Crítica: “Senna”, a série, é infame e parece um jogo de videogame inexpressivo

texto de Leandro Luz

Ayrton Senna é um personagem fascinante. Piloto habilidoso, de uma personalidade difusa que oscilava entre a ânsia pela justiça e a obstinação pelo sucesso a qualquer custo. Herói de uma nação, namorado da Xuxa e porta-voz de uma suposta moralidade cristã que se comunicava amplamente com os seus fãs brasileiros. Mártir de um Brasil desmantelado e esperançoso (“o Brasil é o país do futuro”). Paladino e bom moço para uns, esnobe e hipócrita para outros. É uma pena – embora este fato já estivesse mais do que anunciado – que “Senna” (Vicente Amorim, 2024) tenha se concentrado única e exclusivamente na superficialidade deste personagem, adotando, para piorar, a abordagem mais infame possível.

À exceção de um ou dois momentos que se salvam pela competência e pelo carisma de alguns poucos coadjuvantes, os três diretores que assinam a minissérie (Vicente Amorim, Julia Rezende e Marcelo Siqueira) não conseguem criar praticamente nada que não se pareça com 1) um comercial de TV, 2) um jogo de videogame inexpressivo ou 3) um vídeo de campanha de um candidato a prefeito populista. A quantidade absurda de dinheiro gasta com a recriação em CGI de carros e de corridas icônicas da F1 traz consigo um gosto amargo porque praticamente todas elas são filmadas da mesma maneira, com planos fechadíssimos e efeitos que simulam uma espécie de perturbação cognitiva de Senna, elemento até bem utilizado dramaticamente, mas que de tão recorrente soa excessivo e logo perde a sua eficácia. A montagem, quase sempre frenética e picotada, também rapidamente se esgota.

Independentemente de tais escolhas “funcionarem” ou não, é evidente que este é um produto de “sucesso”. Após meses de publicidade ostensiva, “Senna” estreou no último 29 de novembro na Netflix e vem mobilizando grande público no Brasil e no exterior – mesmo sem alcançar números bombásticos (pelo menos de acordo com a expectativa da “toda poderosa do streaming” e a julgar pelas últimas matérias na imprensa), a minissérie apareceu no top 10 das produções mais assistidas em língua não inglesa na plataforma. Uma aposta muito calculada, concebida para alcançar multidões e recuperar com folga os milhões investidos.

Até aí nada muito diferente de 99% das produções dessa escala. No entanto, é triste constatar como a própria equipe responsável pela obra parece não confiar nas próprias escolhas. Voltando a tratar das cenas mais desafiadoras e caras em termos de produção, percebe-se muito rapidamente como a picaretagem está escancarada, vide a necessidade constante de inserções de imagens de arquivo das corridas, ainda que super breves, mas indispensáveis para que a montagem não imploda, ao mesmo tempo didática e incompreensível, em si mesma. Fatores como a provável interferência da família de Senna no roteiro e toda a polêmica envolvendo a figura da ex-modelo, atriz e apresentadora Adriane Galisteu estarem suplantando as discussões a respeito da obra em si são pistas de sua fragilidade.

Há uma personagem (se é que podemos chamar assim) que flutua pelos seis episódios, uma jornalista (Kaya Scodelario) que serve ao roteiro como uma espécie de representação da maneira como Senna foi percebido historicamente pela imprensa mundial, que parece saída diretamente de uma sugestão ruim da qual algum manda-chuva da produção se apegou e exigiu, dali em diante, manter. Apesar dos pífios esforços, essa presença quase fantasmagórica (seria até interessante caso o fosse) na verdade se mostra apenas uma má ideia que pouco consegue se manter de pé. Em determinado episódio, descobrimos que ela tem uma filha, mas a obra é incapaz de sequer rascunhar uma vida independente de sua “função narrativa”. Scodelario, atriz britânica fluente em português por ser filha de brasileira, está sendo exaltada pelas bandas de cá, mas a sua interpretação não contribui para tirar a personagem do buraco.

