texto de Marcelo Costa
fotos de Gustavo Costa
Surgido em 2017 como palco para artistas locais, o Festival Carambola cresceu e não só começou a escalar, com olhar curatorial atento, artistas nacionais, como também abriu as portas para a América Latina. Em 2024, antes mesmo de liberar o acesso ao público, o festival já podia comemorar duas vitórias incontestes: debutar uma banda argentina de renome em território nacional (antes mesmo do Sudeste!) e estrear no Nordeste o show mais badalado do país neste segundo semestre. Não é pouco e não é acaso, e sim fruto de boas parcerias e acompanhamento cuidadoso do cenário e da música ao vivo.
Em sua oitava edição, o festival alagoano prometia uma digna maratona para testar o pique (físico e cardíaco) de pouco mais de 5 mil pessoas que esgotaram os ingressos uma semana antes do evento: na planilha, 12 horas de festa com 11 shows e dois DJ sets. Haja pernas! O pacote Carambola, porém, começou dias antes do feriado de 15 de novembro, com diversas atividades formativas durante a semana como showcases, oficinas (como a do simpaticíssimo músico uruguaio Gonzalo Deniz, que muitos conhecem como Franny Glass, que ministrou uma aula de composição musical para alguns sortudos) e debates.
Na véspera do festival, uma mesa (muito especial) recebia a comunicadora Roberta Martinelli, o músico e jornalista Wado e este que vos escreve para debater sobre “O que há de novo na (nova) música brasileira?”, tema que me tirou algumas noites de sono, pois, como comentado na conversa, o novo em 2024 (ou explicitamente desde o começo dos anos 2000) nada mais é do que reciclar o passado com uma bagagem pessoal (o velho sendo reempacotado para um público que nem tinha nascido quando a internet se espalhou – e os discos de vinil nem eram moda), algo que ficou extremamente nítido nos shows do dia seguinte – para o bem e para o mal.
Abrigado no clube da Adepol (Associação dos Delegados de Polícia de Alagoas), na belíssima orla de Maceió (uma das mais convidativas do país), o Carambola 2024 trazia dois palcos (um ao lado do outro) de costas para o mar homenageando, cada um deles, dois potentes nomes culturais do estado: o músico Hermeto Pascoal (que não só tem uma carreira musical histórica como, numa brincadeira de boxe, deu um cruzado no rosto do amigo Miles Davis – poucos podem ter essa no currículo) e a incrível ceramista Mestra Irineia, que vive na região quilombola de Muquém, em União dos Palmares, e é Patrimônio Vivo de Alagoas.
A responsa de dar início aos shows do festival ficou com Alice Gorete, nome interessante da nova cena de hip hop alagoano, e se tem algo que todo MC traz correndo no sangue é… responsa. Ou, como diria Rappin Hood, “se estou com o microfone é tudo no meu nome”. De mic em punho, Alice Gorete se divertiu no palco do Carambola, entretendo o bom público que já chegava no recinto. Grave no talo e sem tempo pra perder, Alice Gorete honrou a função de abrir o evento.
O som no palco ao lado deveria surgir assim que o de Alice Gorete silenciasse, mas tal qual fez no Se Rasgum 2024, em Belém, a equipe de Ana Frango Elétrico demorou a entrar, causando um atraso que sempre atrapalha o cronograma. Vale relembrar aqui uma historinha: em 2011, com uma porrada de Grammys na estante da sala, Cee Lo Green atrasou seu show no Coachella. Resultado: deu tempo de tocar quatro músicas, sendo que uma era “Crazy” (hino do tempo do Gnarls Barkley) e a outra o mega-sucesso “Fuck You”. Na quinta, a organização do Coachella cortou a música no meio. Bye, bye Cee Lo!
