texto de Thiago Pereira
Findada a leitura de “Tudo Passará- A Vida de Nelson Ned, o Pequeno Gigante da Canção” (Companhia das Letras), duas impressões imediatas podem surgir ao leitor, algo que suponho a partir de minha experiência. Primeiro, trata-se de uma leitura do tipo ‘uma sentada’, que se resolve rapidamente, pela impossibilidade de se desgarrar do redemoinho alucinante que compôs a obra e, especialmente, a vida de um dos cantores mais populares da música brasileira. Credite-se isso ao ritmo de reportagem-thriller de tirar o fôlego tecido pelo biógrafo, André Barcinski. Em segundo, a impressão que, mesmo após as quase 220 páginas, imaginar que ao menos o dobro de folhas poderiam ser preenchidas e se somar ao tomo, caso tivéssemos acesso ainda maior e mais detalhado a esta que se configura como uma das narrativas mais improváveis – e francamente emocionantes – da vida musical do país.
Sublinho de saída que esta última sensação de modo algum é no sentido de diminuir o louvável trabalho de Barcinski, ‘au contraire’: a biografia de Ned se soma a muito bem vinda ‘transição’ daquele que se consagrou inicialmente como crítico musical de um roqueirismo quase caricato (porém influente; eu e tantos que o digam) e que hoje se posiciona, além da presença multimidiática e cultural, como um excelente historiador da música brasileira, esse eterno ‘lócus’ de memória curta e seletiva, especialmente para o mercado editorial. Ao se debruçar sobre Nelson Ned, Barcinski segue se configurando como um especialista em narrativas não-oficiais da nossa música; estas que por tanto tempo foram restritas às dimensões pasquinianas, sub-acadêmicas e – pra que ter medo do termo? – elitistas, pois dedicadas apenas aos chamados grandes nomes, aqueles todos que nós sabemos quais são.
De modo que o agradecimento do autor a Paulo César Araújo no final do livro soa completamente contextualizado: como o precursor autor de “Eu Não Sou Cachorro Não” e do monumental “Roberto Carlos Em Detalhes”, Barcinski hoje também senta com conforto na sala dos escafandristas mais interessantes e interessados na cultura brasileira de fato, no modo amplo e irrestrito, mergulhando em busca de ouro e gastando muita apuração e páginas preciosas para iluminar a produção por vezes etiquetada como de ‘segunda linha’, ‘subalterna’ ‘oculta’ ou ‘brega’, como o fez em “Pavões Misteriosos”, (que, aliás, inspirou a deliciosa série televisiva “Hit Parade”) ou no bom documentário “A História Secreta do Pop Brasileiro”.
São, em suma, jornadas sobre a readequação de importâncias na cronologia musical do país, um esforço muitas vezes hercúleo, mas louvável. E, já atento sobre o excesso de alegorias de grandeza ou tamanho que se espalha por este texto, que beiram o mau gosto e que talvez deixassem o próprio biografado puto, deixo uma última: “Tudo Passará” é, sem dúvidas, uma obra gigante. Não se trata aqui em converter admiradores às músicas assinadas e cantadas por Ned ou, pior, inventar um improvável fandom ou, pior ainda, algum tipo de culto irônico para o mineiro de Ubá que ganhou, cheirou, comeu e, por fim, perdeu o mundo com sua presença, seu carisma, sua coragem e principalmente, com sua voz. Dedicando-se centralmente a um personagem, porém com olhar atento ao ambiente em que o cerca, “Tudo Passará” se enfileira como um destes tratados construídos com rigor de reportagem, mas com piscadelas sedutoras à mitologia, o que por vezes significa jogar luz sobre destinos heróicos guiados em estradas plenas de buracos morais e éticos.
Evidentemente tudo se torna ainda mais interessante por se tratar de Nelson Ned, sujeito que deve habitar no imaginário do mundo contemporâneo como figura midiática e caricatural de uma idade pré-memética, uma época em que a televisão era o oráculo da visibilidade, a rádio AM era a educação sentimental do povo e a existência de determinados ídolos era mais articulada a uma presença no Chacrinha ou no Raul Gil do que saber jogar o jogo dos algoritmos. Ou seja, seria muito fácil cair na tentação de vasculhar emocionalmente o ‘trash’ ou o ‘exotique’ apelativos, mas um grande mérito da obra é justamente fugir da dimensão ‘curiosa’ e acessar vida e criações de um sujeito portador de uma trajetória pessoal e artística respeitosamente tratada por Barcinski, dono de uma fama e sucesso poucas vezes vistas, dentro e principalmente fora do Brasil – este aspecto, impressionante, é meticulosamente destacado através de números, lugares, histórias, informações.
