Entrevista: Kumbia Queers, uma das bandas mais simples, divertidas, criativas e sacanas do cenário latino

entrevista por Leonardo Vinhas

Em 2007, cinco garotas vindas de bandas punk decidiram “punkificar” a cumbia, ritmo de origem colombiana que encontrou grande popularidade na Argentina. Dessa união “profana”, conforme os rigorosos preconce… ops, padrões dos roqueiros e cumbieros de então, nasceu o Kumbia Queers, uma das propostas mais simples, divertidas, criativas e sacanas do cenário pop latino-americano.

Juana Chang (voz), Pilar Arrese (guitarra), Patricia Pietrafasa (baixo), Ines Laurencena (bateria) e Flor Linyera (teclados) conseguiram pegar dois ritmos básicos, em termos melódicos e harmônicos, e encontrar variações inusitadas ao combiná-los. Junto com isso, trouxeram uma postura que deixava clara sua sexualidade – explícita já no nome – sem, no entanto, transformar suas canções em manifestos. Ser queer era parte de suas vidas, não sua razão de viver, muito menos pretexto para a sua música. A postura clara, inequívoca e desencanada foi mais explosiva que qualquer discurso de confronto.

Mesmo com o tom festeiro e festivo de suas composições e apresentações, o Kumbia Queers é uma banda diretamente política, que faz ativismo não a partir de hashtags e discursos, mas a partir das suas ações. Trouxe a cumbia para o meio roqueiro e para o underground quando ambos eram ambientes ainda mais preconceituosos e impermeáveis; levantaram a bandeira queer desde o início simplesmente pelo seu modo de ser – e também pelas letras, que tratavam naturalmente de questões homoafetivas.

Tudo isso transparece no show, que, mais que uma celebração queer, é uma celebração à vida e à música – show esse que passou diversas vezes pelos palcos brasileiros. Na última dessas ocasiões, no Festival Mucho!, em São Paulo, o Scream & Yell aproveitou para bater um papo com as quatro integrantes – Flor Linyera estabeleceu-se em Madri há dois anos e deixou a banda. Pós-show é um dos piores momentos para entrevistar um artista – só perde para os momentos antes do show. Mesmo assim, a conversa fluiu segura e divertida, permitindo abrir um pouco mais do ideário musical e político da banda.

No show no Festival Mucho!, Pilar disse que agora começam “quatro anos de merda” para a Argentina (com Javier Milei assumindo como presidente). Como pretendem atravessar esse período, no qual já se antevê uma demonização da cultura e um retrocesso nos direitos das pessoas LGBTQUIA+?
Juana: Protestando. Vamos para as ruas.

Pilar: Vamos para a rua para nos solidarizar com as pessoas que vão se dar mal, como nós, e também com pessoas que vão se dar ainda pior. O panorama não é muito alentador, mas a vontade é de viver isso em comunidade.

Quando vocês surgiram, eu morava na fronteira com a Argentina e acompanhava essa movimentação de perto. Sempre me pareceu que vocês foram pioneiras nessa questão de trazer uma pegada roqueira para a cumbia, e vice-versa, numa época em que o preconceito em ambos os lados era quase onipresente, e principalmente a cumbia era demonizada. É como vocês se veem?
Juana: Bom… De cara, eu diria que sim. Vemos que houve uma liberação de preconceitos que existiam em relação à cumbia e às sexualidades desde que começamos em 2007. Não tinha essa coisa de garotas para garotas, e com o ritmo aconteceu a mesma coisa. Nessa época, a ideia de brincar com a cumbia era forte até para nós mesmas, porque havia muito preconceito nos anos 1990, a cumbia nessa época parecia algo muito vazio de conteúdo e fomos muito críticas quanto a isso.