Não bastasse o atraso, a nova turnê de Ana Frango Elétrico traz outro senão: incensada pela crítica (Prêmio APCA e melhor disco de 2023 no Scream & Yell) e amada pelo público (tanto no Se Rasgum quanto no Carambola seu show foi um dos mais pedidos pelos fãs), a sensação é de que Ana não está se sentindo à vontade no palco (no Balaclava Fest ela passou boa parte do show de costas para os fãs), o que explica o curto set começar com um número instrumental dispensável. Pense: você só tem 40 minutos em cena numa cidade que se sabe lá quando você vai voltar, e joga fora quase 20% desse tempo sem dar as caras? Bruce Springsteen não curtiu isso. Já o público celebrou e cantou junto todas as músicas. Até quando a paciência dos fãs vai durar é uma questão…
Nascida no Rio, e abraçada por Maceió, Flora veio na sequência para mostrar as canções de seu segundo álbum solo, “Volver” (2024) – o primeiro, “A emocionante fraqueza dos fortes”, de 2020, lhe rendeu uma indicação da APCA como Revelação. Nome de destaque de uma cena fervilhante – que recomenda ainda LoreB, Batata Boy e Bruno Berle, entre tantos –, Flora sentiu a pressão de pisar num palco de festival diante de um grande público. Sua boa banda (3/4 dela – o tecladista Dinho Zampier, o baixista Igor Peixoto e o guitarrista Vitor Peixoto – também acompanha Wado) deu o recado, mas entre problemas técnicos e a emoção a flor da pele (ela chegou a derramar lágrimas sentindo o apoio carinhoso do público), Flora fez um show que deixou a vontade de vê-la em um lugar menor e mais aconchegante.
Mantendo de maneira marcante sua pegada local, o Carambola trouxe mais um artista alagoano para o palco, Boby CH, cria do bairro de Jacintinho, como ele mesmo frisou, com orgulho, no meio de seu set. Com um EP fresquíssimo nas plataformas, lançado na semana do festival, e festejando 10 anos de seu disco de estreia, “Estiga Perifa” (2014), Boby CH chegou chegando com muita personalidade, como se morasse naquele palco. Desceu pra plateia, fez roda, e entre reggae, hip hop e grave pesado (além de camiseta do Nirvana), passou seu recado num show bem redondo.
Até então, o hip hop estava se sobressaindo à “nova” MPB, mas bastou Juliana Linhares entrar em cena para subir o sarrafo de tal maneira, que ninguém iria alcançá-la até o festival terminar. Muita gente defende que a arte não é elencável alegando que não há como “medir” a música em graus de melhor ou pior, e que é impossível dizer que o disco ou show de fulano é melhor que o de sicrano (aparte: arte não é competição, mas é possível sim – e importante – analisar), e pra esses existe Juliana Linhares, pois não há como não se arrebatar com sua performance, poderosa, e também como o impressionante azeitamento de sua banda, impecável.
Da abertura com a impactante “Bombinha” seguindo com o chamego dançante de “Balanceiro” até a muita bem inserida versão de “Comentário a Respeito de John”, de Belchior, a ficção nordestina de Juliana se amplia em território local e mesmo números “novos” como “Meu Amor Afinal de Contas” (parceria com Zeca Baleiro) e “Embrulho” (parceria com Chico César) soam… atemporais, como se a gente as ouvisse desde pequeninos (ainda que elas tenham sido lançadas em 2021), exemplo perfeito de como recriar o passado de maneira genuína e atual. Convidada ao palco, Fernanda Guimarães encorpou um dos números mais celebrados dos shows de Juliana, sua inesquecível versão de “Tareco e Mariola” – um registro do Scream & Yell em agosto passado já bateu 22 mil views no Youtube. Fica aqui o mesmo pedido daquela noite: por favor, acompanhe ela!
