por Rodrigo Salem, de Los Angeles
Nada no mundo do Beastie Boys é normal. Quando três garotos brancos de Nova York decidiram largar o hardcore para investir no hip-hop, o gênero musical não era este mastodonte pop de hoje em dia. Em 1986, o trio vendeu mais de 10 milhões de cópias do disco de estreia, “Licensed to Ill”, o primeiro álbum de rap a figurar na parada da Billboard. Dois anos depois, largaram o selo (Def Jam) que ajudaram a criar por não aguentarem mais a pressão para lançar um segundo trabalho pouco tempo depois de fazer uma extensa turnê. Largaram Nova York, foram para Los Angeles, se reinventaram, investiram em vídeos musicais ousados com diretores reais e fictícios, lançaram discos fundamentais para a compreensão do hip-hop dos anos 1990, gastaram toda a grana acumulada, ganharam mais, voltaram para Nova York, viraram ícones musicais e, em 2012, perderam uma das suas mentes criativas, Adam “MCA” Yauch, vítima de um câncer nas glândulas salivares. Foi o fim.
E um começo. Adam “Ad-Rock” Horovitz e Mike “Mike D” Diamond juntaram os cacos da morte do amigo e, mesmo tendo finalizado as atividades do Beastie Boys como grupo musical, seguiram em frente. Escreveram uma biografia detalhada chamada apenas de “Beastie Boys Book” (editada em 2018 e ainda inédita no Brasil) e, agora, lançam a versão “cinematográfica” da obra: um documentário dirigido pelo cineasta (e amigo de longa data dos Beasties) Spike Jonze (“Quero Ser John Malkovich”, “Ela”), que captura a dupla diante de uma plateia falando sobre a trajetória da banda, enquanto as imagens são projetadas numa tela de cinema.
De certa maneira, o filme “Beastie Boys Story”, disponível no Apple TV+ desde a sexta-feira (24), combina com os valores da trinca de artistas: criatividade acima de megalomanias e orçamentos absurdos. São valores do punk que se perpetuaram por alguns nomes do rap e que, no momento em que o bedroom pop toma conta do mundo, estão mais válidos que nunca. Permanece o mesmo carisma que MCA e Ad-Rock levavam aos seus shows. O bom humor é mais acentuado: tem um momento hilário quando Adam se lembra da sua tentativa de virar ator hollywoodiano no filme “De Volta para Casa”, de 1989, logo depois de “Licensed to Ill”. O filme “Beastie Boys Story” é um Ted talk dos Beastie Boys, despojado como os clipes de Jonze – tanto que ele deixa alguns erros – e repleto de participações especiais e boas histórias. Não é um documentário normal. Nem poderia ser.
Assim como minha entrevista com Ad-Rock e Mike D. Apesar de morarmos os três em Los Angeles, a pandemia e o distanciamento social nos impediram de nos encontrarmos para conversar. O jeito foi apelar para o Zoom, como boa parte do mundo corporativo. Mas isso também não foi normal. Mike D, em determinado momento, sai da frente da câmera do seu computador e ficamos (eu e Ad-Rock) sem entender. Alguns segundos depois, ele retorna e diz: “Acabei de ver dois gaviões fodendo no meu jardim. Eles pousaram e começaram a foder”.
O que é mais Beastie Boys que uma entrevista (exclusiva para o Brasil) planejada para falar sobre a carreira de uma das bandas mais bem-sucedidas do hip-hop que termina gerando assuntos como “sexo entre pássaros”, óculos 3D e como um falso cineasta está perdido em algum lugar do mundo. Esse é o mundo do Beastie Boys. E você lê (quase) na íntegra, sem muita edição. Afinal, nada é normal mais de qualquer maneira.
Onde vocês estão no momento?
Ad-Rock: Ambos no sul da Califórnia.
Mike D: Estamos em um lugar legal, ainda bem.
Como estão lidando com a situação?
AR: É tenso, fodido. Mas estamos bem. Temos sorte de estarmos neste lugar e de termos muito espaço.
Falando sobre o documentário, quando vocês decidiram o formato de apresentação ao vivo? Foi durante a turnê que fizeram para divulgar o livro “Beastie Boys Book”?
