por Leonardo Vinhas
A percepção que a maioria de nós, ocidentais, temos da música oriental passa por vagas noções de “exotismo”. Pior ainda: se dissermos que há artistas que mesclam a música do Oriente Médio com pop, é provável que o pensamento se direcione a pastiches baratos de trilha para aulas de dança do ventre ou a ainda mais imprecisa ideia de world music. Então é bom você saber que a banda libanesa Mashrou’ Leila não cai em nenhuma dessas duas categorias, e até brinca com a primeira colocação no clipe da canção “Lil Watan”.
Formado em 2008, o Mashrou’ Leila (cujo nome também pode ser grafado como Mashrou3 Leila, ou ????? ????, em seu idioma original) nasceu de uma jam convocada pelo trio Andre Chedid (guitarra), Haig Papazian (violino) e Omaya Malaeb (teclados). A eles se somaram outros músicos, dentre os quais permaneceram o vocalista Hamed Sinno, o baixista Ibrahim Badr, o guitarrista Firas Abou Fakher e o baterista Carl Gerges.
O septeto começou a tocar suas composições em pequenos clubes e festas universitárias, e a resposta cada vez mais positiva incentivou-os a se dedicar à banda tanto quanto possível – o que não é muito, já que, mesmo lotando grandes espaços em seu país natal e na vizinhança (e já tendo excursionado pela Europa e pelo Canadá), nenhum dos jovens integrantes vive de música. O baixista Ibrahim Badr, inclusive, mora nos Estados Unidos (onde estuda no MIT), e ocasionalmente tem que ser substituído por músicos contratados.
Mas e o som? Bem, é pop. Ou “pop árabe”, como eles preferem. Apesar dessa definição simplista, a receita é elaborada. Em linhas gerais, baixo e bateria criam a cama na qual se depositam riffs e melodias, que tendem a vir do violino de Haig Papazian. As guitarras e o teclado fornecem pequenos detalhes e, mais raramente, texturas. Essa fórmula (predominante, mas não exclusiva) faz com que muitas canções pareçam jams editadas, permitindo que os versáteis e marcantes vocais de Hamed Sinno contem sua história.
E mesmo que o idioma seja uma barreira para os muitos que não dominam a língua árabe, a interpretação do moço assegura a atenção do ouvinte, passando por temas como sátira política, crônica social e relacionamentos hetero e homo (Hamed é o primeiro músico assumidamente gay no cenário pop do Oriente Médio e “Shim El Yasmine” é considerada a primeira canção de amor gay do pop árabe).
O primeiro disco, lançado em 2009, levava o nome da banda e tinha os hits “Fasateen” e “Embembelala7”, e junto com canções mais acessíveis, ostentava pausas e andamentos lentos. “Raasuk”, de 2013, tem uma sonoridade mais expansiva e andamentos mais ágeis, bem como letras mais sombrias. Gravado no Canadá, é uma grande aposta da banda. Mas nenhum dos dois cativa tanto quanto o sensual e bem resolvido EP “El Hal Romancy”, de 2011. Disponível para download gratuito no site da banda (http://mashrou3leila.com/download), é composto por seis faixas que seduzem de imediato, revelando surpresas e belos detalhes a cada nova audição. No EP, nota-se o quão longe a música do Mashrou’ Leila pode chegar, e foi justamente por causa dele – e das bem-sucedidas apresentações ao vivo – que os libaneses conseguiram criar uma expectativa para “Raasuk”.
O mais recente lançamento da banda ainda não foi oficialmente lançado no Ocidente – o plano é fazê-lo em fevereiro de 2014. Mas encontra-se disponível no Oriente Médio desde setembro, e é a respeito dessa diferença que começamos nossa conversa com o guitarrista Firas Abou Fakher, realizada com longos intervalos entre o começo de setembro e o final de dezembro de 2013.
Por que há um hiato tão grande entre o lançamento ocidental e o oriental de “Raasuk”?
“Raasuk” foi gravado entre o verão e o outono de 2012 (inverno e primavera no Brasil) e escrito ao longo de um ano antes disso. É o nosso primeiro álbum a ser escrito sabendo que há ouvidos querendo escutá-lo. Desde o começo nós queríamos que ele tivesse um lançamento mundial adequado, e isso significa procurar distribuidores, imprimir CDs, pensar nas variações da arte e nas decisões de marketing. Então neste momento estamos nos encontrando e discutindo a melhor forma de lançá-lo fora do mundo árabe, já que este último é um mercado ao qual estamos acostumados, tornando o lançamento mais familiar e levemente mais rápido.
Como você acaba de dizer – e outros integrantes da banda também o fizeram em entrevistas – os últimos anos foram passados “escrevendo meticulosamente” esse álbum, com a pretensão de que ele “escapasse de seu próprio gênero”. Em termos práticos, o que isso quer dizer? Ou, em outras palavras: qual o resultado de uma mudança de rumo tão elaborada?
Bem, antes de tudo, são dois longos anos que se passaram desde “El Hal Romancy”, e a região toda testemunhou eventos que marcarão a história e que provavelmente estão apenas começando a amadurecer. Mas nós, como indivíduos e como banda, também crescemos, envelhecemos e estamos prontos para procurar novos lugares para nossa música, nossas letras e nosso som. Acho que é muito importante para os artistas se afastarem do que lhes é familiar, desafiar o habitual e o que já foi tentado, e isso é algo que estamos nos empurrando a fazer constantemente.
