entrevista por João Paulo Barreto
Terceira de uma série de 9 entrevistas sobre o Mercado Cinéfilo de Mídia Física n Brasil
Valmir Fernandes, do Obras Primas do Cinema, teve seu inicio no mercado do homevideo no final dos anos 1980, começo dos anos 1990, atuando como representante de vendas de VHS nas diversas locadoras que existiam até então na Zona Norte da cidade de São Paulo. No decorrer daquela década, acumulou experiência, contatos e conhecimento de um mercado que passou por diversos booms nos últimos 30 anos, como a ascensão do DVD e o consequente declínio e extinção do VHS; fechamento das locadoras, aumento do mercado de consignação nas livrarias, ascensão do blu-ray, do streaming e, hoje, de um mercado de nicho e (quase) exclusivo a colecionadores.
“Rico eu sei que não vou ficar mais. Não existe essa ideia de ficar rico nesse mercado de empresa independente de mídia física. Mas quero levar uma coisa que eu gosto, um produto bem feito, para o colecionador”, me fala Valmir durante nosso papo em um nível de sinceridade admirável. “Pagamos as nossas contas, nossos funcionários, e sobra algum dinheiro para a gente investir em outros produtos, lançarmos e continuar lançando no futuro”, explica o processo de retroalimentação de um mercado que parecia combalido, mas encontrou em 2020 um respiro louvável.
No papo abaixo com o Scream & Yell, dentro da pauta Mercado Cinéfilo de Mídia Física, Valmir aprofunda sua trajetória, fala dos percalços diante de impactos que surgiram nessa última década, mas não deixa de demonstrar otimismo quanto a permanência da mídia física dentro desse mercado cinéfilo. Confira!
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Valmir, você tem uma longa trajetória dentro do mercado de homevideo. Chegou inclusive a aprofundar isso em uma live da página Movie Box, do Tailan Dutra, quando citou sua entrada nessa campo como vendedor de filmes adultos e tendo saído da área de planos de saúde após um convite inesperado durante uma pausa para uma cerveja no fim de um dia de expediente. Como se deu essa seu início profissional ainda nos anos 1980?
Sim. Por um acaso, em um final de dia de trabalho, eu encontrei uma pessoa que trabalhava com venda de filmes adultos. Mas antes disso, antes de trabalhar com venda de plano de saúde, eu havia servido o Exército no final da ditadura, nos anos 1980. Ao sair do Exército, procurei trabalho em uma empresa de fabricação de automóveis, no ABC Paulista. Aos 13 anos, antes de me alistar, eu tive um emprego em uma marcenaria. Naquela época, você poderia ser registrado com 13 anos na carteira. E o sonho de qualquer adolescente naquele tempo era entrar em uma grande empresa de fabricação de automóveis no ABC Paulista. Era um sindicato muito forte na época. O Lula, o sindicato, toda a galera do PT iniciando. Tudo era de lá. Tinha uma força grande. E o sonho de qualquer jovem iniciando a vida profissional era trabalhar na indústria automobilística. Eu, saindo do quartel, fiz uma entrevista na Pirelli e na Scania. Acabei entrando na Scania Caminhões e trabalhei lá por dois anos e meio, três anos. Começaram, então, a mudar os horários de turno de trabalho. Havia mês em que você trabalhava da 6h05 às 16h05, depois das 13h até 1h da manhã. Mas tinha aqueles gerentes antigos que pediam, quase nos obrigavam, a fazer hora extra até as 4h da manhã. Das 16h às 4h. Na época, eu ainda era aquele jovem rebelde. E o cara me colocou para trabalhar à noite, das 22h às 6h. Depois de um tempo nessa, conclui que aquilo não era para mim. Na época, aquela não era uma classe de estudo. Nós éramos de uma linha de produção, então tinha uma visão só para a frente. Não tinha pensamento em estudar, em crescer na empresa. A expressão correta era “peão da produção”. Então, eu via que aquilo não tinha nada a ver comigo. Era um mercado que estava muito forte de caminhões e carros, e, por isso, foi difícil sair. Demorei três meses para pedir para sair. O psicólogo da empresa falava: “Espera, tem muita gente aposentada. Esses cabecinhas brancas vão sair tudo. Você vai entrar no controle de qualidade, vai ter chance de crescer aqui”. Mas eu não aguentei três meses naquele ritmo. Acabei fazendo acordo com a Scania. Minha família achou aquilo uma loucura. Minha finada mãe (meu pai já tinha morrido na época), meus irmãos. Aí eu troquei totalmente de área e fui trabalhar com plano de saúde, na Sulamérica.
