por Adolfo Gomes
Não é de hoje que o cinema de Júlio Bressane prescinde da crítica. É por natureza e vocação o próprio gesto de mediação entre a imagem, o dispositivo cinematográfico e a escrita. O novo filme do cineasta carioca, “Capitu e o Capítulo”, se situa entre a pintura rupestre e a palavra, uma espécie de arqueologia da arte e da memória. Exibido online na décima edição do Festival Olhar de Cinema de Curitiba, a obra ainda pode ser vista no dia 11/10 também através da plataforma de streaming do evento (www.olhardecinema.com.br) antes de chegar aos cinemas ano que vem.
Trata-se de mais uma incursão de Bressane no universo machadiano. Mas aqui o genial escritor é ponto de partida e não necessariamente finalidade: música, poesia, pintura e até o cinema integram o itinerário de referências e aliterações visuais da narrativa. Há uma sofisticada composição formal, nas bordas dos tableux vivants, e, ao mesmo tempo, um despojamento digno de uma conspiração em família. Não tem a efervescência inventiva do cósmico “Sedução da Carne”, nem a pureza descartiana de “O Batuque dos Astros”, duas recentes obras-primas de Bressane sobre o poder e sensualidade da palavra e do corpo. Por outro lado, é justo considerar que, diante da vastidão de Machado de Assis, faz-se a exigência de maior sobriedade.
Também é com algum escrúpulo minimalista que o palestino Kamal Aljafari medita acerca dos territórios íntimos e coletivos dos assentamentos da memória. O realizador, cuja filmografia é uma descoberta do Festival curitibano, ganha foco e projeção com uma seleção de longas e curtas de traço pessoal e fabular, a despeito da sua intrínseca ancestralidade documental.
Em “Porto da Memória”, Aljafari filma o hábito, o lavar as mãos, por exemplo, com um curioso e vivo interesse antropocêntrico. Os movimentos tautológicos emulam uma esfera espaço-temporal que pode circunscrever um universo, tal e qual Godard já havia criado uma galáxia numa xícara de café em “Duas ou três coisas que eu sei dela”.
O homem não é sua casa, antes devia habitar a si mesmo… é o que parece ecoar desse fiapo de intriga, tecida às voltas de uma contestação ao direito adquirido ou não à moradia – um documento é suficiente para assegurar um lugar no mundo?
É uma reflexão multilateral e, por vezes, dolorosa que o cinema de Aljafari não se exime de fazer. Cabe ao público brasileiro aproveitar essa rara oportunidade de travar diálogo com um artista tão impertinente quanto preciso em suas “vistas” identitárias.
O 10º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba acontece de 06 a 14/10 com programação online.
– Adolfo Gomes é cineclubista e crítico filiado à Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine)