texto por Gab Piumbato
“Dragon New Warm Mountain I Believe In You”, do Big Thief, tem uma canção para cada ano deste milênio – ok, agora você vai dizer que a conta está errada, mas precisamos acreditar em alguma ilusão até que tudo desmorone – “come together for a moment, look around and dissolve”.
Aliás, já é hora de dizer que o refrão de “No Reason” lembra um clássico dos anos 90 – sim, “Undone (Sweater Song)” – “let’s be friends and just walk Away” – e essa flautinha matreira de Rich Hardy poderia fazer o Marcelo Camelo de 2001 louvar o repouso, a calma e a doçura – mas não é disso que estamos falando aqui.
Talvez estejamos falando dum tipo de sentimento cósmico, sim – se o Lester Bangs podia falar disso ao ouvir “Astral Weeks”, por que é que em 2022 ainda não vamos ficar insones com esses versos no ouvido – “Would you stare forever at the sun / And never watch the moon rising”? – será, só imaginação? Mas logo voltamos ao terreno melancólico da vida a dois, será possível sentir felicidade pelo ser amado… nos braços de outra? Nem, aí estão os Grandes Romances do Século XIX, as novelas da Globo e quem traiu quem… “Change” começa bem, mas perde o interesse lá pelo meio.
Em seguida, “Time Escaping” vem a calhar com sintetizadores, guitarras percussivas e… mais louco mesmo é o discurso das ervas daninhas no final. Só que para ser sincero não é uma canção que vou ouvir 10 vezes, talvez nem 3 (quantas vezes você acha que vai ouvir, caro leitor?).
A terceira, “Spud Infinity”, fala num corpo cósmico, afinal o palpite a respeito da canção inicial foi correto: essa canção faz lembrar os ensinamentos de Thích Nhất Hạnh! Estive lendo o mestre budista nos últimos dias e ele conta como é o raciocínio para vermos que o ser humano… atenção… é feito apenas de elementos não-humanos, o que no fim das contas é o que a Adrienne Lenker está dizendo aqui – onde começa e onde acaba um corpo. É tão legal rimar assim: “When I say heart, I mean finish / The last one there is a potato knish”. Onde começa a batata e onde acaba o seu coração? Sem contar que esta é uma das canções mais divertidas de 2022 – só perde, talvez, para as canções do Fred 04 em “Walking Dead Folia (Sorria Você Teve Alta!)”.
Confirme sua humanidade, me diga que o seu coração ainda bate.
Depois de uma canção como “Spud Infinity”, só poderia vir “Certainty”, uma ladainha repleta de “não sei”, se é que é possível escrever isto em pt-br – agora escrevi, já era. “Living in the debt of make-believe”…
Débito? Não pode ser, se você ouve a faixa-título, a magnífica “Dragon New Warm Mountain I Believe in You”, que fala de… não sei bem dizer, este ainda não é o momento de decifrar esta canção verso a verso, desde o início dos tempos, parece mesmo o começo, o indie-folk começa aqui, tudo o que veio é passado – “I believe in you” – yeah – calma alegre, plenitude sem fulminação como disse a outra, a beleza, disse o desvairado, sim, a beleza salvará o mundo… talvez não, talvez só dê mesmo para acreditar num universo que seja belo, desde a introdução arranhada nas cordas, provavelmente naquela parte que fica antes do nut – até mesmo as notas desafinadas e depois um dragão com uma língua de prata falando o meu nome mais antigo. Sim, disse ela, sim sim sim – é difícil deixar essa canção, sair dela como se sai do útero da mãe.
“Mama, the scream of the eagle / Threading my heart through the needle”. Claro que a partir de agora temos de assumir o ponto de vista de um pássaro? Ou não, pode ser só mais uma historinha bíblica, aquela, a que julgam fundamental. “Sparrow” é o tipo de canção que faz de Adrianne Lenker uma compositora peculiar: muitas vezes, o tédio vai lado a lado com o talento e o storytelling num andamento arrastado provocando apenas a vontade de avançar de faixa.
O que é bem feito, pois “Little Things” dá um novo ânimo – oh, sim, mas estamos de novo no batido e cansado terreno amoroso – para quem deseja um vocabulário para aqueles sentimentos um pouco difíceis de pôr em palavras – quando um está dentro do outro, por exemplo – ohhhhh – e um solo de guitarra que mal chega a ser um solo, apenas notas desconexas – como um dentro do outro, cada um perdido dentro de si – numa cidade grande – aliás, esta canção é “eletrônica” – sim, claro que a Adrienne vai dar um gritinho antes da guitarra voltar a tentar solar, já é um clássico Big Thief – ei, eu não disse que gostei desta canção, só que ela é boa, sim – uhhhhhh – os solos de guitarra americanos dos anos 90.
