Música: “At War With The Mystics”, o disco mais político do Flaming Lips

 

por Marcelo Costa

“De tudo que circula aqui e ali nesse enorme amontoado de terra e água vagando na via-láctea, quatro bandas merecem a caracterização de “geniais”, das que estão em atividade. Usando o passado como trampolim para o futuro, Radiohead, Flaming Lips, Mercury Rev e Wilco são o que de melhor o rock anda produzindo em um período de franca decadência artística.” Marcelo Costa, Janeiro de 2003

Mais de mil dias se passaram desde que escrevi a observação do parágrafo de abertura, e muita coisa mudou desde então. A primeira, e bastante significante, é de que aquele período de franca decadência artística era apenas uma entressafra, e que simbolizados pelo nascente Novo Rock, a música pop mundial tendia a autocópia. O Novo Rock envelheceu (piada besta, mas necessária), e bandas que eram apenas promessas lançaram discos beirando à perfeição (notadamente, Franz Ferdinand e Black Rebel Motorcycle Club). Mas o que aconteceu com o quarteto visionário do parágrafo de abertura? Muita coisa.

O Radiohead voltou à mídia com um álbum que misturava o lado guitarreiro de sua estréia com “Pablo Honey” aos climas etéreos pós “Ok Computer“. Sintomaticamente, “Hail To The Thief” era o Radiohead voltando ao tempo presente. Do outro lado, o Wilco tornava-se mais alternativo (e menos country) ao abandonar o passado de vez e rechear de riffs guitarreiros canções inacabadas. O resultado foi o bom, porém difícil, “A Ghost Is Born“, que só encontrou tradução no ótimo disco ao vivo “Kicking Television”. E o Mercury Rev, após o ultra-produzido “All Is Dream”, voltava a centrar foco em canções, no também ótimo “The Secret Migration’. Enquanto isso, o Flaming Lips passeava pelo mundo com seu circo animado chegando até ao Brasil.

O trio Wayne Coyne, Steve Drozd e Michael Ivins havia parido, em 2002, o sensacional “Yoshimi Battles The Pink Robots”, que recebeu da excelente revista britânica Uncut, o título de melhor disco dos cinco anos de vida da publicação. Mais: o álbum ganhou cinco estrelas e meia de cotação, sendo que a nota máxima é cinco. “Yoshimi Battles The Pink Robots” levava o Flaming Lips para um passeio pelo mundo maluco do vocalista Wayne Coyne, que discorria sobre robôs que quase podiam amar, e debatia lógica, futuro, amor e ódio, tudo isso embalado no que se convencionou chamar de rock espacial, algo que Syd Barret estaria fazendo nos anos 2000 se tivesse nascido em 1985. Ou então, pop excêntrico, uma corruptela particular deste que vos escreve para definir músicas que são difíceis demais para a massa de hoje em dia, mas que não seriam para o público de 1966/1967 (vide o sucesso de “Sgt. Peppers” e “Pet Sounds’).

Algumas dúvidas até aqui: 01) O que uma banda faz após uma obra-prima? 02) O futuro é futuro até quando, já que não dá para ficar usando o passado como trampolim eternamente. Ou dá? 03) A grande massa não está pronta para bandas de pop excêntrico? 04) A Britney parece tãoooo excêntrica (brincadeirinha, brincadeirinha). Uma coisa de cada vez. Há vida após uma obra-prima, e “At War With The Mystics”, décimo segundo álbum do Flaming Lips (e terceiro da fase mais viajandona do trio), que acaba de ganhar edição nacional, comprova isso. O futuro continua lá, no futuro, mas a relação com o presente se faz necessária: “At War With The Mystics” é o disco mais político dos Lips, influenciado por tudo que anda acontecendo de estranho nessa bolotinha azul chamada Terra. É também o álbum de maior êxito comercial do grupo de Oklahoma, já que “Transmissions From the Satellite Heart” (1995) – dos hits “Turn It On” e “She Don’t Use Jelly” – não entrou nem no Top 100 da Billboard, e “Yoshimi” bateu no número 50 vendendo 508 mil cópias. “At War With The Mystics” estreou na 11ª posição do Top 200 da Billboard, um marco em se tratando de um álbum tão esquisito, esquizofrênico e genial quanto poderia ser um disco do Flaming Lips.

