texto de Renan Guerra
Em algum lugar fantasioso entre o século XIX e o início do século XX, Bella Baxter é trazida de volta à vida pelo cientista Dr. Godwin Baxter, em uma experiência um tanto quanto “frankensteinriana”. Com um corpo de mulher adulta e uma cabeça de quem ainda está descobrindo o mundo, Bella vive uma espécie de “coming of age” um tanto quanto absurdo, em que descobre a complexidade da vida em sociedade, o sexo e a crueldade humana. Esse é o mote central de “Pobres Criaturas” (“Poor Things”, 2023), filme do grego Yorgos Lanthimos baseado no livro “Poor Things: Episodes from the Early Life of Archibald McCandless MD, Scottish Public Health Officer” (1992), do escocês Alasdair Gray.
Indicado em 11 categorias do Oscar – incluindo Melhor Filme, Atriz para Emma Stone, Ator Coadjuvante para Mark Ruffalo, Direção para Lanthimos e Trilha Sonora Original para Jerskin Fendrix –, “Pobres Criaturas” vem fazendo uma boa carreira nessa fase de premiações, tanto que saiu do Globo de Ouro com o prêmio de Melhor Atriz para Stone e o Melhor Filme Cômico ou Musical. E essa boa fama tem o seu porquê: Yorgos Lanthimos parece estar cada vez mais certeiro em suas alucinações absurdistas – construídas com um bom humor único. O grego já tem uma carreira ampla em Hollywood com títulos deliciosos e malucos como “O Lagosta” (2015) e “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (2017), mas foi com “A Favorita” (2018) que ele conquistou quase com unanimidade a crítica e conseguiu o respaldo da Academia. E essa trajetória pode ajudar a explicar como um filme tão absurdo e ousado como esse esteja tão bem cotado na premiação. Em tempos que Hollywood parece cada vez mais careta e puritana, Yorgos faz um filme cheio de tesão, em que o sexo é uma parte fundamental de sua narrativa e a nudez e despudor se mostram uma parte importante do crescimento desses personagens.
Bella Baxter (Emma Stone) vive nessa redoma criada por Godwin (Willem Dafoe), enquanto é observada pelo estudante de medicina Max MacCandles (Ramy Youssef), que acompanha seu desenvolvimento e que passa a nutrir uma afeição pela garota. Bella, com sede de desbravar o mundo, acaba caindo nas graças do advogado galanteador Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo). É a partir daí que uma grande aventura se estabelece, com Bella descobrindo o mundo por diferentes perspectivas filosóficas, sociais e sexuais. E a partir disso “Pobres Criaturas” se aventura por caminhos complexos e amplos, trazendo olhares múltiplos sobre a vida em sociedade, a crueldade humana, a falência dos sistemas econômicos e o puritanismo geral imposto pela religiosidade. Todos esses temas amplos e filosóficos poderiam gerar um filme difícil e intrincado, mas, pelo contrário, o bom humor leva o espectador por uma experiência leve dentro do absurdo – tanto que mesmo as duas horas e tanto de filme passam sem se sentir.
O cinema de Yorgos Lanthimos sempre se deteve sobre as nossas relações em sociedade, entendendo as idiossincrasias e o absurdo que há em algumas convenções, por isso é sempre interessante entender como o diretor leva essas questões cada vez mais ao extremo. Nesse sentido, a narrativa de “Pobres Criaturas”, que parte da descoberta do mundo pelos olhos de uma pessoa que não compreende as convenções básicas da sociedade, acaba se conectando de forma muito direta com “Dente Canino” (2009) – seu segundo filme, indicado na época ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro –, em que três adolescentes criados sem contato com o mundo exterior acabam por se rebelar contra a tirania dos pais. Essas duas possibilidades de narrativas colocam uma lupa sobre convenções, preconceitos e regras pré-estabelecidas que parecem parte do universo fantástico/absurdo de Lanthimos, mas que na verdade são apenas questões quase naturalizadas dentro da sociedade. E é ainda mais interessante como o diretor consegue nos colocar esses questionamentos e essas tensões pelo caminho do surreal, do hiper-real e do humor. É como se ele nos fizesse rir, enquanto deposita diversas pulgas atrás de nossas orelhas.
Em “Pobres Criaturas” isso tudo é feito pela construção de um universo que cria um outro passado, com invenções estilizadas, cores únicas e sonoridades próprias. Tudo isso ganha vida por uma direção de arte que cria navios distintos, uma Lisboa com teleféricos estranhos e que dá vida aos animais meio Frankenstein de Dr. Godwin. A forma estética de contar a história tem suas estilizações, com o uso de preto e branco e a insistência numa câmera com lente olho de peixe, nem sempre essas escolhas são necessariamente lógicas e às vezes algumas são apenas estética pela estética, o que não é uma falha, mas uma escolha. É interessante assistir um filme que se propõe a expandir as possibilidades estéticas de sua narrativa apenas pelo deslumbre que isso pode nos causar, pois cinema também é sobre mergulharmos na diegese proposta, sem necessariamente esperar um simulacro lógico da realidade. Para essa experiência ficar mais ampla, ainda temos a excelente trilha sonora de Jerskin Fendrix, que nos ajuda a construir uma ambiência entre a alucinação e a estranheza. O real só parece se aproximar e nos tocar quando um fado cantado por Carminho passa a encantar nossa protagonista Bella.
Não deixa de ser muito interessante observar como os atores conseguem se sobressair nesse cenário de exageros estilísticos. Dafoe é um mestre em esquisitices, então está em casa com o seu médico-monstro Godwin. Emma surpreende ao criar um detalhamento físico muito cuidadoso de sua personagem, numa construção que felizmente se difere das atuações monocórdicas que ela parecia apresentar em uma série de filmes recentes, por isso é bom vê-la fora de sua zona de conforto. De todo modo, uma das grandes surpresas do filme é Mark Ruffalo, que mostra outras facetas de sua atuação, dosando de forma deliciosa o humor e a cafajestagem de seu personagem. O ponto forte de “Pobres Criaturas” é que todos os atores mergulham de cabeça nessa viagem e se colocam nessas potencialidades esquisitas de cada persona na tela.
“Pobres Criaturas” tem muitas camadas e possibilidades de análise. Podemos ler o filme apenas pelas suas divertidas construções estéticas, como podemos fazer grandes digressões filosóficas sobre suas cenas. De todo modo, o grande ponto central é que temos aqui um filme que nos excita e nos encanta em sua criatividade, inventividade e estranheza. Yorgos Lanthimos consegue colocar na tela uma história inteligente, curiosa e muito engraçada, e que, por isso mesmo, merece ser vista na tela grande, com o som mais alto que você puder, no melhor sentido de cinema!
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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.
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