O EP “El Hal Romancy” soa mais focado e mais maduro que o primeiro álbum, e ao mesmo tempo, mais acessível. Também foi algo intencional?
Veja bem, isso certamente estava em alguma parte de nossas cabeças na época, mas estávamos simplesmente compenetrados em produzir material novo que não tínhamos quaisquer “intenções” manifestas então. Creio que é natural para os artistas amadurecer e ganhar foco conforme o tempo passa.
Vocês também já disseram, desde antes do lançamento, que o disco é uma declaração política e social. Mas os outros álbuns não eram também declarações?
Sim, de certa forma eles eram. Acho que a diferença é que eles eram apenas broncas e emoções pessoais. Creio que dessa fez estávamos mais interessados no conceito de “declaração”, particularmente no que diz respeito ao mundo árabe, onde os últimos dois anos foram povoados por manchetes, slogans e brados públicos. John Lennon enxergava poder na ideia de criar slogans para as multidões e no modo que elas se comportam e interagem entre si e dentro de suas comunidades, e penso que isso é algo do qual o Oriente Médio é rico.
“Raasuk” necessitou de crowdfunding. Foi um álbum caro, gravado em Montreal (Canadá), em um grande estúdio. Como vocês conseguiram tantos apoiadores, principalmente nesses tempos bicudos que o Oriente Médio vem atravessando?
Nossa campanha no [site de crowdfunding] Zoomaal tinha uma mensagem muito clara: ajude-nos a mudar a paisagem do pop árabe. Ajude-nos a transformar os moldes padronizados das celebridades do pop árabe, e ajude-nos a consegui-lo proporcionando os fundos para lançar e comercializar nosso álbum. Acredito que existe uma grande desconexão entre a juventude árabe e a mídia que supostamente os representa. Os jovens são fortes, sinceros e dispostos a tomar as ruas e serem ousados. A mídia é cansada, e interessada apenas em reproduzir a si própria e aos seus produtos. Até agora, fizemos o álbum, prensamos, imprimimos os encartes, organizamos e divulgamos de forma ostensiva em Beirute, e também lançamos nosso mais recente vídeo musical (“Lil Watan”). Agora vem a turnê de lançamento internacional, que começará por Amã [na Jordânia] em janeiro e seguirá para Europa e América do Norte. Isso tudo só é possível devido a dedicação e generosidade dos nossos fãs e das pessoas que nos apoiaram via Zoomaal.
Vocês já se posicionaram fortemente contra o download ilegal, e justificam isso lembrando o quanto é difícil para vocês fazer um disco. Ao mesmo tempo, “El Hal Romancy” está disponível para ser baixado gratuitamente no site de vocês. Onde está o equilíbrio nessa proposta?
Não creio que sejamos oponentes tão ferrenhos [ao download ilegal]. Claro que um de nossos objetivos é nos tornarmos uma banda capaz de sustentar a si própria e continuar produzindo música e arte, e por isso ter ganhos monetários a partir das vendas é importante. Mas também cremos que espalhar nossa música por qualquer meio possível é importante. Infelizmente ainda não somos capazes de fornecer nosso álbum para qualquer parte do mundo, e é por isso que sinto que muitas pessoas recorrem ao download ilegal de nossos discos, mas isso é algo que esperamos mudar com “Raasuk”.
Ter um cantor que é assumidamente homossexual e falar sobre questões sexuais é algo que me parece arriscado no Oriente Médio. Reconheço que podemos interpretar de forma equivocada muitas informações que nos chegam daí, mas de qualquer forma me parece uma postura bastante ousada. Assim, gostaria de saber como a banda enfrenta isso e a polêmica que inevitavelmente vem junto.
Não discutimos nenhuma “questão sexual”, somos quem somos e infelizmente isso ainda é algo polêmico no Oriente Médio.
Em 2010, vocês fizeram uma apresentação consagradora no Byblos, o maior festival de música do Líbano. Na ocasião, vocês dividiram o line up com nomes como Gorillaz e Caetano Veloso. Que tal a experiência de terem sido a primeira banda libanesa a ser headliner do festival?
Na época, éramos muito jovens ainda, e recebemos uma oportunidade imensa que é a de poder fazer um show como o de Byblos junto com nomes internacionais. Foi, de fato, a primeira vez que escalaram uma banda libanesa para encerrar o festival, e o risco que eles [da organização] correram é algo que dá grande esperança às bandas que estão começando agora, da mesma forma que nos deu esperança para seguir em frente. Trabalhamos incrivelmente pesado para fazer um show que estivesse par a par com os grandes nomes internacionais que estavam tocando nas outras noites, e isso segue sendo um destaque em nossa curta carreira.
Quais são bons nomes para se prestar atenção no pop árabe atualmente?
Estamos escutando muitos talentos locais. Who Killed Bruce Lee é uma banda que está fazendo um ótimo trabalho, assim como os iniciantes Loopstache e Postcards. Em relação à música cantada em árabe (nota: os citados anteriormente cantam em inglês), são poucos os exemplos, mas os Soapkills estão sempre na lista, assim como Hindi Zahra e Souad Massi.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell
Leia também:
– Turismo: Bem-Vindo ao Oriente Médio, por Leonardo Vinhas (aqui)