Nesse momento que surgiu o convite para vender filmes adultos, então?
Sim. Lembro que, na época, eu fui tomar uma cerveja no final de um dia, depois do trabalho de visitas com plano de saúde, e entrou esse rapaz, que também pediu uma cerveja. Começamos a conversar. O vendedor é aquele cara que gosta muito de conversar. Um fala do seu mercado, o outro fala do próprio. E naquele período estava chegando a Buttman no Brasil. Final de 1989 para 1990. Aí eu pensei: “Eu não estou ligado nesse mercado. Só conheço aquelas coisas que passam na TV Manchete, na Bandeirantes, de madrugada” (risos). Eu não tinha conhecimento sobre filme adulto, sobre a força desse mercado nos Estados Unidos, que já era uma potência na época. Conversando com esse vendedor de filmes, ele falou que estava para ser gerente em uma empresa que estava chegando ao Brasil, a Buttman. Ele me disse que era um estilo totalmente diferente do que se vendia de cinema pornô no Brasil. Porque os americanos focavam em mulheres com seios grandes. E o John Stagliano (N.E. Fundador da Buttman) veio para o mercado brasileiro focando em bunda. Aí o cara me explicou aquilo, falando que na Zona Norte de São Paulo, perto de Guarulhos, aeroporto de Cumbica, até Pirituba, tinha uma faixa de mil locadoras. Na época, eu tinha uma lambreta, uma vespa. Fui conhecer o escritório. Teve uma reunião com representantes de cada região aqui de São Paulo e acabei me interessando em trabalhar na área. Ele falou que eu tinha que escolher entre a área de plano de saúde e essa. O trabalho com planos era com horário marcado previamente com os clientes. Eu fazia visitas às residências, empresas, para apresentar as propostas dos planos de saúde. A Sulamérica vendia seguro de vida, também. Aí eu falei pra ele que ia enfrentar. Tentar levar os dois trabalhos. Ele falou que as locadoras abriam, normalmente, ao meio-dia, 13h. Comecei fazendo as duas coisas. Eles me deram umas pastas, e eu comecei a ir com minha lambretinha. Nas pastas, tinham uns dez lançamentos com as capas dos filmes. Nessas visitas às locadoras, comecei a ter mais conhecimento desse mercado de homevideo. Fui vendendo tanto filme que parei de trabalhar com seguros. Fiquei só com os VHS.
Como foi a migração do mercado de filmes adultos para o convencional e clássicos do cinema?
