entrevista por Leonardo Vinhas
Ainda na infància, Luiz Eduardo Sá ganhou o apelido com o qual seria conhecido em sua “vida pública”: Alf. Também nessa época, começou sua relação de admiração e imersão com o hip hop e a música eletrônica, que, alguns anos depois, se mostraria influente em seu trabalho como integrante do Câmbio Negro, lendária banda do Distrito Federal que combinava rap e rock. E desde 2017, esses gêneros têm dado o tom de seu trabalho solo.
Apesar de ter passado décadas com a guitarra e o formato rock à frente de sua carreira, Alf – que passou a assinar Alf Sá para não se ver perdido nas buscas em serviços de streaming – se alterna entre apresentações solistas eletrônicas e, mais recentemente, a criação de remixes. Já vieram à luz as remixagens de “O Real Resiste” (Arnaldo Antunes) e “Estupefaciante” (Autoramas), e em breve sairão novos, contemplando artistas tão diferentes quanto Jota Quest, Dududa (projeto recente de Chuck Hipólitho) e a banda brasiliense YPU.
Para quem só conhecia Alf Sá de suas bandas, como Rumbora ou Supergalo, ou mesmo do álbum solo “Você Já Está Aqui”, esses remixes podem causar alguma surpresa. Mas, nesse papo rápido com o SY, esse cearense (“nordestino com orgulho!”) radicado em Brasília explica porque essa versão “remixeira” é um desdobramento natural de sua jornada musical.
Você tem feito vários remixes e sua apresentação solo no último Porão do Rock foi toda calcada em uma estética eletrônica solista. O que levou a esse direcionamento na carreira?
Necessidade, curiosidade, possibilidades… Desde adolescente, eu já experimentava com esse tipo de caminho. Já tinha porta-studio, bateria eletrônica, um tecladinho vagabundo e dava minhas cacetadas como produtor e remixer de quarto e isso foi evoluindo paralelamente. Quando comecei a fase solo, mergulhei de vez nesse mundo em uma realidade infinitamente mais avançada. O software que eu uso (Ableton Live), mais do que uma ferramenta de produção, é um instrumento. Trabalho com ele desde 2009 e é o que tenho levado pros palcos desde 2017. Inclusive, acabei de virar professor de uma escola em Brasília (DJ School) que ensina produção musical utilizando essa ferramenta. Quanto à eletrônica, é um estilo de som que adoro desde criança. Minha primeira banda favorita foi o Kraftwerk, aos 6 anos. Não é à toa que acabei de participar do “Um Tributo Brasileiro ao Kraftwerk” organizado pelo Gabriel Thomaz. Sou um grande fã de hip-hop e, pra mim, os melhores rappers do mundo na atualidade são os brasileiros. Também sou fãzaço de dub e vejo a eletrônica no Brasil em um momento incrível, trazendo nossos ritmos para essa linguagem de uma forma super inovadora. O futuro tá aqui. Os remixes são minha forma de colaborar com amigos queridos e talentosos espalhados pelo Brasil, além de grandes mestres como o Arnaldo Antunes. Tá sendo um exercício de criatividade e uma forma de colaboração inestimáveis. Tava sentindo muita falta. Apesar de estar solo, minha natureza é estar em bando.
As canções que você remixou são de artistas com propostas musicais bem diferentes entre si, de Autoramas a Arnaldo Antunes. O que você busca quando cria remixes para essas canções: explorar a estética deles em outras formas, somar algo seu ao que já existe, ou algo totalmente diferente disso?
Primeiro, eu ouço bastante a música e deixo ela me dizer pra onde quer ou pode ir. Eu tento sempre descobrir uma nova possibilidade, mas dentro do que a canção original já propõe na sua essência. Eu, realmente, não me espelho em ninguém para criar esses remixes. É como eu disse pro Chuck quando ele me perguntou como era o meu processo: eu entro pra banda. Eu pinço os elementos indispensáveis e reconstruo tudo em volta. E aí, entra toda uma bagagem de décadas de amor à música de praticamente todos os estilos.
Você mencionou o rap brasileiro como um dos melhores do mundo. Muita gente diz que hoje o rap entrega afronta, contestação e inovação com muito mais contundência que o rock. Como você sente esse tipo de colocação? O rock brasileiro realmente deixa a dever em relação ao que rap consegue entregar?
Como um dos melhores, não. Pra mim, o rap brasileiro é O melhor do mundo. Não vejo ninguém fora do Brasil (principalmente de texto) que chegue ao nível do álbum mais recente do Don L, por exemplo. “Roteiro para Ainouz Vol. 2” é uma obra-prima. O último do Criolo (“Sobre Viver”) é um absurdo de incrível também. “Diário do Kaos”, a música que abre o álbum, transcende o rap, é MPB futurista. Um troço que mexe comigo todas as vezes que eu ouço. Ainda tem Djonga botando fogo no circo e o dedo na ferida, Baco, Black Alien, Emicida. Racionais já são um capítulo à parte. “Sobrevivendo no Inferno” é um dos álbuns que mudaram minha vida. E aí a gente tem formas mais híbridas de expressão como o Baiana System, que pra mim é a maior banda do Brasil já tem tempo, tanto de produção criativa como de apresentação ao vivo. É uma linguagem herdada diretamente de outra grande banda (de rock brasileiro) que é a Nação Zumbi. Eu vejo tudo isso como uma troca cultural a qual o rock é parte importantíssima. Se você perguntar pra maioria desses artistas, todos vão citar a influência de artistas e bandas desse universo. O que acontece hoje em dia tem muito a ver com linguagem tecnológica. Assim como o rock foi fruto (além do contexto social) da invenção da guitarra elétrica, a música do século XXI também é decorrência dos avanços da modernidade. Antigamente, era preciso um caminhão de dinheiro pra comprar equipamento e gravar um álbum. Hoje, um laptop resolve, literalmente, tudo. Isso influenciou diretamente na linguagem e na oferta. O acesso deu vazão pra que os estilos musicais feitos a partir de ferramentas digitais se proliferassem infinitamente. Claro, que existem vários artistas de rock se expressando politicamente. O Ratos de Porão continua firme e forte, Dead Fish, Pitty. Planet Hemp voltou com tudo. O rock foi se transformando e gerando todas essas outras linguagens. A combatividade de tudo que existe hoje é herança disso. O Francisco, El Hombre, uma banda super ativa e politizada, não é uma banda de rock na sua essência? Os últimos álbuns do Caetano (um artista sempre envolvido com política) são claramente influenciados pelo indie. E outra coisa, a gente é brasileiro, não somos obrigados a (e nem devemos) ficarmos presos a uma fórmula. Eu sou muito avesso a essas amarras. É um dos motivos que sou muito fá do Arnaldo (Antunes). Ele faz o som que quiser e ao mesmo tempo tem uma identidade inabalável. “O Real Resiste” é um documento histórico e político do nosso momento e a remix, além do baião que já é a espinha dorsal da composição, é Funk BR, é MPB, é tudo. É música de combate.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. A foto que abre o texto é de José Maria Palmieri.