por Marcelo Costa
Eu não fumo cigarros, nem gosto muito de café. Mas eu já fumei: eu tinha 16 anos e achava cool ter um cigarro entre os dedos, como se aquilo me trouxesse mais segurança ou sei lá o que (até hoje me pergunto de que adiantou ler Shakespeare e Hesse antes dos 15, mas tudo bem). Porém, convenhamos: fumar é cool, mas é preciso ter prazer em jogar tabaco para dentro do pulmão, algo que eu não tinha. O charme durou uns sete meses. Já com o café a relação é mais próxima. Não costumava tomar puro. Em casa, era sempre café com leite. Porém, depois que você começa a morar sozinho e a trabalhar demais, o café surge com um bom companheiro. No entanto, não posso exagerar: a gastrite reclama quando os baldes de café começam a se tornar freqüentes, mas, assumo: até gosto um pouco de café, mas na escala de líquidos consumíveis, acho que ele não fica nem no top ten.
“Sobre Café e Cigarros” (“Coffee and Cigarettes”, 2003), do cult diretor Jim Jarmusch, joga todo esse parágrafo anterior no cinzeiro. O filme é uma constante tentação ao espectador, tendo como foco 11 pequenas histórias em preto (café) e branco (cigarros) que se passam, invariavelmente, em uma mesa em que pessoas alternam tragadas em bastonetes nicotinosos com goles de cafeína fervida em água quente, e açúcar ao gosto de cada um. Porém, mais do que um filme, “Sobre Café e Cigarros” parece um passatempo do diretor alemão. São pequenas histórias que brincam com as personas de algumas celebridades, entre elas, Roberto Benigni, Steve Buscemi, Iggy Pop, Tom Waits, Cate Blanchet, Jack White, Meg White e Bill Murray.
O embrião do filme foi um curta-metragem filmado por Jarmusch em 1986, para o Saturday Night Live. Em “Strange to Meet You”, um Roberto Benigni com cara de psicopata partilha com Steven Wright algumas doses de cafés e cigarros. No curta, um dos melhores do filme, o duo chega a conclusão que tomar café a noite acelera os sonhos. O papo termina de uma forma deliciosamente nonsense. Com esse curta filmado, Jarmusch guardou a ideia durante anos, filmando sempre quando tinha uma oportunidade. Assim, em 1989, Steve Buscemi encarou os gêmeos Cinqué e Joie Lee (filhos do diretor Spike Lee) num boteco para contar uma incrível história de Elvis Presley (sim, sim, ele está vivo!).
Três anos depois foi a vez de Iggy Pop e Tom Waits se encontrarem em um boteco, ao lado de uma jukebox, e ficarem trocando idéias impagáveis. “Cara, conheci um baterista sensacional. Assim que o vi tocando, pensei: preciso apresenta-lo para o Tom”, diz Iggy. “Você está querendo dizer que o som da bateria dos meus discos é uma porcaria? É isso?”, responde Tom Waits, sério e impagável. O sarcasmo flutua no ar junto com a fumaça, que, alias, nem devia marcar presença nesse quadro, já que tanto Tom quanto Iggy haviam abandonado os cigarros por ordem médica. “Mas fumar um cigarro é um exemplo de força”, provoca Tom Waits. “Só quem parou de fumar pode acender um cigarro e dizer: estou fumando um cigarro, mas eu já parei. E só para provar que sou forte vou fumar apenas um”, conclui o pensamento Tom Waits. Incrédulo, Iggy Pop aceita um cigarro e os dois astros parecem ter orgasmos quando a nicotina invade o corpo. Hilário. O final do esquete é muito engraçado.
É de 1992, também, o mediano quarto episódio do filme, em que Joe Rignano e Vinny Vella passam o tempo discutindo os malefícios do cigarro. Desse ponto em diante, “Sobre Café e Cigarros” sofre uma queda sintomática, principalmente a partir dos episódios filmados em 2003. Entre os mais fracos estão o quinto episódio (com Renée French) e o sétimo (com o duo White Stripes enchendo o saco). Dos medianos, temos o sexto (com os atores Isaach de Bankolé e Alex Desças), o oitavo (com Cate Blanchet fazendo papel duplo e brincando com a fama) e o último (com William Rice e Taylor Mead transformando café em champagne num trecho bastante poético). Os dois únicos trechos que mantém o pico inicial são o nono (Alfred Molina e Steve Coogan) e o décimo (RZA e GZA, do Wu-Tan Clan, e Bill Murray, absurdamente impagável).
No nono, o americano Alfred Molina recebe o inglês Steve Coogan nos Estados Unidos. Para quem não se lembra, Steve Coogan faz o papel principal do filme “24 Hour Party People“, encarnando o produtor Tony Wilson. Na época de seu lançamento, Peter Hook, do New Order, chegou a dizer que o papel da pessoa mais chata de Manchester (Tony) havia ficado com a segunda pessoa mais chata da cidade (Steve). Em “Café e Cigarros”, Jarmusch apenas reforça a tese. Molina quer se aproximar de Coogan de qualquer maneira, mas o inglês (que dispensa o café e toma chá) não corresponde a amizade. Em um momento crucial, Molina pede o número do celular de Coogan. “Seria muito horrível da minha parte não te dar o número?”, diz Coogan. Até que toca o telefone de Molina. “Oi, Spike, tudo bem?”. A conversa segue, close no rosto de Coogan, maluco de curiosidade e querendo ouvir alguma coisa do papo, sem sucesso. Quando Molina desliga o telefone, Coogan pergunta: “Você estava falando com o Spike Lee?”. Molina responde: “Não, não”. Então Coogan solta a respiração, completamente aliviado, até que Molina emplaca: “Era o Spike Jonze”. Sem palavras…
Não dá para considerar “Coffee and Cigarettes” um filme. Autor de obras fortes como “Estranhos no Paraíso” (1984), “Down by Law” (1986), “Mystery Train” (1989) e “Dead Man” (1995), Jarmusch apenas exercita sua maneira de ver o mundo em pequenos relatos cheios de cinismo, tédio, banalidade e silêncios. O ponto mais interessante do filme, no entanto, é sua correlação com a realidade. Jarmusch filma as personas de alguns ícones do cinema e da música em um momento de pretensa realidade. A brincadeira acaba sendo a grande sacada do filme, afinal, será que Iggy Pop é realmente daquele jeito, ou está atuando como Iggy Pop? No entanto, no fiel da balança, por mais que existam pontos em comum entre os esquetes, e as referências tentem aproximar alguns trechos, “Coffee and Cigarettes” carece de unidade. Os momentos bons são muito bons. Os ruins são muito ruins. E o resultado é mediano. Vale com diversão, mas já é costume esperar um pouco mais do que diversão de diretores como Jim Jarmusch. “Coffee and Cigarettes” é apenas um filme feito entre cafés e cigarros, um passatempo no intervalo de obras maiores.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne