por Francisco Marés de Souza
Existem discos e discos. Alguns belos, alguns feios, alguns bons, ruins, delicados, pesados, acessíveis, experimentais, enfim, uma infinidade de adjetivos que, no final, são apenas o reflexo do “efeito” que o disco causou ao ouvinte. Qualquer um desses adjetivos pode ser atribuído a qualquer disco, dependendo apenas do humor de quem os ouve. Mas existe um que se aplica a poucos e raros discos, aqueles que não são lançados a cada semana, mas quando são, iluminam os rostos (e os ouvidos) dos amantes de música do mundo inteiro: são os discos ‘especiais’. Discos que, por algum motivo, transcendem o bem e o mal, fascinando, encantando e deleitando o ouvinte por algum motivo especial, como, por exemplo, “Revolver” (1966), “Exile on Main Street” (1972), “Surfer Rosa” (1988) e “The Bends” (1995). Inclua mais um disco preciso nessa lista: o quarto álbum dos escoceses dos Delgados, “Hate” (2002).
Para conseguir esse feito, a banda reatou a parceria com o renomado produtor David Friedmann que já havia dado certo no belo “The Great Eastern” (2000), álbum anterior do quarteto escocês. Friedmann sabe como fazer as coisas funcionarem em um estúdio quando tem uma grande banda nas mãos. Não à toa, trabalha com Mercury Rev e Flaming Lips desde o início da década de 1990, incluindo os álbuns “Deserter’s Songs” e “Yoshimi Battles The Pink Robots“, de cada banda, respectivamente. Mais? Ele foi engenheiro de som do álbum “Pinkerton” do Weezer, produziu “Come on Die Young” do Mogwai, “Romântica” do Luna e… “The Great Eastern” dos Delgados (melhor colocar reticências senão a matéria não acaba)…
Já com o Delgados é outra história. A banda vinha de um passado barulhento, marcado por bons álbuns como “Domestiques” e “BBC Sessions”, ambos de 1997 e inéditos no Brasil. Essa fase chegou ao ápice no genial “Peloton” (1999) e praticamente se encerrou, afogada em belíssimos arranjos de cordas e sutis duetos vocais, com “The Great Eastern” (2000).
Em “Hate”, o Delgados fez um disco remando contra a maré, utilizando grandes orquestras, melodias apaixonadas, refrões épicos, indo em uma direção totalmente oposta ao que propunha o “novo rock” (a saber, White Stripes, Strokes, Vines, Hives, entre outros). Seus detratores afirmam que o disco é exagerado e pretensioso. Sim, “Hate” é muito exagerado e muito pretensioso, mas o exagero deu a força e a consistência que talvez faltaram em seus trabalhos anteriores e a pretensão é necessária quando se quer fazer algo especial.
O álbum começa com alguns violinos suaves, que servem como portões de entrada para o universo da banda. Mas em pouco tempo, essa beleza acaba sendo sugada por um sombrio ataque de cordas, efeitos, guitarras e bateria. É “The Light Before We Land”, a primeira pérola do disco. Com uma letra linda, nostálgica (“Before we let euphoria / Convince us we are free /Remind us how we used to feel / Before when life was real”), alterna momentos de tensão com uma melancolia suave, que cai como uma luva para os suaves e delicados vocais de Emma Pollock. É interessante notar o vocal da menina: em uma época de vozes superproduzidas, exageradas e (metidas à) virtuosas, ela parece sua vizinha, um pouco tímida, mas com uma afinação impecável e um tom absurdamente realista.
Em um nítido contraste, vem “All You Need Is Hate”, a faixa seguinte: uma sátira bem bolada do clássico daquela bandinha de Liverpool (como é o nome deles mesmo? Bee… Bea…), com todo o exagero do arranjo da “original”, mas com uma letra “ligeiramente” alterada. É a irônica alma de Alun Woodward, que com sua voz desafinada grita versos do calibre de “Hate is everywhere, look inside your heart and you will find it there” como se estivesse falando de alegria, amor, paz, etc. Genial! O tipo de música politicamente incorreta que esse mundo precisa tanto.
Depois da ode ao ódio, a melancolia volta a dar o tom do disco. Ainda assim, a banda não cai no lugar-comum das baladas “tristinhas” que parecem infestar as paradas inglesas como gafanhotos. Usam toda essa dúvida, esses conflitos e essa angústia para produzir algo criativo e belo, absurdamente belo. As músicas seguintes, “Woke From Dreaming” e “The Drowning Years” são exemplos perfeitos para essa faceta do álbum. A primeira mostra Emma e sua voz delicada sobre uma magnífica melodia para piano, alternando escalas maiores e menores. A segunda traz o outro lado de Alun, frio, distante, sob rajadas de violinos e um poderoso refrão.