Assim o livro é também, colateralmente, (parte da) história e salvaguarda da memória de uma indústria e seus mecanismos e personagens muito particulares – destaco aqui a presença determinante do empresário Genival Melo e sua gerência pivotal para o sucesso de Ned e de outros artistas, como Antônio Marcos. Para além da macro narrativa sobre uma máquina que enriqueceu e muito seus representantes porque falavam diretamente a uma audiência mais popular (eufemismo aqui para o Brasilzão profundo, real e, portanto pobre), impressiona a micro-construção, meticulosa, repleta de estratégias incríveis, improváveis e aparentemente impossíveis que arquitetou a ascensão (e posteriormente a queda) de muitos deles. Road trips alucinantes, amizades suspeitas, encontros e parcerias surreais (Ned e SYLVINHO BLAU BLAU?) e muito, muito dinheiro, cimentam vivências absolutamente fascinantes: são inúmeros os episódios narrados, protagonizados por Ned, que emocionam, divertem, assustam e tiram o leitor do lugar.
Mas, sublinha-se, em raríssimos momentos o autor cede à (deliciosa, convenhamos) tentação de parametrizar a vida de Nelson a aquelas das quais nós, leitores e ouvintes da ‘vida pop’ estamos mais habituados a romantizar – seria muito sedutor ‘vender’ o artista à moda do rockstarismo e centrar fogo excessivo nos bastidores de sexo, drogas e boleros doídos que marcaram, e muito, sua existência. Sim, eles estão ali e sim, segue sendo fascinante, através da leitura, redesenhar sua figura em algo que pode ser resumido na perplexidade de pensar que ‘então esses caras que minha avó amava eram uns reis da putaria?’ Finalmente: sim, Nelson e sua patota – em especial os protegidos do empresário – vocalizavam suas vidas transgressoras em versos romanticamente doloridos, mas para além do que estava registrado nos discos e se conectavam diretamente com as veias abertamente românticas do Brasil e da América Latina, viviam vidas que nos fazem sonhar com uma versão cinematográfica do livro, assinada por Martin Scorsese – o Scorsese de “O Lobo de Wall Street”, para deixar bem claro.
Mas nada disso faz sombra ao que realmente parece importar para o autor: contar, sem desnecessários apelos sentimentalóides aos ‘acertos’ ou julgamentos morais para os ‘erros’ de Ned, a história de um sujeito que esta sociedade muitas vezes etiqueta como ‘improvável’ ou ‘inviável’. Nascido nos rincões do país, portador de nanismo, cuja trajetória é condicionada pela nada hospitaleira visão social sobre PCD em um país onde até mesmo as ‘realezas’ parecem se envergonhar e esconder seu pertencimento a este lugar, Nelson parecia possuir uma condição ainda mais rara, que é uma visão absurdamente exata, comparável a sua ambição e a extensão de sua voz, sobre o ‘que’ teria de enfrentar, e principalmente o ‘como’ teria de encarar uma série de hostilidades adesivadas à sua figura. A dimensão de seu nanismo está ali o tempo todo (não teria como ser diferente), alternando por vezes os modos dramáticos, doloridos, corajosos e impetuosos e também por vezes divertidos, mas como algo determinante e não ‘determinista’, diferença que o biografado sublinhou em sua existência (impressiona sua inteligência pública ao tratar do tema) e o biógrafo capturou com precisão.
Nesse sentido, “Tudo Passará”, como a vida de Ned, não é livro sobre ‘capacitismo’ ou uma ode emocional à superação pessoal, mas sim, uma obra sobre a ‘capacidade’ de um artista que viveu esta, mas também muitas outras dores, especialmente em suas relações amorosas, na sua vida familiar e nos seus infernos pessoais, em suas brasas ainda mais elevadas pela notória atração por armas, drogas, sexo, etc. Em suas múltiplas possibilidades, adentrar a Nedlândia não é centralmente sobre ter a oportunidade de gostar ou não dele (ou de sua música), mas sim uma chance de ser propriamente apresentado a este sujeito e inegavelmente se impressionar com a dimensão sobre-humana da vida, substrato que semeia e fermenta os personagens mais sedutores a serem conhecidos. Para além é uma obra que parece revelar mais sobre nós do que sobre o que de fato ela contém: ilumina aos leitores uma série de assujeitamentos, por vezes auto-impostos, que dizem de pertencimentos e marcadores de diversas ordens (classe, raça, território, gosto) e que freqüentemente não ousamos dizer o nome: preconceito. Aí parece estar, em última instância, o grande mérito secreto desse pequeno grande livro, leitura imperdível para o Brasil deste e dos próximos anos.
– Thiago Pereira é jornalista, professor, pesquisador, baixista da Pelos e autor do livro “Vida Pop: representações e reconhecimentos da cultura pop em ficções de Nick Hornby”
Antes tarde que nunca. Barcinski fez parte daquela geração altamente destrutiva para o jornalismo cultural brasileiro (Álvaro pereira Jr, um pouco do Forastieri, alguns paulistanos da bizz), que desprezavam a música brasileira de forma geral e impunham uma visão paulista de cultura monetizando Londres e ny. A maturidade tem feito bem a alguns deles, mas uma geração inteira foi mal influenciada por essa galera. Salve o novo barcinski.