texto e faixa a faixa por Fernando Yokota
Em sua “Arte Poética”, Aristóteles põe no centro da ideia de catarse a proximidade do espectador com o assunto da peça ao mesmo tempo em que mantém certa distância: é possível ter empatia com o sofrimento dos personagens e ter a consciência de que aquilo não está acontecendo com ele. Tratando de temas como tempo, envelhecimento, vida, morte e em especial a despedida, Beth Gibbons nos oferece “Lives Outgrown” (2024), uma coleção de relatos pessoais que convidam o ouvinte a explorar essa tênue linha entre a comoção e o sofrimento.
Elegante, mas sem a pompa cool do trip hop dos discos do Portishead, “Lives Outgrown” não tem jeito de trilha sonora de coração partido com whisky on the rocks de “Glory Box” ou “Mysterons” e combina mais com uma audição ativa, silenciosa e contemplativa de uma alma introspectiva que se olha pela sombra deformada de si desenhada na parede pela luz de uma fogueira. Mais Tori Amos que Portishead e com arranjos que unem a simplicidade dos violões ao refinamento dos arranjos de cordas, é um álbum cuja maior qualidade é ser solene e pessoal ao mesmo tempo. Com exceção da voz de Gibbons e alguns esparsos momentos, “Lives Outgrown” mantém distância da obra do grupo bristoliano. Os arranjos, privilegiando timbres mais orgânicos, dão às canções um tom mais sóbrio, amadeirado e despidamente humano, envolvendo a voz da cantora inglesa de uma maneira diferente do que geralmente é associada ao Portishead.
Sem a companhia de Geoff Barrow e Adrian Utley (no Portishead), Paul Webb (como foi em seu álbum “Out Of Season”, de 2002) ou de uma orquestra (“Henryk Górecki: Symphony No. 3”, de 2019), Gibbons tem em “Lives Outgrown” seu primeiro full length propriamente solo. Lee Harris (colega de Webb no Talk Talk e não o guitarrista da banda solo de Nick Mason), foi o responsável pela produção e assina a co-autoria de algumas das faixas do álbum.
Em “Lives Outgrown”, Beth Gibbons seduz com o canto da sereia que puxa o ouvinte para dentro de seu mar existencial dedicado ao exame da finitude humana em várias de suas formas. Ao contrário da alegoria do espectador aristotélico, próximo, porém distante, aqui a quarta parede é quebrada pois o cerne das canções é a própria existência humana em toda sua finitude. Indiscerníveis, as angústias da artista e do ouvinte são as mesmas em “Lives Outgrown”, onde comoção e sofrimento são indissociáveis.
Abaixo, um breve faixa a faixa do álbum:
01) Tell Me Who You Are Today – A faixa de abertura começa revelando a fórmula que permeará o álbum: um violão (aqui, em afinação grave e o ruído da captação vazando na mixagem) abre caminho para o arranjo principal de cada canção. Os versos que começam uns por cima dos outros soam como uma conversa de Gibbons com si mesma.
02) Floating On A Moment – O riff de violão que soa comicamente como um gigante andando numa floresta se alterna com uma estrofe B ornada por backing vocals e um arpeggio “celestial” para servir de fundo musical para versos sobre aproveitar o momento. Se “Lives Outgrown” fosse uma biografia, “Floating On A Moment” seria o capítulo sobre a juventude.
03) Burden Of Life – A voz como foco inicial começa lembrando Portishead e, em seguida, é elevada por vocais de fundo que iluminam o resto do cenário, desvelando o tema da canção: “the burden of life just won’t leave us alone”. O violão em arpeggio, marcando o tempo, metaforiza o ritmo da vida, maçante e incessante. No último terço, um interlúdio com violinos em destaque, dão o tom trágico da vida antes de Gibbons lembrar, uma última vez, que o fardo da vida nunca nos abandona até que, finalmente, enfim nos deixa descansar em paz.
04) Love Changes – Com o violão de 12 cordas tocando “acordes de cowboy” e o “hey you” introdutório o ouvinte desavisado pensa em Pink Floyd mas encontra Gibbons flanqueada por loops de oscilação em feedback acompanhados de cordas no mais épico dos temas do álbum. O tema da passagem do tempo agora aparece como um amaciador epicurista para o coração endurecido do ouvinte. Envelhecer é aprender a mudar, o velho adágio de que aprendemos com a passagem do tempo e mudamos para, de certa forma, permanecemos os mesmos.
05) Rewind – A voz de Gibbons, envelopada num efeito de modulação desconfortante, junta-se a (mais uma vez) o violão e cordas com texturas adstringentes para formar um clima tenso. Na segunda estrofe a voz se liberta envolta em eco e as cordas assumem o tom aveludado, mas a percussão mantém o tom sinistro de uma jornada da vida no mundo fora de controle. Infelizmente, o que foi já está feito e é tarde demais para voltar. Seria um lamento por conta de um mundo que, incapaz de se reinventar e encurralado no ensimesmar do capitalismo predador, caminha a passos largos para ser a nêmese de si próprio?
06) Reaching Out – O lado B começa falando sobre a dependência no que parece ser um relacionamento de não muita reciprocidade. Guitarras com tremolo, percussão dramática e metais em abundância se intercalam com momentos mais calmos. A interpretação de Gibbons ao final (“I need you always, always…”) é de alguém profundamente afundado em psicodependência.
07) Oceans – A cadência de valsa e um violão que soa como uma cítara têm o contorno dramático aumentado pelas cordas, que soam como nuvens cinzas sobre um mar revolto no qual navega um coração cansado e resignado. Se na discografia do Portishead a palavra “cinemático” remete a quartos escuros, fumaça de cigarro e corações partidos, “Oceans” tem o tom grave da sonorização do epílogo de uma guerra em que a heroína, exaurida, luta sua última batalha.
08) For Sale – A voz de Gibbons, em várias camadas, costura o glissando hipnótico do violão que faz contraponto com o ataque das cordas. No segundo ato, o som de alguém caminhando sobre pedras forma o polirritmo com a percussão sugerindo a confusão de alguém que teme estar indo longe demais com seus sonhos (“if we don’t stop now, will we go too far?”). Na dúvida, ensina o mundo, venda a sua alma.
09) Beyond The Sun – Com percussão tribal e o violão em afinação grave, “Beyond The Sun” seria a trilha sonora perfeita para uma viagem de ayuhuasca. Tão desorientantes quanto o arranjo, os versos são uma série de perguntas de cunho existencial de alguém cartesianamente em dúvida (“se eu soubesse de onde eu vim eu saberia para onde eu iria?”).
10) Whispering Love – O último ato soa como o despertar de um náufrago numa ilha perdida: a melodia angelical e o som de pássaros soam como o alívio de quem chegou ao fim de uma jornada atribulada. Após nove canções calcadas em sofrimento e ansiedade, o ouvinte não precisa mais segurar a respiração.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: instagram.com/fernandoyokota/