Nesse começo dos anos 1990, eu estava como representante da Buttman na Zona Norte aqui de São Paulo e fui conhecendo representantes de outras empresas que vendiam filmes convencionais. Lançamentos em VHS. O DVD ainda não estava em fabricação para locadoras. O forte era o VHS. Fui crescendo nas vendas e conhecendo pessoas de outros mercados, como a Warner, California Filmes, Flashstar, Universal. Fui tendo esse contato com essa galera de representantes e crescendo dentro da própria Buttman, onde virei supervisor. Depois, virei gerente de vendas da equipe. Porque, nessa área, o trabalho não era só com representantes que vendiam Buttman. Você trabalhava com pessoas que vendiam filmes da Warner, por exemplo, junto com filmes da Buttman. Ele visitava a mesma região da cidade e aproveitava a viagem para fazer as duas coisas. A Buttman se tornou a maior empresa de filmes adultos naquele momento. E tinham aquelas reuniões do Jornal do Vídeo, na revista Ver Vídeo, revista Ver Vídeo Erótico. E eu fui conhecendo os diretores das empresas. Além disso, eu sempre era convidado para participar da transmissão do Oscar, quando as empresas organizavam em março o encontro dos representantes para assistir. Mesmo eu sendo da área de filmes adultos, os caras me convidavam por ser gerente em uma grande empresa que fabricava muitos VHS na Videolar. Nesses encontros, eu comecei a ter contato com esses diretores. O finado Wilson Cabral era um deles. Ele foi diretor da Columbia no início, e depois virou Sony. Ele até aparece no documentário “Cinemagia”. Faleceu em 2018. Então, fui conhecendo essas pessoas grandes do mercado, como o pessoal da CIC Homevideo, e fui pegando conhecimento do mercado de filme convencional. Depois saí da Buttman e fui trabalhar com outra empresa de filme adulto, como gestor. Era uma concorrente da Buttman, que era a Brasileirinhas. Fiquei lá de 2000 a 2005. De 2005 em diante, fiquei trabalhando com filmes convencionais na California Filmes, que havia me feito uma proposta para eu ser gestor. Esse foi o período da virada do VHS para o DVD. Passei a vender as duas coisas. Até o final do VHS, o DVD representou uma diferença enorme. Havia locadoras em todas as esquinas. O DVD era uma novidade imensa em comparação ao VHS. A diferença era incrível, com extras, sem ter que rebobinar, imagem, som.
Em que momento você começa com a venda de filmes pelo selo Colecione Clássicos, que viria a se tornar Obras Primas do Cinema?
De 2009 para 2010 montei o site do Colecione Clássicos. Como eu curtia filmes cult e clássicos, fui aprendendo nesse mercado, e pensei em montar esse site. Mas não parei de trabalhar como gestor. Não larguei o trabalho. Depois que montei o site, fiquei um ano e meio trabalhando ainda na empresa de filmes convencionais. Minha esposa e filho ficaram tocando o site Colecione Clássicos e com os produtos anunciados no Mercado Livre. Abri uma conta no Mercado Livre somente com filmes clássicos. Eu comprava na época produtos da Classicline. Já conhecia a família Arrais há muito tempo e comprei com eles os primeiros produtos. Eu tinha muito contato com eles, pois a Distrivideo, que é da família Arrais, aí no Nordeste, comprava muito filmes da Buttman. Eu falava muito com o Sr. Maurílio Arrais. Hoje, o contato é com o Alexandre Arrais. Comprava com eles westerns, filmes dos anos 1940, 1950. Depois, eu trouxe produtos da New Line, da Versátil. Fui conhecendo outras empresas desse nicho de mercado de colecionadores de filmes antigos. Comprei também da Continental, que o pessoal fala muito sobre a qualidade, mas foi uma das que mais lançou produtos aqui no Brasil, tanto em VHS quanto em DVD, mesmo com a qualidade não tão boa dos DVDs. Mas tinha muita variedade de obras. E eles vendiam para a Saraiva, para Livraria Cultura na época. E eu não conhecia esses rumores deles terem ou não direitos e pensava: “Bom, se eles estão vendendo para grandes redes e mandando nota fiscal para mim”. Não se sabia nada sobre direitos de filmes. Você comprava o produto, nota fiscal, tudo certo, e botava pra revender. Comecei a me aprofundar mais nessa área de ter uma produtora, uma distribuidora, e ver como se fazia para adquirir os direitos das obras lá fora. E com o conhecimento que eu passei a ter com esses caras nas reuniões, fui pegando alguns contatos, anotando os telefones das empresas na Inglaterra, Estados Unidos, França.
Lembro-me que os lançamentos iniciais em DVD tinha o selo Colecione Clássicos, e o subtítulo Obras Primas do Cinema.
