texto, fotos e vídeos de Bruno Capelas
Dona de uma trajetória capaz não só de mudar os rumos da história do rock português, ao propor um retorno à última flor do Lácio em tempos de anglicismos e ao unir “religião e panque roque”, a gravadora FlorCaveira realizou, às cinzas do Carnaval, sua primeira expedição organizada no Brasil. Além de um festival de dois dias com palestras e pocket shows na Igreja Batista do Povo, na Vila Mariana, em São Paulo, o selo idealizado pelo pastor e músico Tiago Cavaco em 1999 realizou uma apresentação especial na quinta-feira, 6 de março, no Porão da Cerveja, sob os auspícios do jornalista Ricardo Alexandre.
“Perguntei ao Tiago o que ele precisava. Ele disse que precisava de uma tomada, mas que se não tivesse, tocariam de forma acústica”, contou aos sussurros o autor de “Dias de Luta”, em uma frase que explicita bem o espírito “do it yourself” da noite. Com clima misto de bar e squat (ou “casa ocupada”, como diriam os lusos), o inferninho – uma das gloriosas portinhas que movimentam a cena paulistana nestes tempos pós-pandêmicos – foi mais que propício para o tom “panque” da celebração.
A noite uniu a brasileira Quase Famosos (primeira contratação estrangeira da FlorCaveira) à formação fixa do quarteto Cavaco, Guel, Filipe Sousa (d’Os Pontos Negros) e Joel Silva (da HMB). Juntos, os quatro amigos lusitanos se revezaram no palco para apresentar as canções de Guel, dos Novos Americanos (a nova banda de Filipe) e de Milagres no Coração, nome que Cavaco decidiu usar para englobar as canções de suas muitas personalidades. Vale o aviso: além de usar o nome Cavaco, o pastor da Igreja da Lapa, em Lisboa, também já se apresentou por aí com nomes como Tiago Guillul, Tiago Lacrau (o vocalista d’Os Lacraus, que tem um disco lançado pelo Selo Scream & Yell), O Rapaz do Sul do Céu, Amamos Duvall e uma porção de outras personalidades. “Freud explica. Ou Fernando Pessoa”, brincou Cavaco a certa altura.

Dona de um EP de estreia gravado ao vivo em Carapicuíba, a Quase Famosos abriu os trabalhos mirando diretamente o revival do punk-pop da virada dos anos 1990 para os 2000. Seja nas letras ou nas melodias, a banda capitaneada por Matheus Noborikawa não têm medo de citar Charlie Brown Jr. (na canção que leva o nome do conjunto) ou fazer baladas confessionais (“me perguntaram porque eu faço música engraçada/ou se eu não consigo cantar algo que venha do meu coração”, diz a letra de “Coração Negro”). O resultado, ao largo de meia hora, não só dialogou com outras boas bandas da atualidade, como a barbarense Chococorn and the Sugarcanes ou a gaúcha Bella e o Olmo da Bruxa, mas também mostrou como a mensagem “de formiguinha” plantada por Cavaco e seus companheiros no final do século passado chegou a cantos inimagináveis.
Na sequência, foi a vez do quarteto português fazer uma verdadeira viagem no tempo para exibir algo do melhor que a FlorCaveira já produziu, em cerca de 75 minutos. Responsável por dar início à festa à frente do microfone, Guel trouxe o tom mais punk rápido e rasteiro ao mostrar canções como “Serviço Militar” ou “Deixa Rolar”, vindas de “Guel, Guillul & O Comboio Fantasma”, de 2003. Foi o momento mais “1-2-3-4” da noite, com execuções que por vezes faziam as canções terem menos de um minuto, sem perder o bom humor. “Esta é uma balada”, chegou a comentar o guitarrista antes de irromper a toda velocidade.
Com uma pausa apenas para trocar de posto – e para Filipe sacar do fundo do palco um par de óculos escuros, a fim de mostrar que havia uma nova banda ali –, o quarteto seguiu apresentando as canções dos Novos Americanos. O projeto herda a boa veia pop apresentada por Filipe e seus antigos companheiros dos Pontos Negros. Não fossem as questões vernaculares e a famosa preguiça dos brasileiros em lidar com o sotaque lusitano, petardos como “Miúdo de Ouro” ou “Telenovelas Brasileiras” poderiam facilmente rodar nas pistinhas sujas de São Paulo e cercanias. E houve até uma cover inusitada: enquanto alguns esperavam que Filipe tocasse hits de sua banda, como “Senna” (que ganhou versão de Nevilton em outro lançamento do site) ou “Amor é Só Febre”, o que houve mesmo foi uma releitura apaixonada em voz-e-guitarra de “Último Romance”, dos Los Hermanos.
Já bastante suado por se dividir entre o baixo e os backing vocals nas duas apresentações anteriores, Tiago Cavaco começou seu show ao espírito karaokê: trouxe à tona o sampler de “Aids, Pop, Repressão”, dos Ratos de Porão, para relembrar a excelente “Contigo Sou Sempre Agradecido”. Mais do que uma simples abertura, a canção explica, em poucos minutos e melhor do que qualquer tese sociológica, como a união do punk com a fé evangélica pode fazer sentido. (Uma explicação mais alargada, porém, está disponível em uma deliciosa entrevista que ele concedeu a este site há cerca de dez anos – em que confessou que amava a música brasileira: “Os primeiros brasileiros que amei musicalmente foram os Ratos de Porão” – a que se seguiu uma apresentação também histórica na Sensorial Discos, em 2017).
A partir daí, assumindo a guitarra, Cavaco deu sequência ao espetáculo revisitando canções dos Lacraus, de seus discos solo e de muitos outros projetos, mesclando o sabor punk inspirado em Ramones e Rancid com influências stonianas, dylanescas e de outras paragens. Era algo fácil de perceber em petardos como “João Calvino”, “Sinal da Cruz Invertida” ou “Eram Três” – esta última, uma deliciosa canção com certo sabor à la Velvet Underground e capaz de discutir tanto religião quanto amizade ou os malefícios da cafeína, uma “seiva externa que nos faça reger a vida”.

Após quarenta minutos de excelentes serviços prestados ao barulho, o grupo tentou se despedir, mas o público não arredou pé. O pedido por bis foi tão grande que Cavaco precisou recorrer à balada (essa sim) “Grandes Coisas”, um pedido da plateia, para acalmar os ânimos e mandar todos felizes para casa antes das 23 horas.
Foi uma grande noite: ainda que pouco mais de 50 presentes tenham testemunhado a festa, esta primeira exibição da FlorCaveira no Brasil serviu não só para fazer dançar, berrar ou suar. Serviu também para mostrar uma grande lição: a do poder da música em unir as pessoas de diferentes origens, credos e sotaques. Que venham mais excursões – e fica a dica aos companheiros d’além-mar: da próxima vez, convençam a vir junto o Samuel, o Bernardo e outros amigos que muito apreciamos aqui.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.