texto por Gabriel Pinheiro
No interior do Mato Grosso, um matadouro domina um horizonte desolado. Enquanto, do lado de dentro, funcionários miseráveis manejam um produto do qual não podem se alimentar, do lado de lá das grades uma outra multidão aguarda por um naco de carne, uma sobra qualquer. Mas, para esses, só resta o osso, isso quando sobra. Afinal, do osso também é possível gerar lucro. “Onde pastam os minotauros” é o novo romance de Joca Reiners Terron. Lançado pela Todavia, o livro foi eleito Romance do Ano pela APCA – Associação Paulista dos Críticos de Artes.
“Onde pastam os minotauros” gira em torno, especialmente, de três personagens, que resistem, a duras penas, à uma máquina que mais do que moer carne, mói gente. No cenário desolador deste interior do centro-oeste brasileiro, Cão, Crente e Lucy Fuerza são funcionários deste matadouro. Crias daquela terra, para eles, assim como para todos os outros – com exceção dos patrões, dois irmãos – pouco ou nada sobra do que produzem. Em escala industrial, o destino do gado ali são as bandejas de isopor. Do matadouro ao supermercado. Quanto mais lidam com a carne dos animais, mais metamorfoseados em animais aqueles homens e mulheres se encontram. Pouco a pouco, a humanidade parece esvair, fruto do meio onde se veem obrigados a sobreviver.
Num cenário que por vezes aparenta se inserir numa ficção especulativa – quem sabe, até uma ficção científica – basta um pouco mais de atenção para perceber que Joca Reiners Terron, na verdade, lida com cenas e alegorias que dizem de uma realidade bem próxima do Brasil contemporâneo. Não há especulação, mas a observação de uma ideia de nação em plena falência. Estão ali as péssimas condições de trabalho, a fome e a pobreza, que se aprofundaram num cenário pandêmico. Há, inclusive, a própria pandemia e a doença, esse inimigo (quase) invisível, mas que viu seu potencial de destruição potencializado ao ter como aliados outros inimigos bem reais e próximos: toda uma visão negacionista compartilhada por pessoas e por governos.
Aqui, os bois são bois, os humanos são humanos. Mas não só. Também os humanos são bois – ou gado, essa imagem que se tornou símbolo de um Brasil dividido. Confinados num matadouro cuja única saída é a morte, os bois também se veem enquanto homens, assombrados pela presença do minotauro. Se eles são os homens, cabe a nós o papel do minotauro, esse ser que guarda o labirinto onde vivem confinados – a mitologia grega já nos avisara sobre a impossibilidade de saída do labirinto.
Numa narrativa espiralar, como os caminhos que nos levam cada vez mais para dentro deste labirinto, Joca Reiners Terron acompanha um dia no funcionamento do matadouro. Pouco a pouco, percebemos que algo definitivo está para acontecer, enquanto os chefes preparam o estabelecimento para uma burocrática visita de vistoria. Contando as horas e os minutos, cada breve capítulo segue num ritmo que só cresce em termos de tensão, numa escrita vertiginosa, que parece caminhar entre o palpável da realidade e o absurdo do pesadelo.
Se a brutalidade do cotidiano se embrenha no texto de Joca, seu labirinto textual nos indica pequenas saídas poéticas quando nos deparamos com a voz dos próprios bois, que parecem entender melhor a humanidade do que nós mesmos. No fim, a poesia de “Onde pastam os minotauros” ganha forma de maneira mais explícita, numa conclusão que não nos encerra num labirinto sem saída, mas nas possibilidades do porvir. Uma leitura arrebatadora.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.