entrevista de João Paulo Barreto
A atriz Carluce Couto passou por muitos encontros na produção de “Floradas – Na Trilha da Agroecologia” (2023), série da TVE Bahia que mescla ficção e documentário trazendo uma busca por conscientização em torno de uma exploração mais consciente do meio-ambiente (horários da programação aqui).
Dentre estes encontros, a série destaca a presença de Marsha Hanzi, estadunidense de 76 anos, mas que reside em Tucano, interior da Bahia, há décadas. Em sua fala, Hanzi pontua seus esforços dentro da agroecologia no sítio onde mora. Após anos batalhando em busca de um equilíbrio de plantio e criação de animais, Marsha conseguiu criar um oásis dentro da aridez da caatinga. Carluce, que vive Flora, visitou o local, onde pôde conversar com a agricultora e, do projeto e dos encontros promovidos pelo mesmo, a atriz confirma uma sensação de se perceber parte de algo muito importante.
“Eu fiquei muito feliz por ter participado desse projeto. Porque vejo a arte como um instrumento de modificação social, mesmo. E fazer parte de um projeto como esse, quando estamos vendo descontroles climáticos gravíssimos, sendo algo que está diretamente relacionado com a forma que se produz, diretamente relacionado com o agronegócio, me gerou esse impacto. Um impacto positivo de querer estudar mais, de querer saber mais à fundo o que é a agroecologia”, explica a atriz, e confirma: “O impacto foi tremendamente positivo por essa característica de possibilidade transformação. O cinema como essa ferramenta de transformação social”, celebra a jovem.
Nessa entrevista com o Scream & Yell, a jovem atriz aborda a experiência de voltar a trabalhar sob a batuta do diretor Anderson Soares, sua pesquisa de mestrado na Universidade Federal da Bahia, bem como as labutas do seu campo de trabalho sendo uma atriz oriunda de Salvador e os desafios que a necessidade de migrar para o sudeste acaba trazendo à sua carreira. Confira!
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Como surgiu o convite para a personagem Flora?
Fui aluna do Cine Art’s, que é um curso de cinema promovido por Anderson (Soares) e Aline (Cléa). Fiz esse curso e cheguei a trabalhar em alguns curtas com direção de Anderson. Então, eles já conheciam o meu trabalho. Acredito que foi em foi em 2016, por aí, que ele me falou que tinha uma personagem e que estava pensando em mim para o papel. Eu ainda não sabia qual era o projeto nem nada. Somente em 2018 que fiquei sabendo que era esse projeto de “Floradas”. Na ocasião, eu já tinha me formado em Interpretação pela Universidade Federal da Bahia e eles já conheciam meu trabalho. Já tinha sido aluna deles e, assim, surgiu esse convite.
“Floradas” traz um formato híbrido entre documentário e ficção, no qual você acaba atuando nas duas formas, tanto nas cenas com Jhoilson Oliveira, vivendo os dramas da personagem, quando nos momentos em que as entrevistas com as pessoas que trabalham dentro da agroecologia. Como foi para você encontrar esses dois caminhos de criação atuando?
Só uma observação. A priori, a ideia era que eu acompanhasse a equipe em todas as entrevistas. Só que daí surgiu a pandemia. Então, tivemos que adiar as filmagens. Quando começou um pouco a abertura, chegou-se à conclusão de que talvez fosse mais seguro manter (protegidas) aquelas comunidades que estavam estritamente isoladas… Mantê-las de forma mais segura, sabe? Sem muito contato com pessoas de fora. Então, apesar de ter uma narração, eu não estava junto com a equipe na maioria das ocasiões em que as pessoas que foram entrevistadas. A única personagem real que eu acabei indo com a equipe foi na Fazenda Mariza, em Tucano, que foi a (agricultora regenerativa) Marsha (Hanzi). Anderson sempre deixou muito claro que ele queria que eu vivesse a personagem, mesmo na parte documental. Que fosse a Flora, mesmo, que estivesse ali. Eu não senti muita dificuldade, não. Porque eu estava já tão embrenhada do pensamento daquela personagem, sabe? Eu me relacionava com aquela pessoa real como se fosse a personagem. E eu estava mais ali para escutar do que falar. Então, de certa forma, foi mais fácil.
A série aborda um tema importante de conscientização quanto ao meio ambiente e os riscos que toda a humanidade pode correr diante da extinção de algumas espécies, no caso, aqui, as abelhas. Como a premissa do projeto lhe impactou nessa reflexão?
Eu fiquei muito feliz, João, por ter participado desse projeto. Porque vejo a arte como um instrumento de modificação social, mesmo. E fazer parte de um projeto como esse, quando estamos vendo descontroles climáticos gravíssimos, sendo algo que está diretamente relacionado com a forma que se produz, diretamente relacionado com o agronegócio, isso me gerou esse impacto. Um impacto positivo de querer estudar mais, de querer saber mais à fundo o que é a agroecologia. Na época em que Anderson me chamou para participar, eu era vegana. Já tinha um pouco da noção do que a agroecologia era. O impacto, então, foi tremendamente positivo por essa característica de possibilidade transformação. O cinema como essa ferramenta de transformação social.
