entrevista por Bruno Lisboa
2021 foi um ano intenso para todos nós, mas com bons frutos para Claudia Manzo, cantora chilena radicada em BH. Envolvida com música e teatro, Claudia está na estrada há bastante tempo, mas a participação em “OXEAXEEXU” (2021), discaço do BaianaSystem, fez com que seu nome fosse apresentado a um novo público.
Aproveitando a nova fase, Claudia Manzo acaba de lançar seu segundo disco solo, “Re-voltar”. Nesse novo trabalho, composto por 10 faixas, a cantautora chilena evidencia novas influências através do uso de bases eletrônicas, mas que dialogam, em plena harmonia, com a sua peculiar sonoridade orgânica e latina.
Produzido pelo belo-horizontino CIDO), “Re-voltar” conta com um time diversificado de participações que vão desde de Mariana Cavanellas (em “Vacilão”), Luiza Brina (em “Pequenos Homens”) e a dupla Russo Passapusso / Beto Barreto (BaianaSystem), que contribui no single “Água Benta”.
Como fruto do seu tempo, liricamente o disco é carregado de simbologia que remete as agruras da contemporaneidade em tempos de luto e de luta.
Na entrevista e no faixa a faixa abaixo, a cantora chilena fala sobre sua nova fase, o processo de gravação de “Re-voltar”, as temáticas político-sociais inerentes ao novo repertório, participações especiais, a busca por novas sonoridades, a influência do seu lado arte-educadora em seu fazer artístico, a volta aos palcos e muito mais. Leia abaixo!
Retomando a conversa que tivemos ano passado, 2021 foi um ano de realizações para você devido a formalização de parcerias importantes, o retorno aos palcos e a gravação de um novo disco. Nesse sentido, como foi o processo de criação e gravação de “Re-voltar”?
Foi um ano super interessante, mas também caótico demais! Muitas emoções, algumas frustrações. Como se vive neste mundo agora, né? Várias dúvidas que afetavam diretamente a criação e a gravação do “Re-voltar”. A criação porque, claro, estava presente a saudade, a vontade de rua, de reencontro, mas também reflexões sobre nosso cenário atual, epifanias minhas, imagina! As parcerias me trouxeram força e vida, vontade de vida. A gente estava com medo, nossa vida correndo risco, então ir pro estúdio precisava de ser organizado e tomar todas as medidas para se proteger. Foi muito intenso, tivemos que aprender a trabalhar de outro jeito, muito diferente do meu disco anterior, com um formato diferente, mas eu gostei, aprendi muito. Tudo era uma incerteza, é caótico, é intenso, dá medo né? O bom é que eu sei que todo processo criativo tem disso.
Acredito que é possível dizer que “Re-voltar” é um álbum que reflete a contemporaneidade já que aborda, em sua essência, temáticas que dizem respeito às dores e alegrias de estar vivo num mundo complexo e diverso. Partindo desse pressuposto, quais foram as intenções que lhe guiaram para o levantamento dessas questões presentes no disco?
As coisas que atualmente me tocam, que fazem parte do que me sensibiliza, do que me afeta. Por exemplo o maltrato físico e psicológico que sofrem as mulheres, o desrespeito com a diversidade dos corpos é algo que faz parte da minha história e são coisas que uma parte da população mundial não aguenta mais! Logo tem as demandas das redes sociais, essa exigência, saber de tudo um pouco e de estar sempre presente, com o sorriso desenhado, só olhando a superfície e a gente mentindo sobre um estado constante de alegria, algo que é cruel, porque não existe! É interessante isso das dores e alegrias porque é difícil entender a dualidade, mesmo assim presente desde o começo do nosso mundo, retratada nas nossas ancestralidades ainda nos custa entender, e acho que a minha intenção vinha de dizer, olha, está feio, está difícil, porém ainda tem saídas, assim como existe a noite logo tem o dia, precisamos nos olhar, nos encontrar, entender a angústia como aprendizado, ressignificar as dores e continuar, na frente tem mais, é vida. Quando olho o disco como um todo, eu falo do ruim que é ser violentada numa relação mas que o amor é lindo e saudável, esse amor bom existe, é legal, isso é esperança. Falo que estou com saudade, no meio de uma pandemia sem poder encontrar ninguém, mas que em breve vamos nos ver, este disco fala de realidade, de que a vida não é linear, este disco fala do amor, mas amor fora do ideal romântico, fala de se inspirar na nossa ancestralidade, de procurar a riqueza na gente, no nosso continente, dentro da gente, respeitar as essências também. A gente está vivendo num mundo complexo e diverso né? Nem tudo é tão rígido, ou imóvel e minhas intenções eram de dialogar sobre isso, precisamos construir um melhor futuro, abraçar teu irmão pra conquistar esse futuro, se inspirar no bom do passado pra construir futuros, juntos, conversando, trocando.
