entrevista por Luiz Mazetto
Prestes a completar 79 anos de idade, em abril, o cantor Don Bryant vive provavelmente o melhor momento em sua carreira, que teve início ainda nos anos 1960 em Memphis, na lendária gravadora Hi Records, casa de grandes nomes de soul e R&B, como Al Green, Willie Mitchell e Otis Clay.
Após lançar seu primeiro disco, “Precious Soul”, em 1969, Don passou a trabalhar mais como compositor, tendo colaborado com diversos artistas do selo. A sua parceria de maior sucesso foi com a cantora Ann Peebles, com quem é casado desde 1974. Juntos, foram responsáveis por grandes hits como “I Can’t Stand the Rain” e “99 Pounds”.
Depois de décadas sem gravar, período em que também se dedicou à música gospel, Don decidiu há alguns anos que tinha chegado o momento de voltar. Em 2017, lançou o seu segundo disco, “Don’t Give Up On Love” (Fat Possum), que mostrou que sua voz e sua habilidade como compositor apenas melhoraram com o passar do tempo.
Muito bem recebido pelo público e crítica, o álbum abriu caminho para “You Make Me Feel”, lançado em 2020 também pela Fat Possum Records, que repetiu a boa recepção do antecessor e rendeu sua primeira indicação ao Grammy na carreira. Em ambos os discos, o cantor conta com o acompanhamento da ótima banda local The Bo-Keys.
Na entrevista abaixo, feita por telefone em uma tarde de sábado no último mês de janeiro, um extremamente simpático Bryant fala sobre a importância da música na sua vida, revisitar músicas do passado, a rotina em meio à pandemia, como é ser indicado ao Grammy pela primeira vez quase aos 80 anos e qual disco mudou a sua vida, entre muitas outras coisas.
Como tem sido esse período com a pandemia, começou a fazer alguma atividade diferente, algum hobby novo, nesse último ano?
Não, não comecei. Fiquei com a música. Então qualquer momento em que tenho um tempo livre, basicamente uso para tentar escrever mais material. Porque você nunca sabe quando vai precisar de algumas músicas novas. E isso é uma parte tão grande de mim, é basicamente tudo em que penso (risos).
Li uma entrevista sua recente para a rádio norte-americana NPR, em que você dizia que uma das coisas que te ajudaram nesse momento pelo qual estamos passando, com a pandemia, era sentar no piano e tocar algumas das suas músicas favoritas. Você ainda está fazendo isso?
Não tanto quanto antes, mas ainda estou fazendo. Como disse antes, o principal objetivo agora é tentar compor material novo, músicas novas, então basicamente estou mais focado em escrever. Mas eu escuto porque eu tenho músicas, títulos de músicas e frases de letras de músicas que costumam me ajudar a seguir para uma direção diferente com outra música. É assim que eu trabalho, escuto histórias antigas e tento criar coisas novas.
Aliás, nos seus dois últimos discos, e também em alguns vídeos ao vivo recentes, você revisita algumas músicas mais antigas de sua autoria/coautoria, como “99 Pounds” e “I Can´t Stand the Rain”, que foram grandes sucessos na voz da sua esposa, Ann Peebles. Por isso, queria saber se há uma importância específica para você em poder revisitar essas músicas após tanto tempo, no sentido de talvez ajudá-lo a olhar para frente?
Sim, existe sim. Porque essas são músicas que eu realmente gosto muito. A “99 Pounds” para a Ann, por exemplo, é porque ela pesava 99 libras (nota: unidade de medida de peso usada nos EUA). Eu tento pegar pequenas coisas e pontos que eu posso sentir e escrever algumas linhas sobre isso. Se eu conseguir escrever as primeiras frases, então tenho um bom começo. E quando uma ideia, quando algumas palavras vêm até mim, na maior parte das vezes apenas coloco no papel e depois tento voltar a elas. Mas apenas me divirto tentando criar uma história. É isso o que faz as coisas acontecerem para mim, tentar criar uma história.
Agora falando mais especificamente sobre o seu último disco, “You Make Me Feel” (Fat Possum, 2020), que é um disco muito bonito, aliás. Você esperava receber uma resposta tão positiva ao álbum, não apenas do público, mas também da crítica, incluindo a sua primeira indicação ao Grammy (nota: Don concorre na categoria de Melhor Álbum de Blues no Grammy 2021), sendo um disco que foi lançado no meio da pandemia?
