texto, fotos e vídeos por Bruno Capelas
Escritores, jornalistas e críticos de música já gastaram um bocado de tinta e de kilobytes versando sobre as variáveis que podem influenciar um show de rock. São muitas: do repertório escolhido à acústica do local, passando pela receptividade do público, a sequência de canções e até mesmo as condições atmosféricas de temperatura e pressão. Artistas que se colocam diante de uma plateia após lançar um novo trabalho têm ainda um outro desafio relevante na conta: incorporar um recém-lançado conjunto de temas às suas performances. Era essa última, talvez, a que mais gerasse curiosidade de quem comprou um ingresso para ver o Wilco subir ao palco em Zaragoza, na região central da Espanha. Afinal de contas, a banda havia acabado de lançar, há cerca de um mês, seu mais recente trabalho, “Cruel Country”, resultado de uma imersão pandêmica e pós-trumpiana no estúdio The Loft, em Chicago.
Mas sempre há uma variável que não se pode prever — e em nossos tempos, a imprevisibilidade talvez seja a variável mais constante de todas. Peça fundamental do Wilco na última década e meia, graças a seus solos e barulhos, o guitarrista Nels Cline testou positivo para a covid-19 na véspera do espetáculo, se ausentando de um pedaço da perna espanhola da turnê. Mais do que uma simples ausência, a falta de Nels acrescentou um ingrediente especial à noite, promovendo algo que seria impensável em circunstâncias regulares: um show do Wilco numa formação “à moda antiga”. Mas o que isso significa na prática? Mais ou menos guitarras? Uma formatação acústica? E como o disco novo, cheio de camadas e ruídos operados por Cline, se adaptaria assim junto às favoritas dos fãs?
Eram muitas perguntas, cujas respostas começaram a sair do chapéu de Jeff Tweedy a partir das 21h30, com sol ainda alto nos Jardins de Inverno do Parque Grande José Antonio Labordeta— um espaço com declive natural, muitas árvores e um clima de festa de interior entre velhos amigos. Ao todo, o local devia abrigar por volta de umas 2 mil pessoas, em concerto promovido pela prefeitura local com ingressos a 20 euros (menos de R$ 120, algo completamente surreal no Brasil de Paulo Guedes).
Para iniciar os trabalhos, a banda atacou de cara logo com as duas canções que abrem “Cruel Country”: a bela “I Am My Mother” e a faixa-título, seguidas pela porrada “I Am Trying to Break Your Heart”. Foi uma conexão interessante. Afinal, em estúdio “Cruel Country” soa como uma bifurcação do que o Wilco fez a partir de “Sky Blue Sky” (2007), como se fosse possível um novo começo. No palco, porém, o repertório do disco recém-lançado deu piscadelas para os dois grandes projetos “à americana” do grupo de Chicago, “Being There” (1996) e “Yankee Hotel Foxtrot” (2001) — não à toa, os dois álbuns mais lembrados no setlist, atrás apenas de “Cruel Country”.
De “Being There”, o novo trabalho traz o espírito de rever os Estados Unidos – embora o álbum dos anos 1990 pareça um passeio de carro conversível, enquanto “Cruel Country” esteja mais perto de uma calma viagem de trem. Já de “Yankee”, o disco mais recente do Wilco herda tanto um espírito crítico quanto o conceito de camadas sonoras, ainda que parte desse panorama musical tenha ficado tímido ao vivo em Zaragoza. Parte disso, pode se dizer, talvez seja justamente causado pela ausência de Nels Cline e suas pródigas ambiências. Em seu lugar, porém, o que emergiu foi um conjunto guitarreiro, enérgico, com Jeff Tweedy assumindo os solos de guitarra – o que poderia ser apenas um improviso para um espectador distraído, mas trouxe circunstâncias interessantes para os fãs atentos do grupo.
Entre o início de sua carreira e meados dos anos 2000, a vida de Jeff Tweedy foi marcada por relações complicadas com parceiros instáveis – primeiro Jay Farrar, ainda no Uncle Tupelo, depois Jay Bennett. Desde a saída de Bennett da banda, em meio às gravações de “Yankee Hotel Foxtrot”, o Wilco se tornou um lugar confortável, quase ausente de conflitos, para que ele pudesse explorar outras esferas líricas. Mas, ao mesmo tempo, a banda perdeu parte da energia caótica, confusa e apaixonada que a faz ser uma grande referência da música deste século. Ver Jeff Tweedy ter de ocupar um papel ao qual não estava acostumado, mas podendo exibir seu talento, foi uma oportunidade incrível para quem estava na plateia. Era como se o incômodo de não poder estar em sua zona de conforto (perdão, leitor) envenenasse as guitarras do show – e feliz quem pode vê-lo brilhar em “At Least That’s What You Said”, “Sunken Treasure” e “War on War”, para ficar em apenas três momentos.