O disco tem um time diverso de participações especiais que vão desde o retorno do BaianaSystem, a Mariana Cavanellas e Luiza Brina. Como se deu a (re)aproximação desse grande elenco e quais as contribuições cada um(a) trouxe para o resultado final?
Sou muito grata. Queria fazer alguma coisa com Mariana e Luiza há muito tempo e neste álbum o desejo se materializou. Admiro muito as duas. Mariana na sua interpretação ao vivo sempre me fazia ficar intrigada, hipnotizada com sua teatralidade, um certo drama que me fascinava, e pensei que a música “Vacilão” era onde a gente ia poder brincar com isso que ela tem e que eu também gosto de experimentar, sinto que combinou demais, nossas diferenças de timbres, de personalidade, de corpos, achei divertido ter a presença dela na música como intérprete. Já a Luiza é uma musicista que me faz sentir mais amor pela música, ela tem uma relação tão orgânica com o tocar e cantar, algo tão fluído que eu fico encantada, e assim aconteceu a participação dela, com fluidez. Falei que tinha uma letra e a gente fez uma reunião no google meet. A música ficou pronta em menos de uma hora. Lu é assim, leve! E assim saiu “Pequenos Homens”. A participação de BaianaSystem é muito especial também, é uma banda com uma história gigante no Brasil, na música. Eu admiro demais como é construída essa história. Depois da minha participação no “América do Sol, 3 ato” do “OxeAxeExu”, eu convidei Russo para cantar no meu disco e fiquei super feliz porque ele topou. No caminho entrou Beto com a guitarra e o BaianaSystem como uma presença onipresente, a gente tinha achado um jeito de dialogar para construir. BaianaSystem é muito mais do que música, muita coisa passa por aí antes de virar música e eu amo esse jeito de ver as artes, integradas, imagem, literatura, história, política, tudo muito presente, se propondo estudar sempre, ser responsável quando se tem o microfone, eu sou muito fã. Fizemos tipo um laboratório para a construção de “Água Benta” e eu penso que essa música aconteceu só porque eu pude fazer isso com eles, porque foram super respeitosos com minha proposta, com minha direção. Eles confiaram no que eu estava visualizando e se jogaram, abraçaram, isso é sensacional! O resultado é incrível, a música tem imagem, tem história, tem ancestralidade, tem América Latina, tem muito compromisso, e ganhou um clipe maravilhoso da Apus produtora de conteúdo com a companhia de dança peruana “La Trenza”. Um deleite.
Outro ponto que chama atenção do disco é o caráter oscilante de sonoridades que vão desde bases eletrônicas a uma instrumentação mais orgânica, marca que já lhe é peculiar em trabalhos anteriores. A aposta nesta hibridização está relacionada ao trabalho com o produtor CIDO?
Trabalhar com CIDO foi um presente! Dá pra perceber a personalidade dele no disco, mas antes de o chamar para produzir eu já estava com a ideia de querer me aproximar de um som mais moderno, de um som que estava chegando nas pessoas. CIDO foi apresentado pela nossa produtora (Marina Lauar) para mim e meu parceiro André Milagres e gostamos demais, era ele. Realmente, o universo do eletrônico me instiga desde sempre, gosto, mas sentia medo da mão pesar mais para isso, porque tem muito mais do que isso no meu desejo de fazer música. Então para mim foi um desafio, mas CIDO entendeu muito bem minhas apreensões e acho que dialogamos muito bem, melhor do que eu esperava. Acho que minha hibridez realmente ficou em evidência. Eu a assumi de vez. Estou super real neste disco, a música tem minha cara.
