por Ana Clara Matta
“It is because knowing what I know now, it’s hard to write about a love story with a broken heart.”
“Girl in a Band: A Memoir”, autobiografia de Kim Gordon lançada pela Dey Street Books em fevereiro, não é um daqueles “tijolos” perfeitamente cronológicos que gastam capítulos e capítulos com cada assinatura de contrato, gravação de álbum ou turnê internacional. Na verdade, é difícil rotular esse livro como a autobiografia de uma rockstar ou como a história de uma banda de sucesso. “Girl in a Band: A Memoir” é um livro curto e confessional, escrito de maneira tão crua que chega a deixar no leitor uma leve sensação de voyeurismo. Como o Dom Casmurro de Machado de Assis, Kim tenta olhar para o passado (e dissecar momentos específicos e escolhidos de maneira completamente subjetiva) para entender o que descobriu no presente. Procura no ruído branco o tique taque da bomba que parecia ativada desde a sua juventude, e que, quando terminou sua contagem, implodiu seu casamento, sua banda e o amor que tinha pela costa leste dos Estados Unidos.
Grande parcela dos livros autobiográficos são histórias de sucesso, e, dessa maneira, é fascinante ler (na era da autoajuda) uma intensa confissão de fracasso como a de Kim e do Sonic Youth. Essa história se torna, de maneira nada óbvia, ainda mais potente como autoajuda (fora de qualquer sentido derrogatório) porque revela a força da artista visual, cantora, baixista e compositora perante esse conjunto de ruínas e sua capacidade não de se reinventar (clichê), mas de permanecer fiel a tudo que acredita desde a juventude e a sua própria voz e expressividade.
Quem comprar “Girl in a Band: A Memoir” (“A Garota da Banda” no Brasil, lançamento do selo #?Fábrica231, da Editora Rocco) buscando novos insights sobre a carreira do Sonic Youth (uma banda tão complexa que merece MUITOS insights e guias) pode se decepcionar. A música divide o protagonismo nas páginas com vários elementos, e os capítulos sobre a banda estão aglomerados no fim do livro, separados pelos títulos de diferentes músicas escritas e cantadas por Kim na discografia da banda. Ela se estende mais na análise e explicação dessas músicas específicas, como “Little Trouble Girl”, “Tunic”, “Kool Thing” e “Swimsuit Issue”. O maior enigma, porém, é musical: a inserção de um capítulo que contém apenas a letra completa de “Kotton Krown”, do disco “Sister” (1987). Esse capítulo parece funcionar como um epitáfio irônico do casamento de Kim e Thurston. É perceptível o simbolismo forte que o nome desse disco, “Sister”, carrega para Kim – engloba sua relação complicada e abusiva com o irmão esquizofrênico, sua admiração por Karen Carpenter e seus ideais feministas.
Kim traça constantemente um paralelo interessante entre o seu relacionamento com Thurston e seu amor pela cidade de Nova York. Dessa maneira, “Girl in a Band: A Memoir” conta a história de duas desilusões amorosas – uma relativa a um homem, sua co-dependência e seu caso extra-conjugal compulsivo, a outra relativa a uma cidade violenta e gentrificada, tomada pelo mundo pretensioso e falso da arte contemporânea (um mundo que habita cada página do livro). Tudo que era doce se torna amargo em um só golpe, com o fantasma do relacionamento habitando a cidade, e o fantasma da cidade se recusando a abandonar o relacionamento após a mudança do casal para uma pequena cidade de Massachussets.
“I’ve been reading about the italian architect and designer Aldo Rossi, who believed that cities never shake their histories, that they preserve the ghosts of their pasts through time.”
