entrevista por Leonardo Vinhas
Um tributo latino-americano a Os Mutantes. Já ouviu falar dessa história? Talvez sim, já que esse álbum foi lançado em 2010, mas levou 11 anos para chegar às plataformas digitais (e, mais bizarro ainda, jamais foi lançado em formato físico no Brasil, ainda que o projeto tenha nascido dentro de um selo brasileiro). Mas se não, eis a hora: desde 23 de abril, “El Justiciero Cha Cha Cha” está nas plataformas de streaming.
O tributo foi uma ideia originária de Sandro Bello (proprietário da hoje finada Allegro Discos) e do músico Arthur de Faria, também responsáveis por “Vou Tirar Você Desse Lugar”, notório tributo a Odair José lançado em 2006, responsável por reapresentar a obra de Odair José a uma nova geração roqueira, reduzindo parte do preconceito que a obra de um dos melhores compositores brasileiros ainda sofre (relembre esse tributo a Odair José faixa a faixa). Ao projeto se somaram dois argentinos, o músico Manuel Onis e o jornalista Humphrey Inzillo, e então…
…Bem, então seria dizer que tudo deu certo e foi só correr para o abraço, mas a história está longe de ser simples assim. Envolve tanta coisa, que convidamos três das partes responsáveis (Arthur, Manuel e Humphrey) para contá-la com exclusividade ao Scream & Yell.
“El Justiciero Cha Cha Cha” reúne, sob uma excelente engenharia de som e masterização primorosa, versões de clássicos d’Os Mutantes relidos por Café Tacvba, Aterciopelados (com participação de Sergio Dias), Pequeña Orquesta Reincidentes, Pablo Dacal, Fito Paez, Martín Buscaglia, Fernando Cabrera e outros. São músicos de seis países relendo a obra daquela que, se não é a mais conhecida massivamente, certamente é a banda brasileira mais cultuada no mundo. Abaixo, os produtores falam do tributo “El Justiciero Cha Cha Cha”.
Arthur de Faria: Há exatos 15 anos, o selo Allegro, de Goiânia, lançou “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”, o tributo a Odair José do qual eu participei [com a faixa “Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)”]. Foi daí que eu propus ao Sandro Bello, dono do selo, a mesma ideia: “Sandro, tem um monte de gente hispanohablante que adora os Mutantes, em tudo quanto é país. Vamo fazer a mesma ideia?” No caso do Odair, era mostrar para os amantes do “bom gosto” que muita gente que eles consideravam de “bom gosto” amavam o Odair. Agora seria mostrar pro público brasileiro que muita gente foda de fora do Brasil amava os Mutantes, que naquele momento estavam esquecidos – estávamos ainda em 2005, nem tinha saído o disco do Odair, que só sairia no mesmo 2006 em que os Mutantes voltariam a ser assunto a partir do show no Barbican, em Londres. O Sandro, claro, adorou a ideia. Eu conheço muita gente do Uruguai e Argentina, trabalho muito principalmente em Buenos Aires, desde os anos 1990, então a minha lista inicial tava cheia de uruguaios e argentinos. Mas a ideia era muito mais ampla. Daí eu resolvi chamar o Humphrey, que eu conheço desde adolescente (ele fez um dos cursos de história da música brasileira que volta e meia eu ministro na capital argentina e a gente ficou muito amigo). Nesse momento, ele estava trabalhando na Rolling Stone argentina e muito conectado com as Rolling de língua hispânica. Era o cara perfeito pra gente expandir os horizontes. Dito e feito: expandimos.
Humphrey Inzillo: O Arthur é músico, jornalista, escritor e também um grande agregador de mundos artísticos. Eu o conheci em um dos seminários sobre MPB no Centro de Estudios Brasileños de Buenos Aires. Eu tinha pouco mais de 20 anos e construímos uma bela amizade, um pouco epistolar e outro tanto forjada em encontros entre Buenos Aires e Porto Alegre. Quando ele me falou do projeto do tributo pela primeira vez, sua proposta inicial era que eu escrevesse as liner notes, o que para mim foi um orgulho. Porém, mais tarde, generoso como é, ele me convidou para participar da produção. Os tempos, como se nota, foram bem relaxados. Em 2007, Manuel Onís lançou um disco extraordinário, “Bagunça”. Ele tinha sido integrante do El Horreo, uma banda dos anos 90 que percorria o legado psicodélico d’Os Mutantes, e também tinha morado no Brasil, onde se tornou fã da banda. Ele ainda tocou baixo no La Chicana, um grupo que foi um dos pilares de uma nova geração tanguera na Argentina. “Bagunça” me parecia uma síntese de todas as músicas que me então me interessavam, e é até hoje um dos meus discos favoritos. Eu o recomendei com muito ímpeto na Rolling Stone, e depois o convidei a participar do tributo. Como éramos vizinhos, acabamos virando amigos também. A presença dele deu um novo impulso ao projeto, e o Arthur adorou que ele se juntasse à produção, já tendo o Sandro Bello como produtor executivo. Tivemos um orçamento modesto, porém indispensável para poder realizar o álbum.
