texto de Davi Caro
“Algumas pessoas gostaram do disco, outras não. Mas olhando agora, é um álbum muito bom”
Jack Endino em entrevista ao Scream & Yell
2023 é o ano no qual o improvável aconteceu, e uma das maiores bandas da história do Brasil (em mérito artístico ou número de integrantes), enfim, se reuniu. Paulo Miklos, Branco Mello, Sérgio Britto, Nando Reis, Tony Belotto, Charles Gavin e Arnaldo Antunes subiram a um mesmo palco pela primeira vez desde 2012, lotando estádios e fazendo da reunião de 40 anos dos Titãs um dos shows do ano. Simbolicamente, também neste ano, três décadas se passaram desde que os mesmos Titãs lançaram seu sétimo disco de estúdio, “Titanomaquia”: um lançamento marcado pela saída, logo antes do início da produção, de uma das principais figuras do então octeto (que ainda contava com a presença do saudoso Marcelo Fromer), e representativo de um período de busca, experimentação e muita, muita controvérsia.
O álbum, que ganhou o público pelas mãos da gravadora Warner, não foi o disco no qual o clima de amor mútuo entre a banda paulista e a imprensa e sua audiência se quebrou – este seria o disco anterior, o autoproduzido e mal-entendido “Tudo Ao Mesmo Tempo Agora”, de 1991 – mas seria o disco que faria o já septeto definitivamente cair dos céus da aclamação unânime. Este, um barulhento, cru e escatológico LP é, hoje em dia, reconhecido como um movimento consciente de distanciamento (quase um refluxo) de todo o excesso de instrumentação eletrônica explorado no clássico “Õ Blesq Blom” (1989) e até de atenção da mídia em cima dos oito membros, que viram seu disfuncional processo de composição e gravação (onde todas as faixas eram assinadas coletivamente) resultar na saída, após a turnê, de Arnaldo. Sem um de seus principais compositores, e vendo a boa vontade das audiências e da mídia minguarem, os sete remanescentes se viram perdidos, e encontraram um guia no americano Jack Endino (que viria a produzir outros trabalhos da banda, mas que então era mais conhecido como o produtor responsável por discos de Soundgarden, Green River, e, sim, de “Bleach”, debut do Nirvana).
A simples associação com o estadunidense ajudou a mistificar o disco que sairia em Julho de 1993 como a investida “grunge” dos Titãs (uma resenha da revista Bizz colaborou bastante com isso), e é preciso contexto para entender o que isso significou então – e o que não significa mais. Claro, “Titanomaquia” soa melhor do que o antecessor: as guitarras e baterias, sobretudo, se beneficiaram muito do toque de Endino. E sim, era no mínimo suspeito, aos olhos da crítica, ver uma banda que explodiu nas rádios com “Homem Primata” e “Marvin” enfileirando palavrões em músicas como a abertura “Será Que é Isso que eu Necessito?” ou arriscando guturais em refrões lacônicos, como o de “Estados Alterados da Mente”. Num mundo onde o êxito planetário do Nirvana já era uma realidade, aquilo tudo não podia ser só coincidência.
Analisar (ou mesmo ouvir) “Titanomaquia” trinta anos depois pode ser encarado como um exercício de paciência. Algumas músicas, como “Felizes São os Peixes” e “Fazer o Quê?” podem soar um pouco mais presas à própria época do que outras. Os momentos bons, por sua vez, são realmente bons: as contribuições deixadas por Arnaldo são joias dentro do repertório (“Disneylândia”, que já ganhou regravação de Jorge Drexler, e “De Olhos Fechados”, ambas interpretadas por Paulo Miklos, e “Hereditário”, único vocal de Nando Reis no álbum) saltam aos ouvidos, e “Nem Sempre se Pode Ser Deus” faz por merecer o status de semi-hit da banda. “Agonizando” e “Taxidermia” permanecem em algum lugar entre os dois extremos, com vocais em alta velocidade e riffs pesadíssimos, mas que são menos recompensadoras depois de várias audições.
Porém, três décadas podem beneficiar o legado de uma obra, e existe aí uma outra possibilidade: a de escutar “Titanomaquia” exatamente como uma obra de seu tempo. “Domingo” (1995) marcou o início do distanciamento musical e sonoro de toda a sujeira e peso então defendido pelos músicos, e os Titãs passaram a mais uma vez cortejar as rádios e o mainstream; com “Acústico MTV” (1997), eles seriam mais uma vez o centro das atenções da mídia vendendo milhões de exemplares. O mais próximo da sonoridade densa alcançada aqui pela banda seria no raivoso “Nheengatu”, já em 2014. Mas o disco de 1993 possui um repertório que pouco tem a ver realmente com o som “grunge”: percebe-se claras influências de heavy metal, hardcore, hard rock e, em momentos, do som industrial defendido por grupos como Ministry e Nine Inch Nails na mesma época. Sob esta lógica, “Titanomaquia” é melhor analisado como um ponto fora da curva, um passo muito mais próximo do som extremo mesmo dentro de uma discografia tão variada, e que hoje em dia encontra muito mais admiradores, surpresos com a qualidade subestimada do material, do que detratores.
Num momento onde o rock brasileiro dos anos 80 se aproxima mais de sua “canonização” (os Titãs são apenas um dos vários grupos oitentistas a celebrarem quatro décadas no biênio 2022-23), a relação dos sete membros responsáveis com o debatido álbum permanece quase tão dividida quanto à época: Nando Reis ainda deixa claro o amargor associado à gravação difícil de um disco onde não figura como compositor, ainda que o restante da banda (conforme visto no documentário BIOS, da NatGeo, dedicado ao grupo) não pareça olhar para trás com tanta mágoa. Os Titãs têm uma carreira extensa, e mais do que motivos suficientes para comemorá-la em grande estilo. Mas mesmo um de seus passos mais divisivos merece atenção, pois requer coragem. Ao invés de comparar “Titanomaquia” com seus antecessores ou seus sucessores, talvez o melhor seja vê-lo como o que realmente é: um disco intrigante, agressivo, pesado, singular e, acima de tudo, muito corajoso.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo
Putaqueopario Titanomaquia é um ótimo disco assim como o Cabeça Dinossauro e Tudo ao mesmo tempo agora!!!!
Fui na inauguração do titanomaquia em 1993 no vale do Anhangabaú quando lá não era nem asfaltado. Até hoje eu me lembro de ver uma nuvem de poeira bem de longe antes de chegar no local da agitação. Marcou minha adolescência, é um dos melhores álbum na minha umilde opinião.
Eu já tinha pirado com “Tudo ao mesmo tempo agora”, um esboço pro Titanomaquia. Mas quando ouvi “Agonizando” com a bateria suicida e o gultural do Sérgio e o riff de “estados alterados do mente”, um novo Titãs renasceu pra mim. Os shows desse disco tinham figurinos que acompanhavam o peso e performances muito mais sinistras e músicas como “igreja” e “Jesus ” caim como luva nesse contexto. Por anos classifiquei como o melhor disco deles, mas atualmente o “Jesus” está no top one. Grande matéria. Parabéns