Você já tem essa experiência prévia com Anderson Soares na direção e tendo sido aluna dele e da produtora Aline Cléa. Imagino que essa familiaridade tenha facilitado para você diante da complexidade do trabalho.
Facilitou muuuuito! Porque, quando cheguei ao set, já conhecia muitas pessoas, e a relação entre diretor e atriz, diretor e ator, é uma relação intima. Uma relação sensível de que você tem que estar aberto. Ambos têm que estar abertos para entender e compreender o pensamento do outro. E entender o que o outro está falando. Então, conhecer previamente parte da equipe e, em especial, o diretor Anderson, só acarretou coisas positivas, pois ficou mais confortável para mim.
As cenas entre sua personagem e o personagem de Jhoilson Oliveira são complexas e repletas de tensão e de uma violência verbal quase velada. Como foi criar com ele essa atmosfera?
Jhoilson de Oliveira é um grande ator. Nós já tínhamos nos conhecido antes, na época da faculdade, mas havia muito tempo que eu não o via. E aí, quando fomos ensaiar pela primeira vez, eu vi a generosidade dele, como ele é grandioso enquanto ator. E a gente conversou bastante a respeito, até porque a relação entre as duas personagens é uma relação, como você disse, de complexidade. Então, eu ficava desconfortável enquanto Flora, falando algumas coisas, reagindo à agressividade daquela personagem, no caso, o personagem de Jhoilson. E a gente precisava estar muito unido e ser muito amigo, mesmo, para poder colaborar com o trabalho um do outro. Então, apesar de a gente não ter muito tempo de convivência, só foram aqueles poucos momentos de ensaio e logo depois a gravação, eu me senti confiante com Jhoilson. Senti que poderia confiar nele. Foi dessa forma que foi elaborada essa relação.
Você tem experiências em diversos campos de atuação, como teatro, curtas metragens e escrita. Cada processo possui um ritmo diferente. Chegar a esse convite, agora, para fazer uma série de TV já tendo essa bagagem profissional que você tem, obviamente, soma na sua carreira. Preparar-se para esse tipo de trabalho gerou algum tipo de dificuldade ou você já se percebeu que poderia se adaptar bem a esse ritmo de uma série de TV do mesmo modo como em outros campos?
Pergunta difícil, viu… (risos) Deixa eu tentar elaborar aqui. (Pausa)
Fique à vontade.
Minha experiência maior é com o teatro. Mas sempre busquei cursos que me aprimorassem na interpretação de outros veículos, no caso do cinema e televisão. Então, fiz o curso do Cine Arts aqui em Salvador e morei um período em São Paulo. Nesse período, me dediquei ao estudo da interpretação para cinema, também. É uma interpretação diferente da que a que usamos para o teatro. Mas o teatro já dá uma bagagem. A gente não vai sem nada. Não vamos vazios quando interpretamos para o vídeo. Então, além do teatro, esses cursos me deram uma confiança maior para fazer essa série. É uma série de sete episódios na qual ficamos em uma casa filmando todos os dias. Há poucos momentos em que você sai da personagem. Então, acaba que fica orgânico, sabe? É uma interpretação que fica orgânica porque você já está ali junto com todo mundo, junto com a equipe. Você filma, para pra almoçar, filma novamente, encerra dia, vai dormir, acorda, toma café da manhã com a equipe, filma de novo… Sabe? Então, essas entradas e saídas da personagem ajudam a deixar aquela personagem mais orgânica, eu acredito, no vídeo. Essa experiência me ajudou nisso.
Em que momento você percebeu essa vontade de ser atriz que a fez deixar a profissão de advogada para se dedicar às artes?
Eu comecei em 2005, com um curso de teatro amador. Fiz esse curso de forma concomitante com a Faculdade de Direito, que conclui. Após o curso de Direito, ingressei na Faculdade de Teatro da UFBA. Ingressei em Interpretação e abandonei a minha profissão de advogada. Na verdade, não sei nem se posso dizer que eu cheguei a exercê-la. Porque foi um trânsito muito rápido entre o Direito e o Teatro. Sempre quis ser atriz. Não me via muito naquele ambiente burocrático. E foi assim que eu me encontrei enquanto artista. Foi dessa forma. Não sei se te respondi. Essa pergunta sempre me deixa um pouco confusa (risos). Sinceramente, não sei dizer em que momento surgiu essa vontade. Mas lembro de querer isso desde criança, de ser artista de alguma forma. Mas isso tem muito a ver com a nossa cultura de novelas, de televisão. Pode estar permeado dessas lembranças, também. Esse desejo pode estar permeado com cultura de TV aqui no Brasil, de querer ser aquela artista de TV. O que ajudou no sentido de que eu acabei me tornando artista.
Tendo essas experiências em diversos campos, você diria que o teatro, o palco, seria o local onde você se sente mais confortável como atriz?