Arthur de Faria: Foram três anos, sem ninguém ganhar nem um tostão. O disco saiu em vários países, mas a burocracia brasileira era absurda. Precisava a autorização reconhecida em cartório de cada versão feita em língua espanhola. Daí tu imagina a gente pedindo pro Fito Páez, que já tinha gravado de graça, pra ele ir num cartório reconhecer firma, e depois mandar pelo correio, sendo que o disco já tinha saído na Argentina, nos Estados Unidos e em mais alguns outros países. Emperrou tanto a coisa que o Sandro acabou desistindo, fechando o selo, e nunca recuperando nem o investimento inicial que ele fez para pagar estúdios, cachês de músicos acompanhantes e as passagens do Arnaldo Antunes pra ele ir gravar em Buenos Aires com a Liliana Herrero (nem hotel teve, hehehe).
Humphrey Inzillo: O disco foi lançado em CD em 2010, nesse momento o formato ainda fazia sentido. Agora muita gente não tem nem leitor de CD em casa, nem mesmo no computador. Mas tudo bem, “El Justiciero, Cha, Cha, Cha” foi editado na Argentina pelo selo Ultrapop, na Colômbia pelo selo MTM, e nos Estados Unidos e Canadá pela Nacional Records. Ainda assim, nunca havia estado em uma plataforma de streaming. Isso dá uma “segunda vida” ao disco, que esperemos que chegue a ouvidos curiosos de todo o mundo.
Arthur de Faria: Por que os Mutantes? Olha, nunca nem passou pela cabeça outra ideia. Nunca se pensou em ganhar mercado ou dinheiro. E deu certo: não ganhamos!
Humphrey Inzillo: Ainda que Os Mutantes sejam um grupo brasileiro, de algum modo também são uma banda universal. Mais que pensar em termos estritamente territoriais, prefiro pensar em termos de pátria musical ou de melomania universal. Nesse sentido, acredito que a lista permite que os “iniciados” em Os Mutantes, uma banda cult em todo o mundo, conheçam a releitura de muitos artistas de Argentina, Colômbia, Espanha, México y Uruguai. Essa retroalimentação do público é um dos objetivos do tributo.
Manuel Onís: Os artistas brasileiros se somam a essa pátria musical. No caso do Arnaldo Antunes, foi uma combinação da escolha da curadoria com o desejo dos próprios Arnaldo e Liliana de fazerem algo juntos. Nós gostamos muito da obra dele e nos pareceu que sua inclinação a buscas experimentais era ideal para versionar Os Mutantes. Quando soubemos que ele e Liliana já queriam fazer coisas juntos há tempos, vimos ali a oportunidade perfeita. O Antunes viajou para Buenos Aires exclusivamente para essa gravação. Já no caso do Sergio Dias, foi uma ideia nossa de convocá-lo para gravar com os Aterciopelados, que tinham escolhido “Vida de Cachorro”. Eles não se conheciam e foi maravilhoso gerar essa colaboração, e também foi uma honra contar a participação de um membro d’Os Mutantes.
Arthur de Faria: Se fôssemos fazer um tributo a um músico de outro país, eu, de minha parte, não teria dúvida, e acho que o Humphrey concorda comigo 100%, escolheria o Fernando Cabrera. O Cabrera é um extraordinário compositor uruguaio, que passou anos conhecido só em Montevideo (ainda que eu tenha LPs dele desde os anos 1980, hehe) e que, há uns 10 anos, e muito por mérito do Humphrey e da Liliana Herrero, foi se tornando cada vez mais um nome fundamental entre os compositores das duas margens do Rio da Prata, cada vez mais gravado. Seria um bom momento pra fazer um disco assim com ele.
Manuel Onís: Não temos planos concretos no momento de fazer nada do tipo, mas se tivermos uma boa ideia e conseguirmos um bom orçamento para leva-la a cabo, será genial. Foi um prazer trabalhar com Humphrey e Arthur, então da minha parte a porta está aberta para nos aventurarmos em novos projetos.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.