Isso. O site Colecione Clássicos tinha esse subtítulo que era Obras Primas do Cinema. Os primeiros lançamentos do Obras Primas foram com o selo Colecione Clássicos e esse subtítulo. Nessa época, peguei alguns contatos nos Estados Unidos e fui estudar como funcionava o domínio público. Procurei um advogado especializado nisso que conheci das reuniões de licenciamento aqui no Brasil. Eu não tinha muita grana para pegar os filmes mais atuais, e comecei pelos filmes de direito público aqui no Brasil. Ele me deu o site com a lista de filmes pela lei brasileira de domínio público, que são 70 anos, e o site pela lei nos Estados Unidos, onde dá pra consultar os filmes que são registrados e não registrados. O cara produz o produto, registra por cinco anos, e abandona. Eu achei o contato nos Estados Unidos, mas, nessa época, eu não tinha muito conhecimento. O cara me mandou uns DVDs de filmes dos anos 1930, 1940, e que estavam em domínio público. As legendas já embutidas. Sem a possibilidade de poder modificar, corrigir erros gramaticais. Eram grandes obras, mas com legendas de baixa qualidade. E os filmes não tinham remasterização, porque também tem esse problema. Eu fiz um material gráfico maravilhoso. Já tinha esse conhecimento para fazer um produto de apelo visual, com uma grande qualidade no material gráfico. A minha designer que faz as capas já trabalha comigo há 20 anos. Ela já fazia as capas dos filmes adultos. Ai eu fiz um material lindo, os produtos venderam muito bem, mas eu tive reclamações quanto às legendas. Então, fui aprendendo, fui montando. Resolvi tirar o nome Colecione Clássicos e manter Obras Primas do Cinema. Montei um escritório já com autoração própria, tradutores, edições. Montei todo o estúdio. Comecei já a aprender a ter contatos com as empresas que têm os direitos de filmes mais atuais. Isso no mundo todo. A Universal tinha escritório aqui no Brasil. Quase todas tinham ainda. Mas tinham produtos que eles não estavam interessados em lançar, pois não alcançavam os números que eles precisavam. Mas, para mim, chegar a vender mil DVDs era um sucesso. Eu tinha uma estrutura pequena, impostos para pagar, licenciamentos. Na época, era a Ancine. Depois Codecine. Mas dava para se manter legal. E foi com esse conhecimento que eu entrei (no mercado), cara. Fui aprendendo desse jeito, mesmo. Na raça e no conhecimento que eu tive do mercado no dia a dia. Comecei a pegar filmes de domínio público. Mas muitos estavam sem remasterização. O pessoal hoje compra muitos filmes dos anos 1930, 1940, por conta do domínio público, mas se forem remasterizados atualmente, há o risco de ser processado por uma empresa lá fora que viu que você lançou um produto que está sendo remasterizado em 2017, 2018, mesmo os produtos sendo dos anos 1930. “Napoleão”, por exemplo, eu lancei a versão de 1927, e tive que pagar os direitos da remasterização. Eu peguei um contato lá nos Estados Unidos, em site com os registros. Tem um site nos Estados Unidos que é o FBI quem controla. É onde as produtoras registram e depois param de registrar, filmes que não deram certo, que deu pouca bilheteria, e foram tipo que largados. Só que eu pegava produtos somente dos anos 1920, 1930, 1940, porque eram filmes em domínio público brasileiro, mas sem remasterização. Tinham uma qualidade de imagem legal. O contato que eu tinha era com um brasileiro que morava em Los Angeles há muitos anos. Ele me mandava os filmes de domínio público já com o master pronto, mas com a legenda já embutida. A gramática era ruim. Mandava o produto já autorado. Tinham filmes que vinham até com o logo do Colecione Clássicos. Uma coisa absurda (risos). Só que eu fazia um material gráfico muito legal. Vendeu muito bem. Era um público que buscava esses filmes dos anos 1930 e 1940. Os filmes das divas de Hollywood eram muito buscados. “Mogambo”, por exemplo, que está saindo novamente pela Classicline. Decidi usar esse subtítulo, Obras Primas do Cinema, criar um selo próprio. Deixei o registro Colecione Clássicos na loja, para poder revender de todo mundo nesse nicho de mercado e, em 2012, criei o Obras Primas. Agora em setembro fez oito anos.