Agora eu queria que você falasse um pouco sobre a parte gráfica desse novo projeto. A foto da capa é fruto do trabalho com a fotógrafa Luciana Diniz e é carregada de simbolismo. Qual foi a ideia a ser transmitida ali?
A foto é da Lu e o design da capa da Marcela Arenas, uma artista chilena. Fizemos um ensaio com Luciana que foi tipo um rito, ela tem um jeito particular de trabalhar com uma construção de pesquisa muito forte e eu já estava nessa pesquisa com Marcela Arenas. Eu queria que as referências e inspiração fossem super na nossa América Latina, e estava com um olho atento no Chile e outro aqui, mas começamos a falar sobre a cosmovisão do povo Selknam, um dos povos originários chilenos mais maltratados pela colônia, e com um mito muito forte sobre sua formação. No mito resumidamente as mulheres tomavam as decisões e governavam, mantinham a harmonia, e um dia um homem se rebelou, mataram assim muitas meninas, mulheres e uma saiu correndo, deu um pulo e virou Lua. É impactante a violência desse mito, mas fala de ressignificar, então me senti muito identificada com as imagens deles, com suas histórias e as cores que utilizam, que são utilizadas por povos originários de outros lugares da América Latina. No Peru, por exemplo, também tem Urucum e a capa é feita assim, inspirada nessa arte, pintura corporal como forma de expressão, corpo natureza, resistência. Uffff! A ideia também é que a pintura parecesse uma capucha, mas essa já é outra história.
Para além da carreira como musicista você também atua como arte-educadora. De maneira geral essa faceta interfere/contribui ao seu fazer artístico?
Interfere e contribui, me instiga total a melhorar como artista, a compreender esse lugar do diálogo da acessibilidade, da diversidade, de procurar me comunicar cada vez melhor para que o que faço chegue em mais pessoas. É um presente ensinar, quem ensina termina aprendendo muito, é mão dupla, eu sou mestra dos meus maiores mestres. É demais. Tenho que equilibrar os dois lugares em questão de agenda, mas a relação que eu consigo construir com meus alunos é sincera, transparente, então quando eu tenho que concentrar, as vezes num lançamento, por exemplo, eles entendem porque na aula também me concentro e entrego e eu também tento entender as subjetividades de cada um. É um lugar precioso ser arte educadora, que lindo seria todos os artistas poderem ter essa experiência, e precioso.
Por fim, quais são seus planos futuros? Quais são as suas expectativas com esse reaquecimento do mercado dos shows?
Quero fazer um show de lançamento lindo, ir pro palco com a certeza de que vamos nos divertir, vamos dançar e nos emocionar juntos. Se tudo der certo isso será em Julho, e depois espero visitar outros estados. Quero tocar bastante esse disco no segundo semestre. Estamos pensando uma turnê para 2023 e começar mais um disco. Neste semestre ainda tem mais três lançamentos, umas versões de músicas que estão no álbum, umas locuritas. Por aí também, se tudo der certo neste mundo de incertezas, tenho a vontade de estrear meu baile. Estou com dois anos de energia guardada, imagina!
Faixa a faixa
Por Claudia Manzo
01. “Re – volta” – Essa música se transformou no primeiro single do “Re-voltar”. Escrevi com a cabeça na Re-volta que o Chile vivenciou a partir de outubro de 2019. Por isso falo no começo: “Vocês estão olhando o mesmo que eu? Por um lado fico feliz, por outro não”. Uma re – volta é muito potente, pessoas morrem por acreditar numa luta coletiva, e a gente vê a pior cara dos governantes. É uma catarsis, é muita dor, mas o que alimenta isto é a esperança. Então carrega toda a dualidade que temos dentro, o pior e o melhor de nós aparece. Por isso sinto que esta música fala que é necessário abraçar nossos irmãos e irmãs pra conquistar futuro, sinto que é a música que dá o pontapé pro disco e a que me faz entender a espiral de melhor jeito. Acho que é meio aqueles hinos latinoamericanos de resistência, e fiquei feliz de poder colocar meus sentimentos conturbados nela. Foi parte da nova parceria com André Milagres onde ele já começa a fazer parte do trabalho como um todo, discutindo letras, referências, imagens. André sempre foi parceiro dos arranjos e da música, mas agora ele entra também nas reflexões, no universo da música. As referências quase todas são das manifestações no Chile. Até os lasers que o pessoal usava nas manifestações. Eu queria esse clima na música e o produtor CIDO conseguiu super realizar meu desejo.
