandemia eclodir, e, impossibilitado de fazer shows e rodar o mundo, teve que encontrar uma nova fonte de renda: nascia o Wander Wildner escritor!
Impulsionado por um crowdfunding de sucesso que arrecadou três vezes mais que a meta inicial, “Aventuras de um Punkbrega”, seu primeiro livro, ganhou às ruas em 2021, e logo Wander mergulhou no segundo volume, “Canções Iluminadas de Amor”, lançado em 2022, fruto de outro crowdfunding (os dois estão disponíveis aqui). Agora é a vez de voltar à estrada, e, em sua passagem por São Paulo em uma sexta-feira nublada, Wander, munido de guitarra, microfone, canções e histórias, revelava: “Eu tô gostando de escrever… e agora tenho que parar de escrever para fazer shows (risos)”. A nova turnê, no entanto, tem uma vibe bastante particular: “Vou ler um trechinho do livro, porque esses shows são shows literários, com outra pegada, vocês vão perceber”.
Quem acompanha a carreira do trovador punkbrega, no entanto, já está acostumado a suas apresentações solo apaixonadamente sinceras e repletas de emoção – os shows nos saudosos Café Camalehon (circa 2006/2007 e responsável por um bootleg delicioso que o próprio Wander vendia nos shows) e Sensorial Discos (2017) estão guardados na memória –, mas, realmente, algo mudou, afinal, quem quiser ver um artista feliz é só deixa-lo reencontrar seu público, e, não a toa, a primeira frase que Wander Wildner disse ao microfone assim que tomou seu lugar no palco do pequeno e aconchegante Clandestino Estúdio, na Rua Augusta (lado Jardins), foi: “Vocês vieram! Que legal, vocês vieram…”
Perry Farrel, em sua reencarnação Porno For Pyros, certa vez escreveu que a felicidade é boa por uma hora, mas nessa noite iremos comprovar que ela pode ser boa por mais tempo. Wander inicia relembrando seus anos de Replicantes com “Minha Vizinha”, do álbum “Papel de Mau” (1989), e pira divertidamente na escolha da canção: “Eu fiz o set list, mas quando cheguei aqui e vi o lugar, pensei que não era esse set e… não era essa música que eu deveria ter tocado…” (risos gerais). “Agora a próxima música não combina…” (mais risos). “Bem, quando eu saí dos Replicantes, fiz a banda Sangue Sujo, e eu tinha que escrever as músicas, então comecei a fazer versão, porque era mais fácil”… e dá-lhe “Lonely Boy”, versão da original dos Sex Pistols (“Steve Jones é um cara que admiro muito”, assumiu) presente no clássico “Baladas Sangrentas” (1996).
Após uma faixa mais nova, “Coração em Pólvora”, do álbum “Coração Selvagem” (2021), Wander revela que no primeiro livro ele conta como compôs “Bebendo Vinho”, sua canção mais conhecida, e “no segundo livro conto como recompus ‘Bebendo Vinho’”. Na prática, ele colocou a letra toda no passado (“Eu me entorpecia bebendo vinho, eu seguia só o meu caminho”) num resultado que exemplifica de maneira perfeita sua nova fase, feliz, radiante e repleta de canções iluminadas de amor. A imponente “Com Liniker e Com Desapego”, faixa brilhante do grande álbum “A Vida é Uma Toalha Estendida no Varal” (2016), emociona. “Eu Tenho Uma Camiseta Escrita Eu Te Amo” agita os fãs, como sempre, que cantam junto com o bardo punk.
Em um de seus últimos shows na Sensorial, Wander abriu o set cantando uma versão de “Times Like These”, do Foo Fighters (“Em tempos assim / Você aprende a viver de novo / Em tempos assim / Você se entrega e se entrega de novo / Em tempos assim / Você aprende a amar de novo”) e dessa vez, no Clandestino, não apenas surpreende os presentes com uma versão de “True Love Will Find You In The End”, de Daniel Johnston, como revela que seu próximo álbum será inteiro de covers, com o subtítulo “O Verdadeiro Amor Vai Te Encontrar” (outra faixa presente no álbum vindouro foi tocada na noite, “Sangue Latino”, original do Secos & Molhados – fica a torcida para que a versão de “Dormi na Praça” também esteja no disquinho).
A noite segue com Wander cantando feliz que “não consegue ser alegre o tempo inteiro”, dizendo que tudo que tem “são canções iluminadas” (versão de “Redemption Song”, de Bob Marley) e, ainda, que sua vontade era ser bonito, “mas eu não consigo”. Tem mais, muito mais: “Puertas y Puertos”, “Ritmo da Vida”, “Rezas de Um Marujo” (“Eu já me acostumei a ser o punk da turma / Deixar o tempo passar, esquecer, romantizar”), “Fora da Lei”, “Peyote”, o hino “Rodando el Mundo” (com trecho de “Be Yor Grace”, de Krishna Das), uma tentativa de “O Último Romântico da Rua Augusta” (todo mundo esqueceu a letra), a sempre histórica versão de “Amigo Punk”, da Graforreia, e, para fechar, duas pérolas: “Dani” (de Jimi Joe) e “Boas Notícias” (de Gustavo Kaly).
Durante 100 minutos de canções e histórias (que combinariam mais com o espaço de um bar com mesas e/ou de uma livraria com cadeiras do que com o público em pé, diga-se a verdade), Wander Wildner distribuiu amor, sorrisos e felicidade, artigos cada vez mais raros numa sociedade que se viu deixando a máscara cair com grande parcela da população batendo no peito defendendo orgulhosa e abertamente o ódio, as armas, a violência. Em tempos como esse, a cultura, em geral, e a música, em particular, são companheiros fundamentais, e não deixa de ser comovente assistir a um operário da música, um cara que tem sempre uma mochila a mão e está sempre pronto para partir, num momento feliz após uma intensa tempestade pandêmica que derrubou muitos. Permanecemos e precisamos seguir em frente… caminhando e cantando “com amor em nossos corações”. Afinal, se Wander Wildner está feliz, nós estamos também. Arriba!
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.