entrevista de João Paulo Barreto
A tentação (palavra apropriada aqui, diga-se de passagem) em iniciar essa crítica trazendo um resumo da importância que o filme dirigido há meio século pelo recém-falecido William Friedkin possui como obra capitular do Cinema de Terror e Suspense (sim, em letras maiúsculas) é grande. Afinal, essa nova abordagem do tema tabu para diversas religiões utiliza personagens oriundos diretamente da adaptação clássica do livro de William Peter Blatty em um reencontro cinquenta anos depois da primeira imersão dos mesmos naquele pesadelo. Porém, mesmo possuindo o mesmo nome, estilo de fonte nos créditos, ao menos dois personagens (três, se contarmos com o próprio ‘sete pele’ imortal) e a presença marcante da música “Tubular Bells”, do britânico Mike Oldfield, em respeito ao que Friedkin construiu como força cinematográfica em 1973, é preferível se ater ao que (de pouco ou nada) esse “O Exorcista – O Devoto” (“The Exorcist: Believer”, 2023) tem a oferecer à mitologia fílmica trazida pelo diretor de “Operação França” (1971).
Dirigido pelo mesmo David Gordon Green, cineasta que revitalizou com apuro visual e brutalidade a saga de Michael Myers nos dois primeiros “Halloween” da nova trilogia (o desastre do terceiro filme comentamos aqui), sua presença, aqui, tanto como co-roteirista quanto como diretor, prova que nem sempre a mesma mágica se repete. E olha que o próprio fechamento da nova trilogia, “Halloween Ends” (2022), com seu texto preguiçoso e insosso, já demonstrava isso de forma clara. Infelizmente, é justamente um efeito semelhante em relação ao roteiro que vemos neste seu novo trabalho.
Abordando a possessão, dessa vez, de duas adolescentes, “O Exorcista – O Devoto” se inicia parecendo querer emular o mesmo cenário trazido pela presença maligna na escavação da qual fazia parte o padre Lankester Merrin, no Iraque setentrional do começo da década de 1970. Aqui, porém, Porto Príncipe, no Haiti, surge nos minutos iniciais trazendo uma briga de cães que alude à mesma presença nefasta sentida pelo personagem de Max Von Sydow, e um terremoto fatal que pouco acrescenta à nova trama no que se refere aos efeitos que o pai da futura possuída (ainda na barriga da mãe neste prólogo) enfrentará dentro do seu drama de luto e perda.
Corta para 13 anos depois e chegamos aos dias atuais, nos quais Victor Fielding (Leslie Odom Jr, do ótimo “Uma Noite em Miami”, de 2020), o pai em questão, cria sozinho Angela, sua filha adolescente vivida por Lidya Jewett. Oscilando entre um comportamento normal para uma jovem de treze anos e a introspecção pela curiosidade em saber mais sobre quem foi sua mãe, morta no parto, Angela utiliza uma echarpe que pertenceu à sua progenitora como modo de manter-se ligada a ela. E é quando começamos a perceber a fragilidade de “O Devoto” como roteiro. Banalizando um dos pontos centrais (e não será o único, saliento) de seu original, o texto, escrito por Green ao lado de Peter Sattler, parece ignorar a simbologia contida em todo o citado prólogo do clássico de Friedkin, quando a libertação de um mal é feita por acidente após uma escavação arqueológica descobrir algo grave enterrado no solo iraquiano. Na nova versão, como se apenas para justificar-se diante de um público adolescente (o filme tem classificação indicativa de 16 anos) em uma mastigada fórmula que restringe a ideia da possessão demoníaca a uma batida brincadeira de cunho sobrenatural feita por adolescentes, o que temos é uma situação forçada, que acontece de modo truncado após o desaparecimento de Angela e de sua amiga, Katherine (Olivia O’Neill em seu primeiro papel no cinema).
Enquanto na obra original, todo um aspecto psicológico envolvendo Reagan (personagem de Linda Blair) e seu gradativo sequestro por forças malignas era trabalhado pelo roteiro de Blatty de maneira parcimoniosa, criando as imagens simbólicas do passo a passo do flagelo físico e emocional que a menina e sua mãe (vivida por uma Ellen Burstyn em estado de graça) passariam até serem salvas pelo personagem-título, neste “Devoto” o que temos é basicamente o aparecimento das duas jovens que somem por três dias (em uma patética e forçada referência à ressurreição cristã após a mítica passagem de Jesus pelo inferno depois de crucificado) e que, sem muito desenvolvimento, algo que confirma a ideia de preguiça dos roteiristas, ressurgem possuídas. E até esse climax vir à tona, a obra já começa a se perder em suas ambições ao inserir flashes de imagens demoníacas e vazias em visões de personagens e que ligam o nada a lugar nenhum e que acrescentam zero à trama, denotando exatamente a displicência e o banal de seu roteiro.
A partir desse momento, o longa parece se comportar como uma sátira moralista na qual os aspectos marcantes da obra de Friedkin, como a voz, as cicatrizes nos rostos (que, dessa vez, não são resultado de um auto-flagelo, mas surgem digitalmente) são requentados e, infelizmente, banalizados em sustos fáceis e efeitos digitais deslocados. Neste ponto, é pertinente citar a cena do exorcismo em si, que, em uma deslocada tentativa de parecer querer contemplar diversos credos salvadores e não somente o católico (em tempos de cancelamento, parece que agradar a todos se faz necessário), descamba para uma sucessão de performances constrangedoras nas quais figuras centrais da trama como os pais das jovens (!!), bem como membros de outras três religiões, se tornam os exorcistas. Ao menos, visualmente para fãs do cinema de horror, um revés do demônio contra um insosso padre se torna uma das cenas mais tragicômicas do longa. E ver que o único representante a ser sacrificado é o católico traz uma mensagem subliminar bem evidente.
Mas a pior surpresa ainda recai sobre a volta de Chris MacNeil, personagem de Ellen Burstyn, à trama. Com uma justificativa totalmente deslocada ao inseri-la como uma escritora e pesquisadora de exorcismos na história das religiões e abordando a própria experiência pessoal em um livro bestseller, “O Exorcista – O Devoto” se supera em seu absurdo oportunismo por macular exatamente algo que a obra original de Blatty e Friedkin possui como característica pétrea. É algo que gera um incômodo justamente por ir de total e destoante encontro ao que vemos no final do filme original, quando a personagem de Burstyn segue em sua busca por privacidade e tentativa de esquecer o que aconteceu a ela e à filha. Aqui, chegamos a ver uma jovem Chris MacNeil dando entrevistas em vídeos da época, demonstrando, assim, que sua suposta vontade de tornar público o que aconteceu surge pouco tempo depois, algo que, obviamente, destrói a relação com sua filha. Tratam-se de duas personagens vítimas, e não aproveitadoras de um fato trágico.
Ao sair do cinema, a percepção é a de um filme que, tendo em seu roteiro a presença de elementos ligados à trama original, desperdiça a oportunidade de utilizar-se desse fio narrativo em uma trama melhor construída e, também, ao não se esforçar em criar (nem que seja em forma de tributo) cenas que trouxessem um impacto visual em sua audiência. E isso tampouco acontece em seus aspectos técnicos, pontos que se tornaram tão marcantes no filme de 1973, como o uso de sons e efeitos cenográficos práticos. Uma pena que, mesmo descartável e esquecível, “O Exorcista – O Devoto” tenha conseguido macular uma das personagens centrais de uma obra que, meio século após sua estreia, ainda se faz única. Mas ao menos ainda temos a jovem Chris MacNeil para revisitar e se tornar solidários com sua dor e martírio materno.
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– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.