02. “Confissão” – Fiz essa música antes da pandemia, escrevendo sobre a canseira de estar o tempo inteiro nas redes sociais. Mal sabia eu que íamos passar tanto tempo dentro de casa com máscara e só falando pelas telas, que loucura! Falo literalmente que as máscaras me cansam, mas na verdade é a máscara da não realidade de algumas redes sociais, filtros, alegria constante, não! Ninguém é assim! Tem dias ruins também e isso que é viver!. É cruel prometer uma alegria constante, eterna, parece que quem está triste está no fracasso, não faz sentido. Eu queria me confessar, já que as vezes parece um tabu. Eu também me sinto triste! Nesse mundo que construímos não tá nada fácil, então é normal sentir cansaço e tristeza. Essa música no disco está super especial, pois conta com três músicos chilenos: no três cubano (instrumento de corda) Pablo Reyes, na percussão Aldo Miranda e no baixo elétrico meu irmão – músico também – Jorge Manzo. Uma coincidência interessante! Eu queria colocar uma onda bem mais próxima do som cubano. Adorei me queixar dançando. Jorge e Pablo gravaram no Chile e Aldo aqui no Brasil.
03. “Saudade” – Adoro essa música porque ela veio espontaneamente na pandemia, no pior momento do isolamento, na parte mais dura da quarentena. Virei chef, virei a louca das plantas, conheci uma parte de mim que era totalmente nova, linda. Não aguentava mais também ficar distante dos meus afetos e sentia uma vontade enorme de encontro, de troca, como todo mundo. Teve várias epifanias, uma compreensão do mundo diferente. Ficou em evidência mais do que nunca nossas desigualdades sociais. Algo há de ser diferente, eu? a gente? o que? ainda não sei, mas algo há de ser, alguma coisa já é diferente. Nesta música fiz uma coisa que adoro: um encontro de ritmos, de instrumentos, então tem uma base de rumba, mas tem meio que um ijexá, um diálogo lindo que proporciona nossa música latina. O cuatro, instrumento que me acompanha em várias composições, presente em vários países principalmente da América Central, está presente. A verdade é que a música veio primeiro com o cuatro, bem singelo, com acordes simples. Eu queria matar saudade, esse era o objetivo dessa música. Ela também tinha um ar de esperança, a vontade e a certeza do reencontro.
04. “Língua” – Essa foi a música mais difícil para mim. Fiz junto com André Milagres e CIDO. A gente fez ao vivo junto, a base inteira, gravamos no primeiro encontro e eu nunca tinha feito uma música pop assim como ela. O solo de André eu queria bem Lenny Kravitz e ficou sensacional! Acho que o CIDO tinha essa base pronta na cabeça, no coração, muito orgânica. Ele arrasa!. O que gosto dela é que tem essa cara pop, mas com pequenos elementos de percussão e de instrumentos que fazem sempre parte do meu trabalho. Digo que foi difícil, não pela música, mais pela letra. É porque ela apresentava um toque erótico para mim. Eu ouvia e só conseguia pensar nisso e aí tentei pensar de que maneira falar sobre… Eu tinha uma parte da letra pronta, rabiscos sobre língua. Aí lembrei de um poema que me inspirou pro refrão, e comecei a procurar, ler, escutar mais sobre língua e achei sensacional essa possibilidade de brincar com a palavra de diversos jeitos, como parte do corpo e como linguagem, a palavra, a língua estrangeira. O fato de eu falar mais de uma língua, tem ditados em português e em espanhol. De um jeito mágico estou citando por segunda vez Caetano, fiz isso em “Bruta Flor” no meu disco anterior e agora com a frase “A língua também é minha pátria”. Que presente essa frase, genial! Tinha que estar aí, gracias Caetano!. Não foi fácil, mas adoro língua.