Como foi adentrar esse período de 2020 repleto de incerteza para o mercado de mídia física, que já vinha combalido de um período de crise?
Eu comecei janeiro desse ano bem pra caramba. Em dezembro de 2019, eu lancei, para entregar em janeiro, a coleção Anos 80. E mais outra coleção da Agatha Christie, com os direitos da Gaumont. Fiquei surpreso, pois vendeu muito bem. E eu tinha muito medo de 2020. Não sabia da pandemia ainda, mas a gente do vídeo começa o ano e não sabe onde vai parar. Nós estávamos assim. E chegou março, dia 20, a pandemia. Aquilo me deu um desespero, porque estava indo bem no site, e o Obras Primas estava legal, porque eu tinha colocado produto dentro da Amazon, em venda direta. Estava chegando a um público maior. Até então, eu não participava das lives ainda, dos grupos de colecionadores das redes. Fazíamos a nossa mídia social, mas ainda muito pequena. A Amazon começou a trazer um crescimento de vendas. Foi crescendo, crescendo. Aí chegou março. Eu pensei: “Ferrou!”. Eu com nove funcionários registrados. Tive que entrar naquele esquema do governo, com o pagamento de 50% por eles e eu pagar o restante com parte da equipe em casa, trabalhando meio expediente. Eu tirei cinco pessoas para fazer isso por 90 dias. Cara, aí chegou abril, meu site começou a vender bem. Além dos produtos da Obras Primas, os produtos que eu comprava da Classicline, Versátil, CPC Umes Filmes, New Line, LineStore, Imovision. Eu era representante da Imovision, e eles não traziam DVDs de lançamentos desde dezembro de 2018. E eu havia pegado a Imovision para distribuir no Brasil no ano passado. Eles operavam em consignação no meu site. Aí eu vendi uma grande quantidade para a Livraria Cultura, porque ano passado eles pagaram à vista. Eu tive sorte, porque eu tomei um calote imenso em 2018 da Cultura e da Saraiva. A Imovision, eu vendia para o mercado todo como representante. Eles mandavam para mim e eu para os clientes. Comecei a vender bem produtos do Obras Primas no site, também. Abril começou a bombar. Aí o Fabio (Martins, proprietário da FAMDvD) trouxe o primeiro lançamento em blu-ray em 2020 (N.E. O blu-ray do filme “A Bruxa”), primeiro lançamento vindo de uma empresa independente. E isso começou a aquecer o mercado. Eu comecei a comprar mais, o site começou a vender mais. Comecei a trazer a coleção “Anos 80 Terror”. Depois veio a ideia de voltar ao blu-ray, que não lançava há muito tempo. Eu havia lançado em 2013 o “Dr. Mabuse”, ainda pela Sony. Mas era um produto muito caro. Eu não sabia vender. Ficou bom o produto, mas era um investimento muito caro em uma época errada. Quando eu lancei o blu-ray de “Um Lobisomem Americano em Londres”, decidi colocar só no meu site. Eu tive que chamar os caras de volta para o trabalho, você acredita?! “Volta para o escritório, vamos ver se a contabilidade pode fazer alguma coisa”. A contabilidade foi e falou que tinha que ter três meses de meio turno, trabalhando de casa. Sobraram quatro pessoas no escritório; Minha esposa, que administra a parte financeira da empresa, eu e mais dois funcionários. Foi uma loucura. Aí vinham algumas pessoas me ajudar no sábado. Funcionários vinham fazer hora extra no sábado por fora.
Foi , inclusive, neste momento que você anunciou o lançamento do blu-ray já esgotado de “Um Lobisomem Americano em Londres”, que vendeu bastante rápido.