“Heavy Bend” tem o primeiro dedilhado que é a marca da Adrienne Lenker – e o contraste com a marcação rítmica da bateria faz temer algo que jamais se materializa na canção – assim como “Flower of Blood”, que parece um protótipo para o Max Martin transformar num hit pop global melhorado. “Blurred View” sim entrega o que promete: começa cósmica e termina ameaçadora – uma lista: eu sou eu sou eu sou eu sou. Há uma narrativa subjacente de perda aqui, há sempre uma “outra”, diria o francês.
“Red Moon” talvez seja uma das canções mais interessantes da década? Não é para tanto, não é para tanto, mas certamente é uma daquelas que faz os fãs da tradição folk marcarem o ritmo com a sola dos pés, ladeados pelos solos de violino numa cena doméstica e ao mesmo tempo cósmica que parece saída da prosa espontânea de Jack Kerouac ou do fundo de uma fazenda perdida na América em 1929 – o que talvez, para o argumento, dê no mesmo, vai dizer?
“Dried Roses”, que vem em seguida, mantém o clima – não fosse pelo microondas, estamos ainda no mesmo cenário – então, viver em 1929 ou em 1947 talvez, para o argumento, ainda dê no mesmo – mas peraí, estamos em 2022, você vai dizer – e o que há para fazer a não ser foder? Não atire no mensageiro: esta é a mensagem de “Wake Me Up to Drive”, bem fraquinha esta canção, por sinal, uma canção ausente de desejo – ou melhor, uma canção perfeita para um mundo pornificado, onde não é mais preciso desejar – ninguém está falando de budismo aqui.
15 canções parecem excessivas, mas tudo neste álbum é puro Big Thief, pura melancolia, pura raiva, pura delicadeza do verdadeiro Nirvana do indie, já disse o falecido Ptolomeu, aquele amigo teu – assim, quando “Promisse is a Pendulum” chega, já estamos um pouco cansados. A fragilidade e a abertura de Lenker não fazem efeito depois daquela transa com cadáver da canção anterior, será preciso retornar a essa promessa noutro momento. “12,000 Lines” está ali para corroborar a narrativa de que o ser amado, quando deixa de ser amado, perde até o próprio rosto, difícil até de respirar, falaí.
Embora no mesmo padrão, “Simulation Swarm” é bem melhor, uma alucinação “spitting up the oxygen”. Um dos truques do Big Thief é fazer as coisas com uma certa aparência de amadorismo – outros podem dizer crueza – mas obviamente todos ali são músicos-mais-que-gabaritados o que no fim dá um toque de ironia e autoconsciência à coisa toda – sim, é 2022, você esperava o quê?
Ah, sei: “Love Love Love”, que já começa in media res, oh love love love! Esta já é sem dúvida nenhumíssima uma das canções mais antológicas do estilo Big Thief com uma desarmonia em perfeita harmonia – um koan logicamente explicável – “you tell me about your love (…) cause that don’t feel like love” – e um solo torturado, Buck Meek mostrando que não é apenas dublê de guitarrista do Bob Dylan, ele também sabe usar a alavanca, sabe fazer o raking perto da ponte, sabe melhor do que a Adrienne Lenker como é que se faz para libertar um amor, e quem vai dizer que basta gritar seis vezes seguidas? A beleza não salvará o mundo, só a beleza salvará o mundo, e os solos de guitarra ainda existem.
“The Only Place” é mais um dedilhado típico lenkeresco, a mesma mistura entediante de capacidade verbal, destreza na mão direita e melancolia: “Meu abismo, meu abrigo” é bem melhor e dá vontade de viver – e de amar. “Blue Lightning” vem para fechar a lista, uma música que o Wilco não poderia melhorar nem se o Nels Cline chegasse voando num dragão cuspindo fogo – daddy-rock para uma banda que tem, o quê, uma década?]
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– “Dragon New Warm Mountain I Believe In You me dá vontade de viver em 2054”: Sim
– Continuarei a ouvir “Dragon New Warm Mountain I Believe In You” pelos próximos 5 anos? Talvez não, apenas a faixa-título – não saí dela, aliás
– É um dos melhores discos de 2022? Sim
– Há alguma chance de Big Thief vir para o Brasil? Torço para isto
– Para quem gosta de: estudar vedanta, ouvir Alela Diane, solos de guitarra de Jay Som, deixar a chuva molhar a sola dos pés cheios de terra.
– Gab Piumbato é jornalista e autor da melhor discografia comentada de Bob Dylan em português (aqui). Também escreveu uma discografia comentada de Cat Power (aqui)