entrevista por Marcelo Costa
Um disco de uma banda surgida em 2021 com a cara e a alma de 2021. Assim pode ser definido “Grotesque Radio”, primeiro EP do Golem Dance Cult, duo formado por dois amigos que montaram sua primeira banda juntos quando eram adolescentes e agora, muitas e muitas luas depois, se reencontram: Charles Why (Lost A Noise / Nexus / L-DOPA) ficou responsável pelos diversos instrumentos (baixo, guitarra, cigar-box, gaita, programação, samples, percussão e até uma tigela tibetana) enquanto Laur (Sparkling Bombs / Kevin K Band / Vague Scare / Other-ed) assumiu os vocais. O resultado é um disco denso, tenso, pesado, mas dançante. É eletrônica com abordagem rock and roll (sem a estrutura formal do gênero) influenciada por filmes de terror e pelo Dia de Muertos.
Típico filho nascido em tempos pandêmicos (“num Reino Unido pós-Brexit em total lock-down”, faz questão de frisar Charles), “Grotesque Radio” foi gravado a distância, com Charles na Inglaterra e Laur na França. “Eu mandava para ele a base musical, a cama, e ele acrescentava seus vocais e passávamos longas horas conversando por vídeo, trocando ideias e reinventando nossa ‘roda musical’”. O start do projeto foi a invasão dos apoiadores de Donald Trump ao Capitólio: “Para desabafar minha raiva, comecei a escrever um riff para o que se tornaria ‘Capitol Blues’. Minha primeira ideia era fazer uma espécie de música instrumental com samples de Trump em justaposição com o discurso de Hitler”, conta Charles. “Pensei que a música exigiria alguns vocais e decidi contatar meu amigo Laur”, completa.
Sonoramente, “Grotesque Radio” exibe elementos dark que remetem tanto a Bauhaus quanto a Love & Rockets, Killing Joke e Gary Numan combinados com o senso de humor melódico de Beck e o lado sônico e dançante do T.Rex e do Nine Inch Nails. Os temas falam por si: “Nosferatu Waltz”, “Doppelgänger”, “In my time of (Living On Mars)”, “Marry Me Frankenstein”… a última, inclusive, ganhou um clipe com cenas filmadas em um cemitério e uma igreja, buscando mostrar o personagem de Mary Shelley com um ser romântico, incompreendido e esperançoso. “É uma canção de amor para a pista de dança”, pisca o olho Charles. Na conversa abaixo, feita por e-mail, Charles e Laur falam sobre a produção de “Grotesque Radio”, os dois vídeos que já foram lançados (e que você assiste aqui na página), filmes de terror, cigar-box e muito mais. “Bem-vindo ao Culto (onde dançamos com Golem)”.
Charles, como foi a gravação do “Grotesque Radio”? Foi tudo feito virtualmente, você na Inglaterra e Laur na França? Quanto tempo vocês ficaram trabalhando nisso?
Charles: Eu sou da velha escola, o que significa que toda a minha vida toquei em bandas, com todos os músicos na mesma sala, fazendo músicas juntos. A produção sempre me fascinou e fiz questão de estar sempre envolvido nisso durante as sessões de gravação, trabalhando em estreita colaboração com o engenheiro de som e o produtor (recebi o meu primeiro crédito como co-produtor em 2004 no álbum “Mademoiselle Al Dente”, de L-DOPA, trabalhando com um incrível produtor da “Maison de la Radio” em Paris). Bem, fast forward: no final de janeiro de 2021, num Reino Unido pós-Brexit em total lock-down, com todo mundo preso dentro de suas casas, o inverno acontecendo… e então rolou a história com Trump, seus apoiadores e a marcha no Capitólio em Washington. Para desabafar minha raiva, comecei a escrever um riff para o que se tornaria “Capitol Blues”. Minha primeira ideia era fazer uma espécie de música instrumental com samples de Trump em justaposição com o discurso de Hitler. Daí pensei que a música exigiria alguns vocais e decidi contatar meu amigo Laur. Quando éramos adolescentes, Laur e eu começamos nossa primeira banda juntos, ele na bateria e eu no baixo. Ele estava e ainda está cantando em seus outros projetos de dark wave (Vague Scare e Other-ed) e aceitou minha oferta. Então, começamos a trocar arquivos entre o Reino Unido, onde estou baseado, e Besancon, na França, onde ele mora. Eu mandava para ele a base musical, a cama, e ele acrescentava seus vocais e passávamos longas horas conversando por vídeo, trocando ideias e reinventando nossa “roda musical”. Depois de gravar nossas duas primeiras músicas (“Capitol” e “Frankenstein”), decidimos que íamos fazer um EP especialmente para colocar um limite no volume das músicas que eu estava criando. Todas as canções de “Grotesque Radio” foram compostas especificamente para o EP exceto pelo riff em “Doppleganger”, com o qual eu estava brincando durante as passagens de som na minha banda anterior. Em março, tínhamos a maior parte das 6 músicas prontas, a mixagem ocorreu em abril e Klaus Karloff prosseguiu com a masterização em maio para um lançamento no dia 25.
Quando vocês decidiram tocar juntos novamente, vocês já tinham ideia de que som queriam fazer? Como foram essas conversas de “vamos montar uma banda pesada (mas dançante, com um groove ritualístico e mecânico com alma e coragem).”?