Isso. Inclusive, quando anunciei o blu-ray do “Lobisomem” foi uma loucura. Nesse meio tempo, acabou o contrato de duas pessoas que trabalham para mim. Elas voltaram, mas ficaram três ainda afastadas. Faltavam alguns dias, e o blu-ray vendendo bem. Eu tenho dois tradutores internos. Um estava na empresa e o outro estava afastado. Eu pensei: “Não vão dar conta de traduzir os filmes, traduzir os extras do blu-ray de ‘Lobisomem’, traduzir de ouvido”. A Universal havia liberado os direitos e era um filme que queríamos lançar há muito tempo, independente se a festa do catálogo ia chegar ou não. Era um filme que a gente queria mesmo lançar em blu-ray e estávamos trabalhando nisso há uns quatro ou cinco meses antes do lançamento. Mas a pandemia veio e ficamos com medo. Começou, então, a FAMDvD, com exclusivos em blu-ray, a Versátil anunciou vários, também. Resolvemos experimentar e colocamos o “Um Lobisomem Americano em Londres” exclusivo no site. Só no primeiro mês, foram 700 clientes novos cadastrados. Aí eu pensei: “Quer aproveitar mesmo a crise, vamos contratar alguém para investir nas redes sociais”. Terceirizei uma agência para cuidar das redes sociais do Obras Primas e do Colecione Clássicos. Instagram, Facebook, Youtube. Fui crescendo. Lançamos o “King Kong” em blu-ray logo em seguida e, para você ter uma ideia, hoje, (N.E. Entrevista realizada em 30/10/2020), eu já vendi, pelo eBay, 21 unidades do blu-ray para os Estados Unidos. Lá, não tem um blu-ray do “King Kong” com essa mesma qualidade que lançamos. Todo dia está vendendo três exemplares do “King Kong” para outros países. Vendeu um hoje para a Suécia, vendeu esses para os Estados Unidos. Foram 21 unidades vendidas do “King Kong” para o exterior em 10 dias. O blu-ray de “Um Lobisomem Americano em Londres”, com 2500 unidades, esgotou. Eu fiz duas tiragens. A do “King Kong”, que era de 1000 unidades, eu pedi mais 500. Coisa que achei legal foi que os Brothers (N.E. Pedro e Bruno Nazareth, que possuem um canal de análise técnica dos filmes em blu-ray) fizeram a resenha dos meus dois produtos lançados. Tanto do blu ray de “Um Lobisomem Americano em Londres”, quanto o “King Kong”. E isso ajudou muito para confirmar a qualidade do produto.
É verdade. A qualidade de áudio, de imagem, os extras traduzidos, é bem perceptível esse apuro no lançamento de “Um Lobisomem Americano em Londres”.
Nós tivemos um cuidado muito grande com esse lançamento. Hoje, para muitas empresas, o que sobrou? O uso da legenda de internet com correção da gramática. Mas eu prefiro fazer o negócio todo do começo. Rico eu sei que não vou ficar mais. Não existe essa ideia de ficar rico nesse mercado de empresa independente de mídia física. Mas quero levar uma coisa que eu gosto, um produto bem feito, para o colecionador. Então, eu tenho dois tradutores internos e tenho oito freelancers. Quando precisamos de uma obra rapidamente, a gente faz contato com essa galera e eles traduzem. São pessoas fluentes, traduzem de ouvido. O blu-ray tem legendas em inglês e em português. Faixa de áudio traduzida. E eu faço com duas correções. Uma pessoa fluente em inglês corrige mesmo que venha no disco junto, ou venha a legenda com timecode para você colocar dentro do filme. E eu tenho um professor de português para corrigir com a nova gramática. E também tem o Thiago (Alves, tradutor e curador do Obras Primas) que olha lá 10 vezes o material final para entender o filme, pare colocar o tom da legenda, adaptação de expressões, para não deixar a legenda muito amarrada ao pé da letra. O blu ray de “Um Lobisomem Americano em Londres”, por exemplo, o Thiago revisou 10 vezes. E o texto tinha passado por um professor de gramática e por um fluente em inglês. E mesmo assim o Thiago dedicou atenção para revisar, entender o contexto do filme, dos diálogos, e deixar a legenda do jeito que o filme quer.