Pilar: Era uma cultura que parecia hegemônica, com umas letras muito machistas, muito misóginas…

(nota: para se ter uma ideia, alguns dos hits da chamada cumbia villera, a versão mais massiva e vulgar do gênero, trazia versos como “primeiro senta no careca que eu estou apaixonado”, “não se faça de boa menina porque esse cheiro que leite que sai da sua boca da vaca é que não vem” e… bem, você já entendeu).

Juana: E quisemos fazer algo diferente. Mas eu não te diria que as bandas que vieram depois copiaram o nosso estilo, e sim que a ideia nos ocorreu antes…

Pilar: É que em 2007, quando começamos a tocar, existiam as bandas de rock e as bandas de cumbia, estava tudo muito setorizado.

Juana: E quase não existiam bandas de garotas também.

Pilar: O que me parece é que esse “despreconceito” que tivemos de misturar tudo foi algo que depois foi se armando como uma tendência. E hoje vemos bandas de trap tocando com guitarra heavy metal, ou metendo uma cumbia. Isso, sim, foi algo que vimos como uma consequência do que fizemos. Os estilos foram se misturando e as pessoas mais jovens hoje já não veem conflito algum em misturá-los. Em 2007 era um pecado mortal (risos).

Ines Laurencena: Muitas pessoas da cidade onde vivíamos deixaram de falar com a gente.

Pilar: Sim, se ofenderam.

Vendo vocês ao vivo, lembrei dos B-52s. Não pelo som, que não tem nada a ver, mas eles diziam que estavam apenas tentando ser eles mesmos, e ser gay era apenas uma parte disso. Que eles queriam que o mundo fosse assim, com cada um vivendo sua vida e a orientação sexual sendo somente uma parte dela.
Pilar: A gente sempre fala isso, só não sabia que os B-52s tinham dito isso antes (risos).

Juana: Somos assim porque é desse jeito que as coisas saem. Claro, aproveitamos que os momentos no palco são momentos de uma liberação muito grande, e isso foi algo que começou a partir de quando paramos de tocar rock e começamos a tocar cumbia, que foi justamente quando começou a acontecer uma interação muito mais linda com o público. Não era só a raiva. Claro, existe uma fúria que a gente ainda descarrega nos shows, mas o que se gera é algo muito mais alegre, com humor, as pessoas dançam juntinhas, se conhecem…

Ines: Todo mundo quer dançar!

Pilar: Por um bom tempo, respondíamos entrevistas e fazíamos materiais para imprensa dizendo que não havia como descrever o que era a banda, para nos conhecer era preciso ver ao vivo. Porque ao vivo você nota quem somos, você vai encontrar tudo o que somos. Está tudo em cima do palco: o quanto dançamos mal, não nos penteamos, não usamos maquiagem, estamos sempre com a mesma roupa.

Patrícia: Se quiséssemos mudar, não conseguiríamos.

Vocês já vieram várias vezes ao Brasil, não?
Pilar: Sim! Fizemos duas turnês com o Fora do Eixo…

Juana: Tocamos em Patos de Minas, Anápolis – alguns lugares que nem vocês mesmos sabem direito onde ficam (risos).

Pilar: Adoramos o Brasil, e estamos tão perto que gostaríamos de vir pelo menos uma vez por ano.

Parece que as pessoas se conectam de imediato com a música de vocês por aqui, não?
Pilar: Aqui rola muita, muita, muita energia! Isso acontece às vezes em outros lugares, mas aqui é sempre!

Juana: Essa vez em especial estávamos com muita vontade de tocar. Foi o último show do ano, e foi um ano muito bom para nós!

Pilar: Aqui sempre tem bandas que tocam muitíssimo bem e têm muito ritmo.

Juana: O que tivemos com o público no Rec-Beat foi incrível. Esse festival é em pleno carnaval de Recife, e nós estávamos lá tocando cumbia, que é um ritmo muito mais simples que essas lindezas musicais que vocês tocam. Mas tocamos, e quando vimos que nos saímos bem, isso pra mim foi demais! Uma roqueira tocando no Carnaval de Recife!

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. A foto que abre o texto é de Montecruz Foto / Music

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