No entanto, o sucesso sempre traz a dúvida: o Flaming Lips amaciou seu som para as massas? A resposta é não. “At War With The Mystics” amplia o território espacial aberto pelos geniais “Soft Bulletin” (1999) e “Yoshimi” (2002), e os arranjos malucos continuam a comandar a banda, porém, o space rock do trio ganha tons politizados. Em entrevistas, Coyne garante que irá jogar confete em seu público sempre, no entanto, viver sobre o comando de George W. Bush não é de animar um cidadão norte-americano, nem dos outros países do globo terrestre. Para o vocalista, não dá para fazer uma canção bonitinha, orquestrada e tal, tendo à frente do governo de seu país (a principal força do mundo capitalista) um fulano tão execrável. É o mundo externo influenciando de forma decisiva a arte em seu momento máximo: o da criação. Esse sentimento, exorcizado na turnê passada com uma cover de “War Pigs” do Black Sabbath, permeia “At War With The Mystics”, e faz desde álbum dos Lips o disco mais “tempo presente” da banda em anos e anos.

A carta de intenções já havia sido lançada de forma romantizada no single “Do You Realize?”, do álbum “Yoshimi”, e ganha uma pseudo-seqüência temática com “Yeah Yeah Yeah Song”, que abre “At War With The Mystics” questionando: “Se você pudesse fazer com que todos fossem pobres só para você ser rico, você faria? Yeah Yeah Yeah. Se você soubesse todas as respostas e pudesse entrega-las às massas, você faria? Yeah Yeah Yeah. Você é louco? É muito perigoso fazer o que se quer, porque não nos conhecemos e não sabemos o que faríamos”. Batida de bateria acelerada e vocais sobrepostos marcam a canção, que caí sobre “Free Radicals”, a próxima, cujo riff de guitarra e uma bateria mínima introduzem a canção enquanto Coyne aponta o dedo na cara e manda seu recado: “Você acha que é um radical, mas você não é tão radical. Na verdade você é um fanático”. A canção cresce e os backings passeiam nas saídas de som.

“The Sound of Failure/It’s Dark… Is It Always This Dark?” tem a morte como tema, e cita Britney Spears e Gwen Steffani na letra. Para o personagem (e para o próprio Wayne Coyne), as musas teen nunca vão poder acalmar uma alma atormentada com a morte, nem transformando seus hits em versões musak, aquelas famosas canções de elevador comandadas por teclados. Aqui, o arranjo é de um lirismo enorme e os dedilhados se destacam. A grandiosidade ainda passeia por “My Cosmic Autumn Rebellion” (com boas guitarras na parte final) e “Vein of Stars” (que abre com violão e vai crescendo), mas fora a leveza de “Mr. Ambulance Driver” (uma das grandes canções do álbum), o final do disco é guitarreiro e funk, começando com as ótimas “It Overtakes Me/The Stars Are so Big and I Am so Small… Do I Stand a Chance?” e seguindo com “Haven’t Got a Clue” e “The W.A.N.D. (The Will Always Negates Defeat)”, sendo que esta última volta a questionar o poder e o ato de conseguir respostas através do uso de armas.

Entre o lado suntuoso dos teclados espaciais e a opção guitarreira (que retorna à banda, ausente desde o ótimo “Clouds Taste Mettalic” de 1995), “At War With The Mystics” torna-se um álbum totalmente relacionado com o tempo claustrofóbico em que vivemos. Wayne Coyne dá um basta nas historinhas japonesas e tenta provar que até um maluco drogado viajandão percebe o quão George W. Bush é prejudicial para a humanidade. Isso é sério. Porém, ao contrário de outros, Coyne (assessorado com maestria por Steve Drozd e Michael Ivins) não deixa a parte melódica de lado, e o resultado é um álbum musicalmente inteligente e textualmente importante. É, ainda, pop excêntrico, pois por mais que a bela estréia na Billboard mostre que o mundo está começando a aceitar os Lips após 23 anos, “At War With The Mystics” é, ainda, um álbum difícil para a empregada que fica escutando no radinho de pilha o programa de seu locutor de voz aveludada. E provavelmente não têm ideia da periculosidade de um homem como George W. Bush. Você tem, caro leitor?

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina o blog Calmantes com Champagne

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