Responsável por um dos grandes discos de 2024 e com a saúde debilitada do alto de seus 88 anos bem vividos, Hermeto Pascoal subiu ao palco com seu nome disposto a encantar a enorme plateia presente e, também, celebrar seu estado natal (ele é de Lagoa da Canoa – ou Olho d’Água Grande –, a menos de três horas de Maceió) fazendo intervenções com chaleira, um mini berrante e até tocando uma taça cheia d’agua. Sua banda, competentíssima, passeou pelo repertório do bruxo tocando de clássicos incontestes do quilate de “Papagaio Alegre” (1984) a canções novíssimas como… “Ilza Nova” (você sabe a história, certo? Em 1999, Hermeto escreveu 198 partituras para a esposa Ilza, falecida em 2000, e gravou 13 delas em “Para Você Ilza”, de 2024 – “Ilza Nova” é uma das 185 restantes)… Daqueles shows que a gente gostaria que nunca acabasse…
Com a energia do público no auge, os argentinos da Bandalos Chinos chegaram fazendo a festa e colocando todo mundo pra dançar com seu indie pop contagiante. A vibe oitentista do grupo da grande Buenos Aires ganha ainda mais força e impacto ao vivo, muito pela presença enérgica do carismático vocalista Gregório Degano, outro tanto pela musicalidade afiada do guitarrista Iñaki Colombo. Da abertura, com a apropriada “Mi Fiesta” e agregando os hits “Departamento” e “Demasiado” (juntas, as três canções somam mais de 110 milhões de plays no Spotify), a Bandalos fez um show absolutamente redondo, profissional e, ao mesmo tempo, emocional. O single “Vámonos de Viaje” fechou a apresentação com jeitão de balada indie. Bonito.
O atraso no show de Ana Frango Elétrico – que, acumulado, chegava a 40 minutos – começou a pesar quando a meia noite de lua cheia se aproximava na beira do mar – o palco da Bandalos chegou a ser apagado antes de seu maior single, mas o público pediu e ganhou o bis. Nessa vibe, o encontro do Coletivo Afrocaeté com Chau do Pife, ainda que visualmente bonito (viva a cultura regional) e impactante no som dos tambores, quebrou o crescendo que o festival vinha conquistando desde o show de Juliana, muito pela característica discursiva e percussiva da apresentação. Foi bem bonito, mas quem tinha chego sete horas atrás já teve que procurar um cantinho para descansar as pernas, pois, todo mundo sabia, o (cavalo de) pau ainda ia torar na madrugada.
Refrescada por uma chuva leve que vinha, ia embora e voltava desde o começo da noite, a audiência nordestina deixou o povo sudestino de queixo caído ao cantar absolutamente tudo que o trio de vocalistas do grupo de forró eletrônico cearense Cavalo de Pau soltava no microfone. Com o grave entuchado (consta que a Cavalo de Pau bateu em volume o Dinosaur Jr. no Balaclava Fest), a banda celebrou 30 anos de sucessos com o público +30 levantando poeira (literalmente) no recinto. Uma hora de hits deles – da Mastruz com Leite – e dos outros (“Timidez”, “Promessas”, “Seis Cordas”, “Meu Vaqueiro, Meu Peão”, “Frevo Mulher”) para forrozeiro nenhum botar defeito.
Penúltimo show da noite, o Padrim Fabricio, vulgo FBC, surgiu no formato mic e DJ (sem a banda que o acompanhou na turnê do elogiado disco “O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão Nos Levar Para Outro Planeta”, de 2023), e o show começou pegado com o hit “Se Tá Solteira” seguida de “Quando o DJ Toca”, outra do disco “Baile”, parceria sua com VHOOR (“Vem pro Baile”, “Não Dá Pra Explicar”, “Polícia Covarde” e, claro, “De Kenner”, com direito a distribuição das sandálias, também entraram no set). O passeio imperdível por sua discografia seguiu com “Frank & Tikão”, do disco “S.C.A.” (2018), “$ENHOR”, do disco “Padrim” (2019) e chegou em “Meu Amigo da Boca”, single de 2024, mas foi interrompido por FBC de maneira abrupta: o rapper abandonou o palco prometendo encontrar o público “em condições melhores” deixando seu DJ aquecendo a galera para o show mais esperado do feriado.
Com todo atraso recuperado pelo “encurtamento” do show de FBC, o público presente – casa cheia às 1h40 da manhã! – que não arredou o pé nem com a chuva já dava ideia do tamanho da demanda. As pistas, no entanto, já vinham sendo distribuídas nas semanas anteriores: com ingressos esgotados antecipadamente para três shows no Espaço Unimed (com oito mil lugares por dia), em São Paulo (mesmo lugar que o Smashing Pumpkins esgotou uma data dias antes), e agenda no Rio, Curitiba, Recife, Porto Alegre, Belo Horizonte e Salvador até o final de janeiro, a turnê “Caju”, de Liniker, é dos grandes acontecimentos musicais do ano.