A ausência de Nels Cline também abriu espaço para outra dinâmica interessante, com maior presença de Pat Sansone e John Stirratt, normalmente relegados à posição de coadjuvantes. Foi bonito ver Sansone solar com seu banjo, se revezar entre teclas de vários instrumentos e dobrar coros com Stirratt, discreto e charmoso. Sob a luz dos holofotes, os dois fizeram o Wilco se parecer mais como uma banda e menos como um projeto de Jeff Tweedy & Seus Amigos, o que às vezes acontece. Não é só mera questão de destaque individual: em uma banda em que, apesar dos temas sérios, as canções sempre passam por uma esfera afetiva e calorosa, é importante que isso se reflita na forma como seus membros agem no palco, como um grupo de amigos — uma lição que Bruce Springsteen, outro nome forte dessa linhagem, ensina em todo show ao servir, ao mesmo tempo, como mestre de cerimônias e ponto de conexão dos integrantes da The E Street Band com o público.
E se antes da apresentação parecia impensável que o Wilco fizesse um show sem “Impossible Germany”, uma tour de force em forma de guitarreira liderado por Cline, a formação improvisada da noite deu espaço para que a banda abrisse outras janelas líricas, conectando momentos de sua carreira com o novo disco. Em momentos principalmente acústicos, capitaneados pelo costumeiro violão de Jeff Tweedy, foi isso que aconteceu na ligação entre “Please Be Wrong” e “How to Fight Loneliness”. Ou na aparição surpresa de “You and I”. E também na já citada “Sunken Treasure” cuja estrutura baseada em camadas se tornou, em Zaragoza, uma referência explícita para a estética adotada pelo grupo em “Cruel Country”.
Porém, é preciso dizer: ainda há muito espaço para que o novo disco se acomode melhor ao repertório do show. Ficaram de fora, por exemplo, os singles iniciais “Falling Apart (Right Now)” e “Tired of Taking It Out on You”, duas belezinhas que teriam feito bonito no set espanhol. Também não apareceram algumas das canções complexas de “Cruel Country”, como “Many Worlds” e “Tonight’s the Day” – daquelas que o Wilco adora transformar em grandes momentos ao vivo. (Ainda assim, é bom sempre fazer a ressalva: o grupo de Jeff Tweedy é hoje das poucas bandas do mundo que poderiam dar quatro ou cinco shows seguidos sem repetir uma música sequer e, mesmo assim, impressionar o público).
Em meio a tantas dinâmicas e mudanças, muito do que se viu em Zaragoza foi um grupo vivendo, no presente, o futuro do pretérito: quem esteve presente viu não o que o Wilco é todos os dias, mas sim o que ele poderia ser. Talvez a serendipidade de não poder contar com um de seus pilares nas últimas duas décadas possa mostrar à banda um caminho diferente, mais ensolarado, mais caloroso, mais digno do que o próprio grupo busca colocar no mundo. E que fique claro: esse caminho também passa pela presença de Nels Cline, cuja ausência pode ser uma boa oportunidade de rever como deixá-lo mais integrado ao resto do grupo.
Isso não significa que o caminho atual seja ruim – é apenas a percepção de que grandes artistas sempre podem oferecer um bocado mais ao público. E é difícil não pensar nesse mapa mental quando o Wilco deixa o palco pela primeira vez após mais de 20 canções e a dobradinha “Heavy Metal Drummer” e “I’m the Man Who Loves You”. Mais difícil ainda não voltar a essa rota no bis, quando as guitarras tomam a frente de novo e tudo vira festa numa sequência quase irreparável: “California Stars”, “Monday”, “Outtasite (Outta Mind)”, “I’m a Wheel” e “The Late Greats”, petardos que despertam os efeitos da sangria e do tinto de verano e dão à banda o direito de ouvir “olé” da plateia ao deixar o palco. Mas, no apagar das luzes, talvez a melhor forma de entender o Wilco hoje esteja nos versos finais da música com que disse adeus ao público em Zaragoza, aqui em uma tradução livre: “a melhor canção nunca será cantada/ a melhor vida nunca vai deixar seus pulmões/ tão boa que você nunca vai saber/ e nem ouvir no rádio”.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e é autor de “Raios e Trovões – A história do fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum”, editado pela Summus Editorial. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
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– Wilco ao vivo no Parco Della Musica, 2010 em Roma, por Marcelo Costa (aqui)
– Entrevista: John Stirratt e os tesouros submersos dos primeiros dias do Wilco, por Leonardo Tissot (aqui)
– Literatura: as histórias de Jeff Tweedy em sua autobiografia, por Leonardo Tissot (aqui)
– Três vezes Wilco em quatro dias no Brasil (aqui)
– “Sky Blue Sky”, Wilco, um disco setentão para 2007, por Marcelo Costa (aqui)
– “Sky Blue Sky Tour Edition”, Wilco, por Marcelo Costa (aqui)
– “Kicking Television”, do Wilco, uma poderosa banda de rock, por Marcelo Costa (aqui)
– “A Ghost Is Born”, Wilco, um disco chato, chato, chato, por Marcelo Costa (aqui)
– “Wilco (the album)”, Wilco: Jeff Tweedy conquista e ao mesmo tempo desaponta (aqui)
– “Once Around”, Autumn Defense, projeto de John Stirratt e Pat Sansone (aqui)
– Melhores da Década 00: “Yankee Hotel Foxtrot”, Wilco, no segundo lugar (aqui)
– “The Autumn Defense”, The Autumn Defense: música calma para corações roqueiros (aqui)