O retrato do casamento de Kim e Thurston é bem unilateral e brutal – nomes são pouco ocultos, tropeços são apontados em histórias bem vívidas e descritas com clareza. Resta pouco espaço para interpretação enquanto Kim nos guia por sua jornada emocional. Sua postura passiva e conciliatória perante os homens da sua vida (seu irmão, seu marido, sua banda) é contrastada com seu poder de expressão na música e na arte, e abre espaço para reflexões sobre a opressão feminina na sociedade e sobre a própria visão midiática da postura “fria e desconectada” de Kim no palco, característica que faz parte de sua imagem de ícone no rock. Duas visões de arte estão sempre sendo negociadas no livro: 1) a arte que surge condicionada por tudo que aconteceu com a pessoa e se torna espelho de quem ela é na vida cotidiana 2) a arte que surge como escape e espaço de inversão completa de atitude, uma arte escapista que gera o parágrafo mais bonito do livro, sobre a experiência de um show para o público.
“Is what we get out of a performance today any different now than it was then? No, it’s the same thing: the need for transcendence, or maybe just a distraction – a day at the beach, a trip to the mountains – from humdrum life, boredom, pain, loneliness. Maybe that’s all performance ever was, really. An unending kiss – that’s all we ever wanted to feel when we paid money to hear someone play.”
Quem gosta de umas pitadas de polêmica nos livros autobiográficos que lê não vai se decepcionar. Kim traça pequenos perfis de várias personalidades, cada uma com um tom específico. Kurt Cobain é revelado como amigo e personalidade par, similar a de Kim, e Courtney Love recebe uma luz bem negativa nas descrições da escritora. Lana Del Rey é apontada como alguém que não sabe nada sobre Feminismo e replica interpretações erradas do movimento, e o compositor Danny Elfman (ex-Oingo Boingo, autor de dezenas de trilhas sonoras e ex-namorado de Kim) é tingido de nostalgia.
Um trecho é especial para o brasileiro. Kim separa o primeiro capítulo de seu livro para descrever com detalhes o ambiente do infame show final do Sonic Youth, em Paulínia, no festival SWU em 2011. Como uma boa crítica cinematográfica, esse capítulo fará você rever o show inteiro e dessa vez ter uma experiência completamente diferente. Os olhares, as posturas, tudo ganha novo sentido. E revendo o show, você se pegará fazendo o mesmo que Kim: escondido atrás da difusão de todos os pedais e efeitos, encontrando o tique taque da bomba armada.
– Ana Clara Matta (@_ana_c) é editora do Rock ‘n’ Beats e do Ovo de Fantasma
Leia também:
– “1991 – The Year Punk Broke”: difícil não se apaixonar por Kim Gordon (aqui)
– Thurston Moore em São Paulo: “Vocês estão sentindo o gosto do inferno?” (aqui)
– Faixa a Faixa: “Murray Street”, do Sonic Youth (aqui)
– Free Jazz 2000: Sonic Youth promove sonho no formato de show de rock (aqui)
– Claro Que é Rock 2005: Sonic Youth cansa em um show sonolento (aqui)
– “Sonic Nurse” bate Keane e Muse, mas nada que o Sonic Youth já fez (aqui)
– “Between The Times And The Tides”, um belo disco de Lee Ranaldo (aqui)
– “Demolished Thoughts”, Thurston Moore parece mais interessado em sossego (aqui)
– Intimismo e espontaneidade valorizam “Sonic Youth: Sleeping Nights Awake” (aqui)
– Sonic Youth no Top 7 Scream & Yell: Disco 2006 (aqui) 2009 (aqui) Show 2009 (aqui)
Não sou fã de autobiografias. Nem de Sonic Youth. Mas estou quase comprando o e-book por conta desse texto…
Me empolgou e deixou curioso.
Abraco,
Vinicius
Gostei da resenha, aumentou ainda mais minha ansiedade para ler Girl in a Band.
Li o trecho do primeiro capítulo publicado em The Cut dias atrás (http://nymag.com/thecut/2015/02/kim-gordon-on-the-pain-of-performing-with-her-ex.html), e achei que Kim escreve muito bem, de uma forma visceral e que gera empatia no leitor.
Assistindo o The Year Punk Broke já se notava uma empatia entre Kim Gordon e o Kurt. Mas agora não tem jeito, vou ter que rever o show do SWU – que vi ao vivo em meio uma manada de fãs do Megadeath e Pantera – e ler o livro.