texto por Renan Guerra
Pós-pandemia se pensou muito no que poderia levar o público ao cinema novamente. Aliás, já antes se pensava no que fazer para que as pessoas voltassem a entender a sala de cinema como um espaço de encontro e lazer. Nos anos 2010 já se identificava a queda da presença de público em gêneros cinematográficos lidos como mais relacionados com o público feminino, como a comédia romântica, que quase sumiu das telas enquanto filmes de super-heróis e as franquias dominavam a programação conquistando uma grande parcela do público, entre homens e mulheres, e deixando outros gêneros cinematográficos à margem, na busca por algum espaço de tela e de público. Nesse sentido é bastante simbólico que a estreia de “Barbie” (2023), filme de Greta Gerwig inspirado na clássica boneca da Mattel, tenha se transformado em um fenômeno inimaginável de bilheteria alcançando a surpreendente marca no Brasil de 1 milhão e 200 mil ingressos vendidos apenas no dia de estreia, quinta-feira, 21 de julho, e lotando salas também por todos os cantos do planeta, com o público tirando peças cor-de-rosa do armário para montar looks especiais para a estreia.
Entre uma intensa onda de consumo em torno de produtos Barbie e uma enxurrada de marcas tentando surfar nessa onda, o que temos nesse meio é um excelente filme que consegue balancear as nuances de um produto pop com a embalagem de um filme que sabe as suas potencialidades e consegue colocar na tela discussões amplas e complexas de forma leve, divertida e sagaz. Com roteiro assinado em conjunto pelo casal Greta e Noah Baumbach, o casal repete a parceria profissional de sucesso que já tinha nos rendido o excelente “Frances Ha” (2012). E é no roteiro que se encontra o maior trunfo de “Barbie”, pois é isso que subverte muitas lógicas esperadas desse universo. A boneca Barbie tem seu próprio multiverso cinematográfico com mais de 30 filmes lançados desde a virada do século. As animações têm um foco bastante direto no público infantil, já o filme live-action que está agora em cartaz nos cinemas parece mirar outro público: as diferentes gerações que cresceram sob o impacto negativo e positivo da figura dominante de Barbie.
Na pele do estereótipo clássico de Barbie está Margot Robbie – excelente, por sinal –, porém temos espaços para inúmeras outras Barbies: uma presidente negra interpretada por Issa Rae, uma Barbie gorda interpretada pela ótima Sharon Rooney e até uma Barbie interpretada pela atriz trans Hari Nef. Os Ken podem ser apenas Kens, mas também são múltiplos e ganham vida nas atuações de Ryan Gosling, Simu Liu, Ncuti Gatwa, entre outros. O elenco de “Barbie”, aliás, é uma seara de grandes estrelas: America Ferrara, Michael Cera, Will Ferrel, Hellen Mirren e até Dua Lipa completam a série de personagens que habitam o universo real do filme e a Barbielândia, o cenário mítico onde Barbies e Kens habitam em plena harmonia – até o dia que a nossa Barbie estereotipada passa a ter questões para lá de humanas. Nesse embate acaba-se criando uma espécie de fenda entre o mundo real e a Barbielândia, misturando bonecas e humanos em um grande debate sobre feminismo, patriarcado e os embates de gênero na sociedade moderna. Mas calma, o filme não é nenhuma tese analítica, mas sim uma viagem pop bastante divertida (e quase existencialista) sobre vida, morte, consumo e felicidade.
Talvez uma das grandes qualidades de “Barbie” é ser um filme que se deixa levar pelo lúdico e pela magia. Nos últimos anos o cinema foi enfestado pela realidade exacerbada, os próprios filmes de super-heróis foram abandonando seu exagero e sua magia e foram cada vez mais investindo em verossimilhança, na qual o universo de fantasia se casa ao real de forma cada vez mais lógica. No filme de Gerwig, porém, a lógica é deixada de lado e a ludicidade toma conta de toda a estética da trama. É como um convite para esse universo mágico da Barbie, em que as referências clássicas da história da boneca se mesclam a um universo bastante fantasioso e que foge essencialmente do real. É divertido resgatar o cinema como esse espaço em que o real dialoga com a fantasia e, nesse sentido, é interessante que a diretora tenha liberado previamente uma lista de filmes referenciais que incluíam uma série de comédias musicais dos anos 50 e 60, como “Os Guarda-chuvas do Amor” (Jacques Demy, 1964), “An American in Paris” (Vincente Minnelli, 1951) e “O Terror das Mulheres” (Jerry Lewis, 1961). Essas referências ficam bem claras no filme, com uma série de efeitos práticos muito interessantes que iram encantar fãs clássicos de musicais e que também dialogam com esse caráter típico das brincadeiras infantis.
Para além de toda a viagem camp, “Barbie” é cheio de diálogos com nosso mundo real de uma forma engraçada: as diferenças de gênero e as discussões sobre patriarcado aparecem como uma mimese curiosa de todo o embate gerado por essa mais recente onda de feminismo. E isso até já gerou uma onda de gente contra o filme, alegando os “perigos” de um filme progressista para as nossas crianças (o filme não é para crianças) e os horrores de um filme que não prega os valores cristãos (risos)! O fato é que o roteiro de Greta e Noah é essencialmente ciente de suas incongruências e é isso que é o mais interessante: é um filme sobre uma boneca e que busca essencialmente gerar mais e mais consumo (e tem conseguido isso muito bem), porém eles inserem uma série de diálogos e questões que tensionam essas fissuras de forma bem-humorada e inteligente. É como que uma piscadela ao público de que estamos engendrados nesse cenário capitalista e neoliberal e que é preciso seguir atento, mas também não deixar de rir dessas complexidades. Coisa que o filme faz muito bem, aliás, rendendo uma série de piadas com os signos de feminino e masculino pela ótica da cultura pop.
No final das contas, “Barbie” é como uma espécie de respiro, é um sinal de que é possível fazer filmes inteligentes e divertidos dentro dos grandes estúdios e ainda assim conquistar o público, movimentando as pessoas e trazendo de novo a possibilidade do cinema como um evento positivo e divertido para ser feito entre família e amigos. Greta Gerwig é uma diretora talentosa e sábia e esse filme foi um passo ousado em sua carreira, mas é a prova de que ela é um nome fundamental do nosso cinema atual. A dica final é: não seja rabugento e atenda ao chamado do trailer (“se você odeia Barbie.. esse filme é pra você”), coloque um pouco de cor no seu look e veja “Barbie” sem pretensões, deixe-se divertir pelo exagero e pelas firulas, aproveite essas duas horas de filme para viajar pela Barbielândia.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.
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