05. “Vacilão” (part. Mariana Cavanellas) – Sinto que foi exatamente onde eu queria que fosse. É uma música com um drama intencional no seu começo, tem um arranjo lindo de metais da Nathalia Porto e soa meio como um bolero, ou cha cha cha. Logo muda para o começo do show, se apresenta o “Vacilão” como se isto fosse um circo e de uma vez vem a cumbia! Queria muito ter a voz da Mariana Cavanellas nela. A Mari tem uma teatralidade ao vivo, que eu amo, sua interpretação sempre me fascinou e tinha um bom tempo que queríamos fazer alguma coisa junto. Desta vez funcionou e adorei ter nossos timbres diferentes, vozes com bastante personalidade e brincando nela. “Vacilão” é uma música que dói, fala sobre abuso, sobre maltrato psicológico e físico, denuncia o cara que é fofo, o amigo de todo mundo e das mulheres, o “esquerdo macho”. Nós debochamos na canção aquele cara que fala de feminismo na mesa do bar, mas que no silêncio, quando ninguém o vê, maltrata e faz estragos. Essa música dói, porém, ao mesmo tempo, fala sobre existir um amor que pode ser bom, saudável. No fundo, como mulheres queremos, acreditamos, mas sabemos que nos é ofertado um amor totalmente machista, com base num patriarcado que não reconhece mulheres como sujeito, que muitas vezes até nos mata. Eu queria ressignificar a dor um pouco, trazer leveza, e assim esta música virou cumbia, o ritmo mais contagiante da nossa América Latina!
06. “Corpo Livre” – “Corpo Livre” tem inspiração na Colômbia, principalmente na matriz africana, é um ritmo dançante para falar da liberdade de todos os corpos. Eu queria fazer uma música que você escute e comece a mexer os pés, ombro ou quadril. Acho que CIDO aqui conseguiu totalmente esse clima e eu sou apaixonada por ela. Na letra queria dizer sobre o divertido e belo que é ser diferente, olhar para pessoas diferentes, diversas e que todas têm direito de ser e estar, em todas as partes. Aqui principalmente falo sobre o corpo gordo, mas vale para tantos corpos, tantos formatos, tantas pessoas, falo sobre se libertar da dieta e assumir que não é normal querer todos os corpos iguais. Que se amar é uma revolução. Isto tem a ver comigo totalmente, o estrago da cultura da dieta em mim. Sei que é um problema mais profundo que só estar fora do padrão porque quem não tem energia não consegue lutar. E a energia a gente recebe dos alimentos, quem está a dieta não está bem nutrido nem bem alimentado então… imagina! a quem serve a gente está malnutrido?
07. “Una parte de la historia” – É uma valsa inspirada nos vals peruano, a música criolla peruana. Amo vals peruano, faz parte da minha vida, desde a infância. Nesta música a gente quis manter essa estética da voz e violão. O André Milagres é um talentosíssimo violonista, participou da composição e fez esse arranjo incrível para as cordas com essa referência da música peruana. A melodia e a letra me vieram de uma vez há muitos anos atrás. Lembro que enviei pro André e deixamos pra lá, agora foi a oportunidade de retomar e colocamos no disco. A letra fala de um amor que só uma pessoa vive, que só uma pessoa conta, que é vivido mais na fantasia do que na realidade. Por isso chama uma parte da história, a estrutura da valsa é pela metade e a gente nunca vai saber o que sentiu e vivenciou a outra parte. Essa letra e melodia tinha que ser uma valsa, daquelas pra sofrer mesmo, pra picar cebola!
08. “Pequenos Homens” (part. Luiza Brina): “Ah grandes mulheres precisam de grandes homens, ou mulheres…” Nesta música tenho a alegria e sorte de cantar junto com a Luiza Brina. Sempre quis fazer algo com Luiza, gosto muito do jeito que a música caminha com ela, parece um jogo simples, orgânico, tudo flui! E foi assim mesmo que veio “Pequenos Homens”. Enviei pra ela a letra que tinha e, mais ou menos, uma ideia de rumba e um baixo um pouco mais salseiro. A gente marcou uma reunião online depois disso e numa reunião terminamos a música, sorrindo! Menos de uma hora, uma coisa muito orgânica natural, que delícia fazer música assim, Lu é gigante! Uma grande mulher! . A letra desta música fala um pouco da infantilização que faz a sociedade com homens. Todo o pano que se passa para quem comete erros garrafais com 30 e poucos anos. Aquele que para a sociedade ainda é um moleque, mas se falamos da menina com 14 já é mulher, responsável, com uma maturidade que menino não tem. Desigual, este mundo é desigual e está cheio de grandes mulheres com amores medíocres por causa disso, mas “é o tempo das grandes mulheres”. Essa canção é também uma homenagem para elas.