O mesmo problema pode ser observado na personagem de uma criança negra, fã de Senna, que costura os momentos mais marcantes da carreira do piloto e parece simbolizar os “verdadeiros brasileiros”. A personagem é oca – mora com o seu pai em uma favela, assiste avidamente a todas as corridas e presenteia o seu ídolo com desenhos enviados pelo correio – e, mais uma vez, está lá única e exclusivamente a serviço de algo pretensioso: no caso, ser um dos principais motivos para que Senna continue trilhando a sua jornada do herói. Um contrassenso, evidentemente, pois muito cedo na trama entendemos que a obsessão cega e irresponsável de Senna tem a ver com o seu egoísmo e uma pulsão de morte muito própria. Praticamente um Thánatos tupiniquim.

Gabriel Leone adota um ar taciturno, pois o seu Senna está sempre insatisfeito. Mimado, não quer ser piloto de teste, precisa mergulhar direto no estrelato. Não se conforma com o seu carro na Toleman, nem está satisfeito com as expectativas que a Lotus lhe oferece. Ser o nº 2 de Alain Prost na McLaren? Nem pensar. Dá-me logo aqui o meu título de campeão! Todas essas nuances maravilhosas são obliteradas pelo roteiro, sempre mais interessado nas virtudes e na autodeclarada integridade do homem que deu ao Brasil o seu quinhão de felicidade em plena transição entre a Ditadura Militar e a abertura política para uma democracia que permitiu eleger os seus primeiros presidentes civis após 21 anos de tiranias (ainda que Fernando Collor de Mello tenha sido um deles).

Os demais atores se revezam entre a divertida caricatura inevitável (Gabriel Louchard e seu Galvão Bueno; Pâmela Tomé e sua Xuxa; Johannes Heinrichs e seu Niki Lauda) e o tom excessivamente grave, típico de atuações em obras baseadas em histórias e personagens reais (Matt Mella como Prost; Marco Ricca como pai de Senna; Camila Márdila como a irmã que irá fundar o Instituto Ayrton Senna; e vários outros exemplos menos chamativos).

Não são escassos na história do cinema filmes capazes de materializar esse encantamento com a combinação carros e velocidade: no âmbito da Fórmula 1, os recentes “Rush: No Limite da Emoção” (Ron Howard, 2013) e “Ford vs. Ferrari” (James Mangold, 2019) apresentaram um resultado bem interessante; “Escuderia do Poder” (David Cronenberg, 1979) e “Speed Racer” (Lana Wachowski e Lilly Wachowski, 2008), resguardadas as devidas diferenças temporais e de abordagem, são dois exemplos que fogem da relação tradicional com o esporte e que merecem ser lembrados; ainda, no âmbito documental, e muito bem-vindo nessa discussão sobre como a figura de Ayrton Senna foi retratada midiaticamente, o homônimo “Senna” (Asif Kapadia, 2010) é uma obra que merece ser revisitada.

A adrenalina oferecida por automóveis é e sempre será um assunto sedutor para muita gente. Pilotos incautos que dão voltas e mais voltas em uma pista, se digladiando para vencer uns aos outros e a si mesmos, dispostos a quebrar recordes e alcançar uma velocidade jamais vista. A minissérie não se furta desses prazeres regados a óleo, suor e pedaços de fibra de carbono, porém, abdica de um olhar autoral para uma história e um personagem já muito conhecidos, se rendendo a um modelo de produção insípido que valoriza a direção de arte e a reconstituição de época “impecáveis” em detrimento de “qualquer coisa que se sinta”, como diria o compositor.

Para quem quiser muito assistir ao Gabriel Leone interpretando um piloto destemido, sugiro dar o play em “Ferrari” (Michael Mann, 2023 – disponível no Prime Video), decididamente um dos melhores filmes da década até aqui. Curiosamente, Leone também interpreta um homem (Alfonso de Portago) obcecado pela vitória e que morreu cedo demais em função de sua grande obsessão. Já com “Senna” você corre um sério risco de assistir à mais recente mega produção da Netflix e, ainda por cima, ser coagido a adotar um novo-velho herói de estimação.

– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.

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