Em Maceió, a coisa se desenhou como histórica assim que o público gritou o nome da diva convidando-a ao palco e, inédito no evento até então, centenas de celulares surgiram para flagrar Liniker entrar em cena feliz e saltitante. Se musicalmente o seu show soa tão risível quanto o do Cavalo de Pau (se a segunda é uma banda de empresário com o intuito único de dar lucro, a primeira entra em cena como coadjuvante de luxo, sem provocar catarse ou promover uma escalada em parceria – algo indissociável do quarteto de Juliana Linhares, por exemplo –, mas marcando presença como uma cama em que a artista se deita e se deleita), a personagem faz toda a diferença: Liniker esbanja carisma e carinho, e sabe que tem o público nas mãos.
“Caju”, faixa título de seu segundo disco (lançado em agosto), abriu o show repetindo um mise en scène que irá se estender por toda o espetáculo: assim que a banda começa uma nova canção, o público urra reconhecendo-a e acompanha Liniker em coro, palavra por palavra. Assim foi com o single “Tudo” (morreu por dentro quem não se arrepiou com o público levando sozinho o verso “Deixa eu ficar na tua vida, morar dentro da concha, do teu abraço, não quero largar”), com a balada bluesy “Veludo Marrom” e com o balanço de “Negona de Olhos Terríveis”. Visivelmente emocionada, Liniker confessou: “É uma honra estrear a turnê de ‘Caju’ no Nordeste em Maceió. Escrevi esse disco para que eu fosse feliz. É um presente pra vocês, mas, principalmente, é um presente pra mim, que venho escrevendo sobre afeto, e quero viver isso, e quero sentir isso”. O público retribuiu o carinho, e nem a chuva, que apertou no meio da apresentação, conseguiu tirar o sorriso de Liniker e de seus fãs.
Como um todo, a edição 2024 do Festival Carambola (a maior da história do festival) teve seus percalços (faltou comida em determinado momento do evento, por exemplo), mas se consagra como um ato corajoso de amor à música e à cultura regional, nacional e sul-americana. Erguer um festival (de música, de literatura, de quadrinhos, de cinema) é um ato heroico em qualquer canto desse país sofrido, mas ganha ainda mais impacto (e doses generosas de desafio) no Norte e Nordeste, já que muitos dos nomes “badalados” da nossa música fixou seu QG no Sudeste, e as passagens são caras, os cachês são caros, tudo joga contra. Por isso, o Carambola (e o Se Rasgum, e o Do Sol, e o Radioca, e o Casarão e tantos outros) merece respeito.
De uma curadoria que, para alegria do público (e desespero da crítica – por favor, festivais, não copiem isso! risos), exibiu coragem em colocar uma banda de forró eletrônico no line-up, os destaques maiores vão para o show consagrador de Liniker (que, veja só, vai tocar no incensado Coala Festival… só em 2025!), para a festa altamente bailável da Bandalos Chinos, para a emocionante presença de Hermeto e sua banda competentíssima num palco que levava seu nome e, principalmente, para Juliana Linhares, o grande show da maratona, aquele tipo de apresentação que você observa minuciosamente e é absolutamente impecável nos detalhes (e que você dorme cantando e acorda cantando… dias depois). O sarrafo subiu, Carambola. Mas, bora pra cima: timidez é bobagem, bonito é o amor. Que venha 2025.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
Duas coisas Marcelão. Primeira: Ana frango etc é muito hype pra pouca coisa. Segunda: orgulho-me de ter sido um dos primeiros a apontar Juliana Linhares em melhores do ano aqui. São duas mulheres que pra mim estão em um abismo de talento. Tem um pós crédito: pra variar, teu texto tá foda
Emocionante demais ver festival independente dando sold out. Foi massa essa edição. O show da Juliana foi incrível. Que chegue 2025!