MD: Lembro que o formato não surgiu até Spike [Jonze, diretor do longa] nos filmar no fim da turnê do livro. Então, o primeiro desafio foi como pegar essas mais de 500 páginas e contar uma história em duas horas. Depois de fazermos essas apresentações e a publicação do livro, fomos para San Francisco, Los Angeles, Nova York e Londres e os shows pareciam funcionar bem com a plateia. E Spike estava envolvido, então pensamos: “Será que deveríamos filmar isso? Como podemos fazer funcionar?” Passamos vários meses reescrevendo com Spike e Amanda [Adelson], nossa produtora. Então, ficamos um tempo atuando e, inicialmente, pensávamos que Spike estava documentando esse show ao vivo, que era esse o plano. Na ilha de edição, perceberam o que funcionava e o que estava muito bidimensional. Então, por que não colocar os óculos 3D e fazer diferente, nos colocando falando sobre o que estava acontecendo na época do que mostramos na tela?
AR: Certo, e os óculos 3D saíram do nosso orçamento.
E vocês iam lançar em IMAX…
AR: Sim, estava previsto para sair em IMAX, o que é uma droga [não ter acontecido]. Eu estava realmente querendo ver o filme desta maneira. Acho que era a ideia de ver as pessoas que ouviram nossas músicas em determinados momentos das suas vidas e dar um lugar com o mesmo clima dos nossos shows, talvez fumando um pouco de maconha medicinal antes de ir para a sessão com os amigos. Então, tínhamos essa ideia de ver as pessoas todas juntas para ver o filme e agora elas estão vendo o filme juntas, mas separadas. (risos)
Vocês sempre foram muito visuais. Chegar ao produto final foi difícil?
AR: Não muito. Apenas tínhamos ideias estúpidas que achávamos que seriam engraçadas. Então, Spike tinha mais ideias estúpidas e queria essa tela gigante atrás de nós. Mas nunca fomos muito longe, porque estávamos apenas documentando a apresentação que fizemos.
MD: Algumas coisas foram cortadas, Adam.
AD: Sim, mas ideias visuais como as de “Os Guarda-Chuvas do Amor”?
MD: Ah, sim. Não era isso. Mas tínhamos essa tela gigante pra caralho.
AR: A ideia de Spike, e isso talvez esteja no filme e eu não me lembro, era de nos colocar andando na rua em frente a uma tela gigante de cinema.
MD: Acho que isso ficou.
AR: Então, temos uma ideia visual. (risos)
MD: O que eles cortaram foi a introdução no ringue. Era um grande momento visual, Michael K. Williams e Lena Dunham e outros convidados tocavam Bob Dylan conosco no palco para um pequeno quadro. Também cortado.
Eles usaram algo nos créditos, não?
MD: Verdade, tem o do Michael K. Williams nos créditos.
Adam, como foi revisitar suas raízes como ator em “De Volta Para Casa” (“Lost Angels”)?
AD: Muito obrigado por mencionar isso.
MD: Eu também preciso te agradecer por mencionar isso.
AR: Vou resumir minha atuação em uma palavra: impecável. Sou um rato de palco, estou atuando o tempo todo, então foi fácil para mim. A parte difícil foi levar Mike pela mão durante todo o processo (risos), porque ele me perguntava o tempo todo o que eu achava daquilo como ator, o que ele deveria fazer. Sinto que o ajudei.
MD: Você ficava o tempo todo, “Yo, não me atrapalhe, filho!” (gargalhadas)
AR: “Você está na minha bolha mental, Mike. Cai fora”. (mais risos)
MD: Você literalmente estava na atitude “não fode comigo, cara. Estou no meu papel agora.”
AR: Sim.
MD: “Nem chegue perto de mim”.
AR: Sou um ator ruim. Tentei algumas vezes e, depois de fazer esses shows com Mike, sinto que chegamos à conclusão de que ambos somos atores ruins.
Achei vocês excelentes no filme.
AR: Bem, obrigado. Mas a parte que tínhamos de memorizar as falas e proferi-las, não conseguimos fazer isso.
MD: Não sei se somos os piores atores, mas não somos os atores mais comprometidos do mundo. Existem atores que são muito preparados…
AR: A gente estava quase dormindo. (risos)
MD: Sim, apenas nos dê uma xícara de café e acordamos.
Foi estranho se ver na tela amadurecendo como uma banda e falando sobre isso para uma plateia?
AR: Nós passamos tanto tempo no livro que nos acostumamos a olhar antigas fotografias e vídeos. Foi ele que nos levou àquela época. Não, sei… Acho que é como qualquer pessoa de 50 anos olhando velhas fotos de quanto tinha 20 e poucos anos. Estou bem mais bonito hoje em dia, então foi fácil para mim. (risos)
MD: Você está dizendo que envelheceu bem?
AR: Sim, fantástica e graciosamente. Sou um pedaço de mau caminho e todo mundo sabe.
MD: Acho que você ficou mais rabugento. (risos).
(Ad-Rock deixa o microfone no mudo e responde ao amigo, provavelmente com vários palavrões.)
