MEU DISCO FAVORITO DE 2023 #2
“Sheherazade Que Se Cuide!“, Saara Saara
escolha de Marco Antonio Barbosa
Lançamento – 07/2023
Selo – Astronauta Discos
Ouça – Youtube / Spotify / Outros Players
Por um breve momento na passagem entre as décadas de 1980 e 1990, a cidade de Niterói (RJ) foi um dos melhores lugares do Brasil para quem era jovem & criativo. Poucos anos depois do auge da popularidade da Fluminense FM, uma comunidade de gente inteligente & prafrentex — sem qualquer manifesto ou movimento organizado por trás — promovia agitos em todos os cantos do município. Parecia que todo mundo tinha uma banda, montava festas, publicava fanzines, pintava, esculpia, produzia shows, organizava mostras de cinema e exposições.
E o Saara Saara era a trilha sonora para toda essa turma, da qual passei a fazer parte ainda adolescente. Quer dizer, não apenas o Saara; ouvíamos com avidez tudo que era novidade e/ou parecesse diferente da mesmice mainstream. Mas o duo formado em 1985 por Servio Tulio & Raul Rachid ocupava um lugarzinho especial em nossos corações por A) serem também de Niterói, B) compartilharem mesas de bar com a gente (frequentadas também por talentos ainda potenciais, como Fernanda Young e Gustavo Black Alien) e C) apresentarem uma das misturebas mais originais e instigantes da história da música brasileira.
De forma inovadora, aplicavam referências inesperadas (orientalismos, erudito, musique concrète e até cancioneiro brega) a seu synthpop. Servio, letrista poliglota e dono de um humor surreal, conjurava anos de estudo de canto lírico para criar um estilo vocal único e indescritível. Raul, pilotando um desatualizado teclado Roland D-10 (o padrão na época já era o D-50), fornecia os blips & blops. Na falta de um sampler, diálogos de filmes, pedaços aleatórios de reclames radiofônicos e trechos de peças orquestrais eram tocados direto de um gravador cassete portátil. Tudo isso se fundia em canções esquisitas e irresistíveis. O Saara Saara emplacou vários hits entre 1986 e 1992 (quando a Flu FM original acabou). “Hits”… entre mil aspas, né. Para nós, para a turma dos agitos de Niterói, Servio e Raul eram superstars. Ainda que nunca tivessem chegado perto das FMs comerciais ou do Domingão do Faustão.
As prediletas da galera despertavam urros quando eram tocadas nos shows, no Teatro da UFF ou no DCE da mesma universidade. “Dr. Fritz” era um tecnopop cuja letra aludia a sinistros experimentos genéticos. “Musik” alinhava a dupla à vanguarda eletrônica dançante da época, desfiando um rosário de nomes de compositores eruditos. “X” unia colagens sonoras e poesia concreta a beats quase industriais. “Allamistakeo” era um hilário cyber-reggae que incluía citação de “America”, de Leonard Bernstein. E “Bip”, na qual Servio aloprava diante da perspectiva de uma comunicação humana mediada por máquinas, era praticamente uma adaptação niteroiense para “The Telephone Call”, do Kraftwerk (trocando o anseio romântico dos alemães pela revolta infrutífera contra uma… secretária eletrônica). Agora imagine esse caleidoscópio conceitual/informacional em alta rotação na rádio. Só mesmo em Niterói, no fim dos anos 1980. Em nenhum outro lugar, nenhuma outra época.
Tudo isso, e mais, ressurgiu em 2023 nos serviços de streaming. Por muitos anos, foi difícil ouvir os hits (sic) do Saara do jeito que eles vieram ao mundo. As versões originais (gravadas no quarto do apartamento do Servio, na Rua Gavião Peixoto, em Icaraí) tocadas na Fluminense nunca tiveram lançamento oficial. Em 2003, a dupla se reuniu para lançar “Sucessos que o Mundo Esqueceu”, com novas gravações de vários clássicos. O CD, hoje uma relíquia indispensável, quebrava o galho, mas o charme lo-fi das demos — “masterizadas” num aparelho 3-em-1! — se perdera.
Os órfãos do Saara precisaram esperar mais 20 anos para reencontrar aquelas micromaravilhas. Lançado em julho de 2023, “Scherazade que Se Cuide!” traz 68 minutos de raridades de Servio & Raul, incluindo as versões originais de “Dr. Fritz”, “Allamistakeo”, “Hutzliks Mutanyum”, “Monstros”, “Muzik” e “Eclipse Lunar”. “Saara Saara”, a música — de cuja letra saiu o título do álbum — também está lá, assim como “Saara II”, continuação registrada em 1986. “Olhar Eletrônico”, uma das primeiras gravações da dupla, não poderia faltar. “Bip” vem de um show realizado em 2010, no Sesc Niterói. São 20 faixas, sintetizando (rá!) a criatividade desorientante e o pioneirismo inigualável do duo. Gravadas em condições precárias há quase 40 anos, essas músicas hoje soam estranhamente futuristas; o pop brasileiro de 2023 ainda não alcançou o tecnopop niteroiense de 1988.
(Imensa pena: nem Servio, nem Raul testemunharam o resgate, promovido por Leonardo Rivera e sua Astronauta Discos. Raul morreu em 2011; Servio se foi em março de 2023, alguns meses antes do lançamento de “Scherazade que Se Cuide!”. Fui amigo de ambos, estive em trocentos shows da dupla, bebi com eles em trocentos botecos de Niterói, conheci o mítico 3–em-1 do Servio. O mundo pode ter esquecido dos sucessos do Saara Saara; aliás, como esquecer algo que nunca se conheceu? Mas eu, eu e toda aquela galera, a minha galera, nós nunca esqueceremos.)
– Marco Antonio Barbosa é jornalista (medium.com/telhado-de-vidro) e músico (http://borealis.art.br).
Lembrando que Servio Tulio & Raul não eram naturais de Niterói, apesar de terem construído sua carreira na cidade. A dupla nasceu em Bom Jesus do Itabapoana, láaaaa no norte do estado do Rio de Janeiro.
Caramba Marco, que surpresa essa banda. Nunca tinha ouvido falar neles e nem lido sobre eles em nehuma revista dos anos 90 e 00 ( bizz, rock press, general, zero e afins ). Vou escutar aqui …..!!!!!!!