resenhas por Marcelo Costa
Título chinês: Dung Che Sai Duk (1994)
Título inglês: Ashes of Time
Título no Brasil: Cinzas do Passado
Após estrear com o filme policial “Conflito Mortal” em 1988, que fez sucesso no circuito local de Hong Kong, e chamar a atenção da crítica internacional com seu segundo longa, o excelente “Dias Selvagens” (1990), o cineasta chinês montou uma produtora para filmar este épico wuxia no deserto de Gobi com roteiro inspirado na famosa obra “The Legend of the Condor Heroes”. A produção megalômana começou em 1992 e em 1994, endividado e com o filme não concluído, Kar-Wai escreveu, dirigiu, produziu e lançou um filme de baixo orçamento (o deliciosamente ágil “Amores Expressos”) que saiu em julho enquanto “Cinzas do Passado” só estreou em setembro – no final de 1993, para levantar grana, ele já havia usado o elenco inteiro na produção de uma paródia cômica de “Cinzas do Passado” dirigida por Jeffrey Lau. O resultado final é um filme atípico do que se espera de Kar-Wai, afinal é um épico wuxia, gênero que mistura fantasia e artes marciais e que o Ocidente pôde se aproximar em “O Tigre e o Dragão” (2000), de Ang Lee, e “O Clã das Adagas Voadoras” (2004), de Zhang Yimou, mas que pouca relação tem com os desencontros amorosos em solitários espaços urbanos vistos no cinema tradicional do cineasta. “Cinzas do Passado” se passa na China antiga e é sobre perdedores do amor… numa época medieval. O filme é dividido em cinco atos e Kar-Wai provoca ao colocar como protagonista (e humanizar) Ouyang Feng, que no livro é um antagonista cruel e odiado, e aqui, mesmo mantendo sua frieza e crueldade, exibe um coração partido. Na quinta história, alguém comenta: “Se o amor é uma competição, fui um perdedor desde o início”, no que a mulher que partiu o coração de Ouyang Feng comenta: “Sempre me achei vencedora, mas olhei no espelho e vi uma perdedora”. Infeliz, ela adoece. Não espere felicidade. Não há. Mas há um grande filme épico romanticamente trágico aonde é possível encontrar os perdedores de Kar-Wai entre passagens incríveis de fotografia que renderam a Christopher Doyle o prêmio no Festival de Veneza (o trabalho de Chris também foi reconhecido no Golden Horse Awards e no Hong Kong Film Awards – neste último, o filme ganhou três das nove categorias a que fora indicado). Insatisfeito com o resultado final de “Cinzas do Passado” desde seu lançamento em 1994, Wong Kar-Wai resolveu reeditar o filme e, após encontrar os negativos originais deteriorados em 1998, saiu em busca por cópias em salas da China e no exterior. Depois de conseguir encontrar alguns rolos, ele passou cinco anos entre restaurar, corrigir a cor e remontar o filme, que foi relançado como “Cinzas do Passado – Redux” em 2008, com sete minutos a menos (93 minutos contra os 100 do primeiro lançamento).
Nota: 7
Título chinês: Chung Hing Sam Lam (1994)
Título inglês: Chungking Express
Título no Brasil: Amores Expressos
A produção de “Cinzas do Passado” foi tão custosa e longa que, nos intervalos, Wong Kar-Wai escreveu, finalizou e lançou este filme (antes!). No total, ele gastou três meses para terminar “Amores Expressos”, que era centrado em três histórias, mas apenas as duas primeiras foram filmadas (a terceira renderá o filme seguinte do cineasta). Trata-se de um Wong Kar-Wai clássico com edição a lá videoclipe, cortes frenéticos, filtros e ângulos estranhos, romances incertos, chuva constante, Hong Kong, câmeras lentas e, claro, cores fortes. “Amores Expressos” conta a história de dois policiais, o 223 e o 663. O primeiro logo no início promete: “Me apaixonarei por ela dentro de 57 horas”. Ela, no caso, é uma traficante jurada de morte que acabou de esbarrar nele numa fuga (Brigitte Lin, que também está em “Cinzas do Passado”). 223 não sabe que ela é criminosa e quer se apaixonar para esquecer May, que terminou com ele num 01 de abril (“Achei que fosse mentira”, ele dirá) – o espectador suspeitará que ela nem existe. Para esquecê-la, 223 acumula potes de abacaxi com vencimento em 01 de maio (ele quer esquecê-la em 30 dias, e comerá todos os potes na data) e se apaixona fugazmente. Menos nonsese, a história do sonhador 663 (interpretado por Tony Leung, o ator favorito de Wong Kar-Wai, que está em 7 de seus 10 longas) o flagra sendo abandonado por uma bela aeromoça. Ele até tenta seduzir Faye (a cantora Faye Wong, que voltará a colaborar com Kar-Wai em “2046”), uma jovem atendente de lanchonete, mas desiste, e passa o tempo desejando que a ex volte. Então a ex, sabendo que ele é cliente da lanchonete, deixa com Faye uma carta de despedida com sua cópia da chave, que Faye toma para si e começa a visitar o apartamento do policial quando ele está no trabalho, visando redecorar o ambiente tirando tudo que remeta a ex, e colocando coisas suas. O final (de um filme urgente e delicioso) será um dos raramente felizes no cinema de Kar-Wai. “Amores Expressos” foi indicado em 11 categorias do Hong Kong Film Awards e ganhou quatro (concorrendo, inclusive, contra “Cinzas do Tempo”, que levou três prêmios): Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator (Tony Leung, que também levou o Golden Horse Awards) e Melhor Edição. Duas curiosidades: a trilha sonora foi responsável por apresentar o dream pop ao público chinês – Cocteau Twins virou febre na cena local – e quem distribuiu o filme nos EUA foi a empresa de Quentin Tarantino, admirador de Kar-Wai.