Você está no mudo.
AR: Ok, é estranho olhar para fotos de quando você tinha 20 anos, é estranho fazer parte de uma banda que toca na frente de 30 mil pessoas. A porra toda é estranha.
MD: Concordo, mas sempre fomos muito agradecidos de trabalharmos juntos e de podermos trabalhar com Spike neste processo inteiro, porque não ficamos imediatamente confortáveis com isso. Era diferente para nós dois. E acho que foi a mesma coisa de quando Yauch era vivo: nos reunimos para trabalhar com amigos e saboreávamos o fato de estarmos juntos enquanto produzíamos algo. Aqui estamos, décadas depois, com a oportunidade de comentar sobre as coisas que fizemos, más ou ruins ou mais ou menos. Merdas que foram engraçadas e merdas que achávamos engraçadas na época, mas que não eram engraçadas de verdade. Somos agradecidos só por ter essa oportunidade.
Vocês considerariam fazer um documentário sem Spike Jonze?
MD: Antes de tudo isso tomar forma, conversamos um pouco. Havia uma ideia de fazer uma série de episódios documentais, mas claro que falamos com Spike, porque Yauch iria dirigir e Spike seria o único diretor de fora. Seria ótimo ter o tio de Yauch [o alterego cineasta do músico, Nathanial Hornblower, diretor de vários clipes dos Beastie Boys] trabalhando no projeto, mas…
AR: Não conseguimos encontrá-lo.
MD: Não conseguimos encontrá-lo e mesmo se tivéssemos conseguido, não tem como saber o estado em que está. E ninguém nos daria dinheiro para fazer um filme com Hornblower neste momento. Desculpa, preciso falar isso. Ele não é bancável. Precisaria ter um seguro, ele é maluco.
AR: Um parafuso frouxo na engrenagem.
MD: Então, sim, Spike esteve no projeto desde o começo. O lance com ele é que não precisamos explicar muita coisa, pois ele esteve próximo em boa parte da nossa história e é um amigo. Não explicamos nada para ele e vice-versa.
Há momentos emocionantes no filme, mas a maior parte dele é feita com muito bom humor. Foi isso que ajudou a banda a enfrentar as dificuldades ao longo dos anos?
AR: Sim, é importante rir com seus amigos, de verdade. E a coisa mais importante desta banda de três amigos era fazer o outro sorrir.
MD: Sério. Tempos como esse que estamos vivendo nos ensinou a dar valor às coisas que perdemos, como estar com os amigos. E tivemos isso por muito tempo.
[Mike sai da frente câmera]
AR: Acho que todos nós vamos esquecer de como nos parecemos, apenas lembraremos desse ângulo estranho [da câmera do Zoom]. Quando nos encontrarmos pessoal, vai ser: “Uau, você está tão diferente.”
[Mike volta para a conversa]
MD: Acabei de ver dois gaviões fodendo no meu jardim. Eles pousaram e começaram a foder.
AR: Você tem pássaros fazendo sexo na sua casa? Caramba.
MD: Fico pensando por que eles precisam fazer isso no chão?
AR: Acho que você pode dizer com certeza que eles estavam fodendo.
MD: Espero que tenha espaço suficiente para eles mandarem ver.
AR: Animais estão se lixando para isso. Eles não dão a mínima para covid-19, estão rindo de todos nós.
MD: “Vocês precisam se distanciar socialmente, enquanto nós estamos fodendo”. (risos)
Mudando de assunto, vocês foram para o Brasil duas vezes. Alguma lembrança especial do país?
MD: O que me lembro de verdade é que passamos um período incrível no Brasil, principalmente da última vez que fomos com nosso produtor, Mario Caldato Jr. Ele estava morando no Rio, então encontramos pessoas maravilhosas e músicos incríveis. Foi quando pudemos curtir o estilo de vida do Rio de Janeiro e fazer a tour.
Em que lugar vocês colocam o Beastie Boys na história da música?
MD: Não sei se nos cabe falar onde o Beastie Boys está na história. Somos agradecidos por tudo e acho que, ao lançarmos o livro e o filme, nós continuamos a trabalhar como uma banda. Trabalhamos ainda com nossos amigos e nos encontramos sempre. Fazemos essas coisas todas, mas sempre nos perguntamos como podemos fazê-las um pouco diferentes.
Há histórias sobre um disco nunca lançado que vocês teriam guardado. Vocês têm material para isso?
MD: Sim, temos músicas inéditas o suficiente para vários discos. Então, em algum momento, eu e Adam vamos começar a mexer nessas gravações. Estamos conversando.
– Rodrigo Salem, um jornalista brasileiro trabalhando em Los Angeles