Foi uma grande surpresa para mim. Mas sempre que estou tentando escrever uma música, tento fazer isso da melhor maneira que posso, para que consiga extrair o máximo possível dela. E isso realmente me surpreendeu, de chegar tão longe. Quero dizer, isso meio que me deixou sem chão. É algo que já vi acontecer tantas vezes com outros, quando fiquei feliz por diferentes pessoas que conheço que receberam indicações ao Grammy ou algo assim. Para mim, era algo para esperar no meu processo de composição, com a possibilidade de isso acontecer algum dia. E esse dia chegou. Demorou bastante tempo, mas eu sabia que a mudança chegaria (risos).
E receber essa indicação à essa altura da sua vida lhe parece como algum tipo de reconhecimento pela sua obra como um todo?
Eu não… Ficaria hesitante em dizer isso. Diria que mais como algo relacionado à essa música em particular neste momento na indústria da música. São ideias que eu tive, algumas vezes você tem ideias que você sabe que precisam sair, que precisam sair de alguma maneira. Quando algo, quando a gravação chegava, eu precisava voltar ao meu “modo de composição”. Porque pessoalmente eu não estava nesse modo até que essas coisas surgiam. Mas eu voltava a ele, precisava escrever algumas músicas. Não sei, essas ideias vinham até mim. Elas vêm, eu as escrevo, tento colocar melodia nelas, finalizá-las, para sempre ter algo para apresentar quando chegasse a hora. E essas coisas apenas vinham a mim. Uma vez que comecei, foi um sentimento ótimo, porque me levou de volta aos dias em que eu estava no estúdio todos os dias tentando escrever músicas para alguém (risos). E agora, na maior parte do tempo, estou escrevendo para mim.
Quando decidiu gravar esses discos de retorno, vamos dizer, imaginava que conseguiria ter um material tão forte em tão pouco tempo? Os discos foram lançados com uma diferença de apenas três anos entre eles.
Não imaginava. Quer dizer, eu esperava… eu esperava que fosse uma situação desse tipo. Eu não estava ouvindo música com muita frequência na época. Mas quando a situação se apresentou, todas aquelas coisas começaram a voltar para mim: ideias, letras, músicas, e tudo mais. Elas começaram a voltar porque eu estava fazendo isso por mim (risos). Eu ainda tinha todas essas coisas dentro de mim – e elas começaram a sair. E então eu fiquei tão envolvido…comecei a me divertir. E então as coisas apenas começaram a acontecer, e foram melhorando e melhorando – e eu fui me divertindo cada vez mais. Então foi algo excitante para mim, poder voltar e cantar muitas daquelas músicas que tinha feito e então mais ideias apenas continuaram surgindo. Fiquei feliz de poder ter isso de volta à minha vida. E estou feliz, muito feliz com isso.
Você mencionou há pouco a importância de contar uma história quando está compondo. Por isso, queria saber se há algum artista ou alguém próximo de você que era um grande contador de histórias e que te influenciou neste sentido?
Sim, e esse foi o meu pai. Ele era um cantor gospel e tinha um quarteto gospel. Eu tinha seis irmãos e três irmãs e o meu pai sempre ensaiava… Bom, não sempre, mas muitas vezes ele ensaiava em casa e nós todos ficávamos sentados em volta ouvindo eles cantarem. E eu gostava tanto disso que comecei a tentar imitar o som e tudo mais – e isso pegou. Até mesmo na escola primária, que foi quando comecei a cantar. Isso veio de ouvir o meu pai e o seu quarteto gospel e foi algo que apenas cresceu, cresceu e cresceu. Eu adorava, me divertia, tentando criar histórias, tentando soar como esse ou aquele artista. E foi algo que ficou comigo, nunca me deixou. Durante toda a minha vida, é isso que sempre gostei de fazer: cantar, ficar ouvindo e tentar criar algo. É algo que ficou comigo.
Como você disse, a música é algo que sempre esteve presente na sua família. Além do seu pai, você é casado com a grande cantora Ann Peebles. Você acredita que isso te influenciou na sua forma de abordar a música, talvez tornando o processo mais pessoal e natural?
Bom, acho que depois de tanto tempo envolvido, cantando e tudo mais… Quando éramos crianças, nós nos reuníamos embaixo dos postes de luz na rua com outras pessoas que estavam cantando. E apenas ficávamos ali nos postes cantando, criando músicas, apenas nos divertindo, sabe? E isso foi se aprofundando mais e mais, uma vez que passei a gravar músicas com a banda do Willie Mitchell – e eu também tive alguns quartetos meus. Mas em um momento eu decidi que deveria tentar fazer isso por conta própria. E uma vez que comecei a fazer isso, acho que fiquei mais e mais envolvido. E sou grato por ter feito isso.
