texto de Renan Guerra
Nos anos 80, em uma Nova York habitada por animais antropomorfizados, um simpático cachorrinho se vê sozinho. Entre jogar videogame, zapear na tv e requentar sua comida no micro-ondas, ele encontra numa propaganda comercial a solução de seus problemas: um robô amigo. Seu novo companheiro chega via correios e é a partir daí que iremos presenciar uma narrativa mágica e dolorosa dos altos e baixos de uma amizade entre o cachorro e o robô. Essa é a premissa inicial de “Meu Amigo Robô” (2023), do espanhol Pablo Berger, que tem como base a HQ “Robot Dreams” (2007), da norte-americana Sara Varon.
Assim como nos quadrinhos originais, o filme de animação não possui diálogos, a narrativa se dá guiada apenas pelas ações, como num filme mudo. E aí está um dos grandes trunfos do filme de Berger: ele consegue prender o espectador em uma narrativa lúdica e cheia de detalhes. As piadas surgem na tela, os personagens coadjuvantes dão outros tons a narrativa e aquela Nova York caótica dos anos 1980 ganha uma representação única em cena. Vemos as antigas Torres Gêmeas, o Central Park e até o metrô, tudo com um colorido distinto. Nesses cenários, é claro, pipocam as referências aos anos 1980 que irão fazer a cabeça dos adultos, com direito a comercial das facas Ginsu na TV, disco do Talking Heads perdido no cenário, um Basquiat sendo transportado na rua e referências ao movimento punk e hip-hop daquela década.
“Meu Amigo Robô” tem aquele charme das animações que consegue emocionar os adultos e encantar as crianças, tanto pelo seu delicado traço de animação quanto pela narrativa comovente que passeia pelas diferentes fases de uma amizade e pelos diferentes percalços que essa relação pode passar. E aqui os adultos podem sentir mais, pois a cada fase da vida vamos vendo amigos ir e vir em nossas relações e é sobre esse amadurecimento e essas mudanças que o filme acaba transitando – sobre a solidão natural de algumas fases da vida e sobre as complexidades de se construir novos vínculos. As camadas da narrativa do filme propiciam que diferentes públicos se identifiquem com o universo do cão e do robô e por isso é um programa perfeito para ver em família ou entre amigos.
O ritmo delicado e silencioso do filme claramente nos remete a um mestre moderno da animação, o francês Sylvain Chomet, de “As Bicicletas de Belleville” (2003) e “O Mágico” (2010), e, claro, ao mestre maior da delicadeza silenciosa: Jacques Tati. E sim, é natural que façamos essas conexões, porém o cinema dos dois franceses, Chomet e Tati, tem certa melancolia que é mais constante, enquanto o filme de Berger não tem medo de ser mais galhofeiro e exagerado, tanto que se apoia em momentos de riso mais fácil e se joga em momentos de sonhos mais lisérgicos – o que não são defeitos, mas sim escolhas narrativas. O que há em comum no filme de Berger e nos universos de Chomet e Tati é a capacidade de não subestimar a inteligência das crianças, entendendo-as como um público também consumidor de histórias complexas, com camadas, nuances e delicadas construções.
O cinema de Pablo Berger é bem múltiplo e a animação é um novo campo que ele se aventura, depois de ter percorrido títulos como a sua versão muda e dark de “Branca de Neve” (2012), ou o universo da comédia em “De Cama Para a Fama” (2003), filme com um elenco que reunia o espanhol Javier Cámara e o dinamarquês Mads Mikkelsen. “Meu Amigo Robô” estreou no 76º Festival de Cannes e percorreu outros importantes festivais, como os de Sarajevo, Londres e Tokyo, bem como o Festival de Cinema de Animação de Annecy. Esse bom caminho do filme por festivais é uma prova da amplitude dessa narrativa, de todo modo fica aqui a torcida que chegando agora aos cinemas brasileiros o filme encontre seu público, pois essa é uma história tão divertida e deliciosa de se assistir que merece ser vista por mais e mais pessoas.
Compre um bom balde de pipoca, reúna família e amigos e se deixe mergulhar pelo universo encantador de “Meu Amigo Robô”.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Integra o Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.
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