“Coming In From The Cold” é o grande single do disco – apesar de ter passado relativamente desapercebido pelo mercado (Teenage Fanclub nunca chegou ao topo das paradas, o que prova que qualidade e apelo pop não são, nem de longe, sinônimos ou pré-requisitos para o sucesso). A canção alia a profundidade e emoção dos arranjos de “Hate” com uma melodia para lá de cativante e acessível. Simples, genial, é o que as pessoas costumam chamar de “pop do bem”, verso-refrão-verso-refrão em nome da boa música. Um verso? “We’re coming in from the cold, and everybody’s searching for someone to hold”. Talvez seja bobo, mas é tocante, e fica ainda mais tocante na voz de Emma.
Como contraponto vem “Child Killers”, a música menos acessível, com um arranjo etéreo (se Brian Wilson ouvir vai amar), uma estrutura estranha e lentidão. Mas, de novo, a banda tira leite de pedra, e faz do que poderia ser uma música chata e pretensiosa uma grande canção… de ninar.
“Favours” acaba sendo a única música mediana do disco. Em outras ocasiões brilharia, mas seu brilho acaba ofuscado no meio de tantas obras-primas. Lembra vagamente “Thirteen Glinding Principles”, do disco anterior, mas serve apenas como uma ponte para o trio final de “Hate”, que se inicia com a brilhante “All Rise”, que abre pequena e delicada. Alun Woodward, sozinho com um piano, canta versos tristes e belos (“I gave you madness I gave you sadness / I don’t have much body / And you were all soul”). A canção começa a ganhar peso com a entrada da bateria, alguns vocais ao fundo, guitarras discretas e o baixo sempre inventivo de Stewart Henderson. Como uma bomba, o refrão surpreende a todos, com corais, orquestras, guitarras, baterias e emoção, muita emoção. Um grande refrão, que ao mesmo tempo traz lágrimas e sorrisos aos ouvintes mais sensíveis. “All Rise!” Tudo se ergue! Para ser derrubado de novo…
“Never Look At The Sun”, a próxima, começa com a mesma suavidade da faixa antecessora, mas com o vocal de Emma e um instrumento de sopro. Uma voz diz “some cold confort will tell you what’s true” e começa o refrão. Este surge discreto, pelo menos para o padrão do disco, mas a orquestra parece explodir em uma cadência enfurecida para acompanhar a voz de Emma, entre sua suavidade natural e o desespero da melodia. De novo, o refrão joga o ouvinte para o alto, sem avisar, sem pedir licença. E esse tom épico continua, no contraste entre versos distantes e etéreos, chegando a um clímax quase inacreditável no final. A banda parece brincar com o nosso coração, expondo-o a emoções adversas, contraditórias, sempre com uma profundidade rara, uma beleza difícil de ser atingida.
Quando a música acaba, podemos jurar que chegamos ao grande clímax, que Emma, Alun, Paul e Stewart já chegaram ao ponto máximo de sua audácia. E assim começa “If This Is A Plan”. Uma melodia não muito convencional faz cama para os vocais contidos de Woodward. Ao que tudo indica será um final parecido com o de “The Great Eastern”, “Make Your Move”. Mas eis que irrompe o (maldito) refrão, com todos os instrumentos que passaram pelo álbum, toda a emoção que manchou as melodias da banda, a dor, o alívio, a felicidade, o ódio, a violência, tudo, tudo, o mundo parece desabar sobre nós em forma de música. O êxtase, o clímax. Algo fora do comum, algo extraordinário. Quando tudo acaba, estamos derrotados pela avalanche de sons, sentimentos, melodias, palavras e texturas proporcionada por esta pequena obra de arte. E seguimos nossas vidas, mas marcados por um punhado de grandes melodias.
Ainda assim, depois de tantas palavras, não consegui explicar com clareza por que disco é especial. Ninguém vai colocar isso em palavras, em fórmulas, de maneira alguma. Mas não é difícil entender; compre, empreste, baixe, roube, mas ouça, uma, duas, dez, mil vezes. Você vai entender.
Texto publicado originalmente no Scream & Yell em 03/06/2003
Post Script: “Hate” foi lançado no Brasil em CD pela Sum Records, e pode ser encontrado com facilidade no Mercado Livre, por exemplo. Mas, para os navegantes, uma curiosidade: “Hate” foi editado nos Estados Unidos com duas faixas bônus, “Coalman” e “Mad Drums” (a primeira pode ser encontrada como b-side do single “Coming in from the Cold” nos streamings). O Delgados chegou a lançar um quinto álbum, “Universal Audio”, em 2004, e decidiu encerrar as atividades em 2005. Porém, em 2022 a banda se reuniu para alguns shows em festivais (como o Primavera Sound Barcelona) e está na ativa. Alguém os traga para o Brasil, por favor?