Nota: 8
Título chinês: Do Lok Tin Si (1995)
Título inglês: Fallen Angels
Título no Brasil: Anjos Caídos
História escrita inicialmente para fazer parte de “Amores Expressos”, mas cortada durante a produção para não alongar demais o filme, “Anjos Caídos” mantém as características principais de forma exibidas na produção anterior, mas também explora tonalidades (de cores e edição) que serão utilizadas e ampliadas em “Amor à Flor da Pele” (2000). A ligação com o filme anterior é direta já que o ator Takeshi Kaneshiro, que interpreta o policial 223 em “Amores Expressos”, retorna aqui em uma das duas histórias do filme como He Zhiwu, um ex-policial que ficou mudo ao comer um abacaxi enlatado que passou da validade, e se tornou um delinquente vivendo de bicos ilegais (conexão niilista que ditará o tom contrastante entre as duas obras). Ele vive na Chungking Mansions, habitação real conhecida como a mais barata de Hong Kong, e se apaixona por Charlie (Charlie Young, que também está em “Cinzas do Passado”), uma garota que vive um turbulento fim de relacionamento. Juntos eles atravessam noites enquanto ela lamenta o amor perdido, e ele aguarda uma chance. Nos intervalos, He Zhiwu toma sorvete com o pai, que está nas últimas. Na outra história, um matador profissional (que também vive na Chungking Mansions) chamado Wong Chi-ming (o ator e cantor Leon Lai) está querendo se aposentar, mas sua agente (a atriz e ex-miss Michelle Reis) não está muito confortável com a situação, e planeja vingança. Há humor, tiroteio (com molho de tomate respingando na tela), perseguição, tensão e muito mais drama e desespero nestas duas histórias do que em todo o filme anterior, o que sugere acertada a divisão da trama em dois filmes, concedendo leveza a “Amores Expressos” e impacto a “Anjos Caídos”, uma obra que flagra quatro almas abandonadas vagando por uma Hong Kong tempestuosa enquanto, entorpecidos por uma felicidade artificial, fugaz e insatisfatória, aguardam o final de uma existência inexistente. Kar-Wai, porém, preferia ter filme um filme só: “Para mim, ‘Chungking Express’ e ‘Fallen Angels’ são um filme que deveria ter três horas de duração. Sempre achei que esses dois filmes deveriam ser vistos juntos. Os personagens principais são a própria cidade, a noite e o dia de Hong Kong. ‘Chungking Express’ e ‘Fallen Angels’ juntos são o brilhante e o escuro de Hong Kong”, definiu o diretor posteriormente. “Anjos Caídos” recebeu nove indicações no Hong Kong Film Awards e levou três: Melhor Atriz Coadjuvante (Karen Mok), Melhor Fotografia (Chris Doyle) e Melhor Trilha Sonora
Nota: 8.5
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
Leia também:
– Filmografia comentada: os 26 filmes de Billy Wilder (aqui)
– Filmografia comentada: os 25 filmes de François Truffaut (aqui)
– Filmografia comentada: os 24 filmes de Federico Fellini (aqui)
– Filmografia comentada: os 10 primeiros filmes de Godard(aqui)
– Três filmes: Domingos de Oliveira 1966, 2002, 2011 (aqui)
– Três filmes: Domingos de Oliveira 1971, 1998, 2005 (aqui)
– Três filmes: Irmãos Coen 1984, 1987, 1991 (aqui)
– Três filmes: Martin Scorsese 1977, 1981, 1993 (aqui)
– Três filmes: Audrey Hepburn 1953, 1956, 1964 (aqui)
– Três filmes: Jean Renoir 1937, 1938, 1939 (aqui)
– Três filmes: Howard Hawks 1938, 1941, 1944 (aqui)
– Três filmes: Howard Hawks 1940, 1952, 1953 (aqui)
Belas resenhas. “Chungking Express” foi o primeiro passo que dei no universo de Wong Kar-Wai e não saí mais. O diretor se tornou um dos que mais admiro e o filme citado está, facilmente, na minha lista de 5 melhores filmes assistidos em toda minha vida. Adoro ver aquela Hong Kong insana que ele retrata nos filmes e o contraste de que mesmo naquela multidão diária, existem pessoas solitárias.