Olha, não sei te responder. São ambientes distintos. Eu não sei qual seria o mais confortável. Mas com certeza, o teatro. E foi a Escola de Teatro da UFBA que me proporcionou isso. Eu devo muito a essa instituição que me fez ter os instrumentos para ser uma artista, para ser uma intérprete. Qual é o mais confortável eu não sei te dizer. Eu gosto muito do audiovisual, também. Gosto do palco e gosto do audiovisual. Para mim são duas categorias diferentes de interpretação, de interpretar. Somente isso.
Além da formação acadêmica em Teatro, um mestrado em desenvolvimento nesse mesmo campo, você participou de diversas oficinas ministradas por gente como Harildo Déda, Rada Rezeda, Márcio Meirelles, dentre outros nomes de destaque aqui de Salvador. Além disso, boa parte de seus trabalhos são produções daqui. Queria te perguntar sobre essa questão da necessidade que artistas locais precisarem seguir para o sudeste em busca de oportunidades. Lembro-me de ter entrevistado o Eric Assmar por duas vezes e ele me falou um pouco sobre isso. Sobre a ideia de ser um artista/operário e sobre a permanência na Bahia.
Realmente, a gente está sempre em movimento, ainda mais se tratando de um artista baiano, uma atriz baiana. Para aprender novos modelos de interpretar, para ter uma experiência com artistas de outros cantos do Brasil e até mesmo de outros cantos do mundo, mas, também, para conhecer pessoas da área cuja troca pode ser interessante. Pode ter como consequência um projeto, por exemplo. Acho que é nesse sentido que o Eric falou de ser um artista operário. Porque a gente tem que batalhar para que os nossos projetos estejam aí, que nossos projetos vivam e sobrevivam. Enfim, para que a gente trabalhe, também. Estou muito feliz em ver projetos nordestinos. Acabei de assistir a “Cangaço Novo”, uma série que achei incrível. Atores, roteiro, direção, fotografia, tudo fenomenal. Fiquei com um orgulho danado por ser do Nordeste. A gente se ouve. A gente ouve o nosso sotaque, o nosso jeito. E isso também abre esperanças para nós que somos artistas aqui do Nordeste. De que podemos fazer coisas aqui, mesmo. Que não precisamos migrar para outros estados para trabalhar, para ser reconhecido como artista. Eu acho que o futuro pode trazer novidades promissoras.
Você considera muito importante ou essencial essa migração?
Olha, eu gostaria de dizer que não. Que não é importante, do fundo do meu coração. Até pela minha resposta anterior. Mas, infelizmente, ainda para os atores baianos, o mercado ainda é muito fechado, muito pequeno. Então, foi importante eu estar em São Paulo. Não sei se voltarei. Talvez eu volte. Talvez eu saia daqui em algum momento. Mas sei de muitos colegas, muitos amigos que tiveram esse trânsito, tiveram que sair de Salvador em direção ao Rio de Janeiro, em direção a São Paulo, para que pudessem ter mais chances de inserção no mercado artístico. Então, minha resposta é: eu gostaria que não fosse. Eu gostaria que tivéssemos condições objetivas de produção, de verba, para que pudéssemos fazer arte e pudéssemos ter um mercado mais abrangente. Mas, infelizmente, não é o nosso cenário atual ainda.
Você poderia falar um pouco sobre sua pesquisa de mestrado?
Eu estou pesquisando o Centro Popular de Cultura da Bahia. O CPC foi um movimento artístico-cultural que nasceu em 1961e foi até a decretação do golpe militar. E trouxe nomes muito influentes da cultura, das artes. E o CPC nasce no Rio de Janeiro, mas ele vai se espalhar pelo Brasil inteiro com a proposta política, também, da arte. Uma proposta de arte engajada. E houve a criação de um núcleo do CPC aqui na Bahia. E esse CPC baiano foi pouco estudado. Por isso, a minha vontade de ir atrás dessas pessoas que, em média, têm 85 anos, e que ainda estão aqui. Estou em busca dessas pessoas para entrevistá-las e poder capturar um pouco a história do CPC Baiano segundo a visão deles. Dentre os nomes de pessoas que participaram do CPC estão o de Tom Zé, Capinam, Caetano Veloso fez uma música para o CPC, apesar de não ter participado efetivamente. Gilberto Gil participou de reuniões. Roberto Santana fez parte do CPC. Harildo Déda, o cineasta Geraldo Sarno, que faleceu. Orlando Senna fez parte do CPC. Ou seja, são pessoas muito envolventes, muito ricas, historicamente falando, que eu estou em busca e entrevistando para resgatar essa história. Esse é o meu campo de pesquisa. Mais especificamente para a área de dramaturgia e história do teatro.
–Leia também entrevista com o diretor Anderson Soares e o produtor de “Floradas”, Léo Silva
– Co-roteirista, Vitor Sousa fala da emergência em repensar a maneira como lidamos com a agroecologia
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.