Neste último ano, você gravou algumas apresentações ao vivo para diferentes plataformas online e a sua voz está soando realmente muito bem, muito forte. Por isso, queria saber qual o seu segredo para manter a voz assim na sua idade. Você toma ou tomou algum cuidado especial?
Não, nenhum cuidado especial. Apenas sempre gostei de harmonizar algumas músicas, cantar algumas das minhas canções antigas favoritas. E ouvir novas músicas e tentar ver se eu conseguia imitar aquele som vindo dos diferentes artistas. Quando ouvia alguém cantar em um disco de sucesso ou algo assim, eu queria ver se conseguiria alcançar aquelas notas, aqueles tons que os artistas estavam fazendo. Apenas saber que podia fazer aquilo fazia eu me sentir melhor. E acho que a música era apenas uma parte de mim. Eu adorava, adorava imitar diferentes artistas. Quando criança, gostava de imitar um artista chamado Frankie Lymon and the Teenagers. Mesmo quando era adolescente, sempre adorei imitar diferentes artistas. Era algo que fazia eu me sentir bem, tentar imitar aquelas pessoas e me aproximar do que elas estavam fazendo. E foi algo que apenas ficou comigo.
Você nasceu, foi criado e até hoje vive em Memphis, nos EUA, uma das cidades mais importantes do mundo quando falamos de música (Nota: nesse momento, Don solta uma risada gostosa de satisfação pela minha afirmação). Por isso, queria saber como foi crescer na cidade e qual o papel que ela desempenhou na sua formação? Você acredita que seria o mesmo artista se tivesse vivido em outro lugar?
Hmm, isso é algo difícil de dizer. Como eu disse, com seis irmãos e três irmãs, e a vizinhança em que crescemos, você tinha muitas crianças por lá, eu não sei. Isso seria algo difícil para eu falar. Penso que ainda gostaria de música (se tivesse vivido em outra cidade), talvez as coisas teriam acontecido de uma maneira diferente. Mas acho que ainda gostaria de música. Eu gostava na escola primária, gostava no ensino médio, e depois que saí do ensino médio tinha um quarteto com o qual estava trabalhando, nós trabalhamos com a banda do Willie Mitchell por um bom tempo nas casas de shows em que ele tocava. Eu gostava, era algo que significava muito para mim.
Por favor, me diga três discos que mudaram a sua vida e por que eles fizeram isso.
Bem… (risos). Ahh, vamos ver. Três discos. Isso é difícil, é difícil. Sei que “I Can’t Stand the Rain” (disco de 1974 da Ann Peebles) foi um. Além desse disco, seria difícil apontar outros. Mas sei que esse foi um em especial. Quando esse álbum foi lançado… porque era uma situação, sabe, você está escrevendo músicas e nunca sabe qual delas vai conseguir o que você espera, que é conseguir um grande sucesso. E acho que esse foi o maior (sucesso) que tive até então, para comparar com outras músicas que eu escrevi. E me diverti escrevendo-a. Mas acho que essa música em especial fez uma grande diferença em mim, no sentido de perceber “Ei, você pode fazer isso, é possível fazer isso”. E então comecei a ter muitas pessoas vindo, buscando por músicas, …tive que começar a criar músicas. Por isso, tirando esse álbum, é difícil apontar outros discos.
Do que você tem mais orgulho na sua carreira?
Eu tenho orgulho de continuar a me divertir, amar e me engajar com todos os estilos de música – seja gospel, country, western, ou qualquer outra coisa. Eu gosto de ver se consigo cantar, então canto todos os tipos de músicas. E acho que isso é o mais importante, apenas continuar aberto. Se uma música era um hit numa época, eu tentava fazer o meu melhor para imitar o que estavam fazendo. Eu tinha um quarteto, com outros cantores, e nós nos juntávamos e tentávamos imitar outros artistas. E acho que foi isso que me fez continuar: tentar fazer o que outras pessoas faziam e esperar que talvez algum dia pudesse gravar algo que eu fiz. E sou grato por isso ter acontecido.
Luiz Mazetto é autor dos livros “Nós Somos a Tempestade – Conversas Sobre o Metal Alternativo dos EUA” e “Nós Somos a Tempestade, Vol 2 – Conversas Sobre o Metal Alternativo pelo Mundo”, ambos pela Edições Ideal. Também colabora coma a Vice Brasil, o CVLT Nation e a Loud!