09. “Treme Terra”: Esta é uma música que eu escrevi há um par de anos para a Orquesta Atípica de Lhamas, que é uma orquestra onde tocamos principalmente cumbia e ritmos latinos. Fiz pra gente tocar com muita percussão e tem uma versão cumbia, com marcha meio militar, maracatu, uma mistura. Mas também fiz uma gravação, lançada como single com um coletivo de maracatu, o Couro Encantado, na regência da mestra Alcione Oliveira (BH). Foi uma experiência incrível, só tambores e a voz, muito forte. Tem até um making off disso. Muito forte!, Mas mesmo assim com todas essas versões, eu queria colocar neste disco, queria fazer mais uma versão e aí ficou muito nas mãos do CIDO. Foi difícil desapegar das outras versões, mas o CIDO fez propostas super interessantes e ficou uma delícia, ainda é uma música muito potente, porém ganha um pouco de leveza nesta versão. A faixa tem parte da gravação com Couro Encantado, a organicidade dos eletrônicos da mão do CIDO, o violão característico do André que eu adoro. A letra é outro daqueles típicos hinos da resistência latino-americana e a ideia do treme terra tem a ver com meu lugar como migrante, no Chile. A terra treme, tem tremores, terremotos. Tenho outra música onde falo que os chilenos, os que tremem forte, vão ter revolução, mas aqui no Brasil tem isso do maracatu, que faz tremer a terra, que pesa uma tonelada. Adoro como o inconsciente faz sua parte. Acho que aí aparece meu portunhol, a brachilena! A minha hibridez.
10. “Água Benta” (Claudia Manzo e BaianaSystem) – Tanto o que dizer sobre as músicas, mas está aqui tem um sabor especial, por vários motivos. Russo fez parte da composição comigo e André também. Falei com Russo que queria ele no meu disco e ele topou. Sentia que com ele eu tinha que falar de algo que sempre me preocupava ou me tocava que era o apagamento da nossa cultura logo da chegada dos europeus, da colônia na nossa Abya Yala, e fomos estudando, fomos nos apresentando referências, dialogando, um método muito especial que já tinha funcionado na minha participação no “OxeAxeExu”. Então já sabíamos como nos comunicar. Fizemos laboratório, e ao mesmo tempo eu falava com CIDO e com André do que eu queria que a música fosse, as imagens, as referências, história, etc. Queria a base rítmica inspirada no Son de los Diablos, dança afro-peruana que mistura ritmos africanos, espanhóis e ameríndios. O Son de Los Diablos foi a principal inspiração. Essa manifestação andina tem particularidades muito interessantes, como o uso de máscaras e o próprio jeito de dançar. Muitas das coisas que estão ali têm a ver com o medo da figura do capeta e também da bruxaria, bastante condenada pelos europeus. Eu também queria uma introdução mais pro erudito. Eu adoro a história do trítono que era tipo o som do diabo. Então queria também que estivessem esses símbolos presentes, o André ia me ajudando a colocar na realidade estes desejos e contribuindo na letra, na instrumentação, loucuras. É muito interessante como um acorde pode virar algo demoníaco, assim muitas dos nossos costumes ancestrais também viraram coisas demoníacas. A música mais ou menos denuncia isto. Tem várias referências até terminar a letra, mas é esse o caminho principal, o apagamento da ancestralidade. Russo fez uma letra e um refrão maravilhoso que dá o título para a música e CIDO no meio trouxe a ideia de um reggae onde eu quis assumir esse lugar das minhas ancestrais, “me mataram tantas vezes e sigo aqui ressuscitando”. Amei fazer esta música com Russo, me inspira, tirou o meu melhor! Fiquei muito honrada também de contar com a participação mais do que especial de Roberto Barreto, que foi muito generoso! “Água Benta” ganhou um clipe da Apus, produtora de conteúdo, com a direção de Marcelo Pinheiro e Claudia Chavez, com a participação da companhia peruana La trenza com seu espetáculo “El cumbión del chivo”.
– Bruno Lisboa escreve no Scream & Yell desde 2014.