Charles: Sim, eu já havia imaginado o conceito, visual e musicalmente; como devia soar e se parecer. Visualmente, a inspiração era chocar coisas de velhos filmes de terror da Hammer (Film Productions) com todo o universo artístico do “Dia De Muertos”. Daí surge a apresentação para o nosso som: “Imagine um velho filme de terror Hammer dirigido por Dali e recolorido por Andy Warhol”. Musicalmente, Laur e eu estávamos em sincronia, além de nos apoiarmos no espectro mais pesado do rock, e uma das nossas principais decisões foi adotar uma abordagem mais eletrônica para o rock, esquecendo a estrutura tradicional “verso / refrão / verso / ponte / solo / refrão” em favor da estratificação de sons, indo para grooves específicos onde quando você ouve, você pode fechar os olhos, se perder e fazer sua própria dança involuntária (pelo menos é isso que estou fazendo 😉 Como estávamos trabalhando remotamente, para evitar sons estéreis e clínicos, decidimos buscar a espontaneidade e tomamos a decisão consciente de expandir os erros, garantindo que a música respirasse e tivesse vida própria, uma espécie de Frankenstein musical (o trocadilho é intencional). Queríamos (e acho que meio que conseguimos isso em parte), criar todo um universo coeso visual e musicalmente, um som e um visual que, longe do mainstream, seja claramente reconhecível e único em sua maneira estranha própria.
Laur: O conceito de Charles estava bem claro em sua mente e eu naturalmente entrei nele. Foi tomando forma aos poucos, como um quebra-cabeça. Quando ouvi “Capitol Blues” pela primeira vez, eu não tinha certeza se minha voz se encaixaria, mas quando comecei a cantar, funcionou muito bem e a letra naturalmente veio até mim, pois eu estava tentando coisas diferentes com os vocais.
Vocês acabaram de lançar um novo vídeo, “Marry Me Frankenstein”, e eu gostaria que vocês falassem sobre a música, o vídeo e que você também, Charles, contasse de sua paixão por cigar-box (que vocês usaram no single anterior, certo?)?
Charles: Sempre pensei em Frankenstein, o chamado monstro, como um personagem realmente romântico, incompreendido e romanticamente esperançoso, portanto, “Marry Me Frankenstein” é o que chamamos de “uma canção de amor para a pista de dança” 😉 Tinha a definido como uma canção industrial dance groove, com uma linha de baixo vibrante, vocais cativantes, guitarras pesadas e instrumentos tradicionais usados de uma forma não tradicional (por exemplo, cítara gravada ao contrário, percussão caseira com overdrive, taça tibetana tratada com delay…). Laur e eu compartilhamos o vocal, onde ele cantou o verso e eu o refrão (usando um microfone antigo dos anos 50). Nós mesmos fizemos o vídeo usando segmentos de filmes antigos, incluindo o primeiro “filme de Frankenstein” já feito e um trecho de “Der Golem”. Minha filha fez uma “filmagem de guerrilha” me filmando tocando baixo e violão em uma igreja e num cemitério local. Eu usei o termo “filmagem de guerrilha” porque não tínhamos autorização “formal” para filmar nessas locações, então tivemos que trazer luz, equipamento de som e câmera e filmar muito rápido 😉
Laur: Adorei a música assim que a ouvi e achei o refrão ótimo! .Então foi fácil trabalhar nessa também. Como Charles diz, há algum romantismo em Frankenstein, alguma solidão com a qual todos podemos nos relacionar de alguma forma, esta é uma história atemporal. Essa música me fez perceber que os temas e imagens de terror da velha escola definitivamente faziam parte do Golem Dance Cult.
Charles: Falando em vídeos, lançamos nosso primeiro para a música “(In My Time Of) Living On Mars”. Este foi feito por um artista canadense, Guillaume Vallee, que trabalhava com hardware analógico e VHS. Queríamos um visual que se distanciasse de tudo o que está acontecendo no momento, não preso a nenhum período / tendência, algo alucinante onde as imagens deixassem o espectador criar seu próprio cenário. Nesta música, quase não há guitarra, mas o riff principal é tocado em uma cigar-box de quatro cordas. Este instrumento foi feito para mim por Scott Brown, em Olney (Reino Unido). Eu realmente adoro o som dele quando tocado com um bottleneck e conectado a um amplificador. Dá um toque diferente ao som do que você teria com uma guitarra em termos de tom, presença e textura.
A minha “paixão” por cigar-box vem do que chamo de “Caixa dos Ossos dos Desejos”, que são pequenas caixas de oração feitas de uma caixa de charutos e baseadas em objetos criados para o “Dia De Muertos”, no México, que inicialmente fiz só para amigos e familiares como um esforço artístico. Para mim, eles meio que incorporam uma certa iconografia do rock misturada com aspectos cerimoniais, rituais e tribais (mais detalhes aqui). Antes de partir para a Inglaterra, cinco anos atrás, tive a oportunidade de apresentar minhas Wishing Bone Boxes durante os “workshops abertos para artistas” em Paris e o feedback que recebi foi o que me levou a compartilhá-las além do meu círculo privado. A capa de “Grotesque Radio” é um selo feito a partir da reprodução de uma Wishing Bone Box (em diferentes cores: sépia, preto, vermelho ou turquesa) tornando esta imagem parte da apresentação visual do Golem Dance Cult.
Bem-vindo ao Culto (onde dançamos com Golem).
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell desde 2000 e assina a Calmantes com Champagne