Atualmente, temos somente a RiMO e a Solutions 2 Go fabricando mídia física no Brasil, sendo que a segunda não possui contatos com distribuidoras menores. Esse risco de um monopólio por conta da RiMO é algo preocupante? Qual sua impressão acerca disso?
Monopólio nunca é bom em nada. Além de correr o risco de que amanhã o cara pode fechar, falar que cansou, ele ainda pode colocar o preço do produto lá em cima, limitar a data de entrega, quantidade a serem feitas, várias possibilidades. Nunca é bom o monopólio. Eu, inclusive, soltei um comunicado ontem (N.E. Dia 29/10/2020) falando sobre alguns atrasos na entrega. A Novodisc, que era outra empresa grande na fabricação de DVDs, fechou no mês passado, aqui em São Paulo. E agora a gente depende praticamente só da RiMO para fabricar o DVD 9, de dupla camada, que é o que eu uso. Uma fábrica decente, grande. E que fabrica blu-ray, também. Aí é que corre um pouco o perigo. Estou até adiantando para o ano que vem, o que pode acontecer. Até cheguei a falar com o gerente comercial da Novodisc sobre buscar um investidor para comprar as máquinas deles no sentido de fabricar blurays e DVDS. Buscar pessoas que acreditam no mercado ainda para não deixar as máquinas enferrujarem, estragarem. Mas a dificuldade não é só essa. A empresa que presta assistência para a maioria das empresas que tem máquinas aqui no Brasil, está trabalhando com pouca gente. E para dar manutenção, só vem os técnicos da Alemanha aqui no Brasil. Os grandes conhecedores são esses técnicos de lá. E na Alemanha também está acabando. Se quebra uma peça aqui de um software ou algo, para achar uma peça na Alemanha já estão tendo dificuldade, também. Então, eu fui atrás do cara que representava para mim a Novodisc para fazer DVD 9, que tem uma porrada de reposição. Eu ia fazer o blu ray na RiMO e, para o DVD 9, eu busquei a Novodisc, que é uma boa empresa. Mas, como eu disse, os caras chegaram em outubro e abaixaram as portas. Vendeu toda a empresa, o terreno inteiro, para virar prédios. O dono da RiMO é o Lírio Parisotto, um cara que investe em petróleo, ouro, um dos mais ricos do Brasil. A gente espera que ele mantenha a RiMO, afinal, como empresário, esse ano ele teve lucro. E espero que ano que vem esse lucro continue, porque ele não é de jogar dinheiro fora. Ele é um grande empresário. Ele ama a RiMO. Mesmo. Digo isso porque ele montou as “escravas” (N.E. O termo “escravas” refere-se às máquinas de duplicação de fitas VHS, que, nos anos 1980 e 1990, ofereciam a possibilidade de duplicar mais de 200 fitas simultaneamente), de VHS em Porto Alegre. Começou com 30 máquinas. A vida dele é essa, a história. E hoje ele é um dos caras mais ricos do Brasil. Espero que ele não pense como um grande empresário no sentido de deixar a RiMO morrer.
A RiMO possui uma demanda alta de produtos, sendo pedidos oriundos das distribuidoras independentes. Como tem sido lidar com esses atrasos, por conta da alta demanda da fábrica?
Eu tive alguns atrasos como o pack do blu-ray do “Halloween” e o DVD de “Fantasma”. A RiMO me passou as datas de entrega, mas entrou um grande pedido lá de CDs para o governo federal. E só a RiMO fazendo. Imagina, você pega um pedido de quatro, cinco milhões de CDs para fazer, e, além disso, pega pedidos de filmes de todas as distribuidoras e lojas, então acumulou muita coisa. E isso foi atrasando, empurrando para a frente os lançamentos. E atrasou também porque falta matéria prima lá. Até o avião que traz os produtos de Manaus para cá, todo dia tinha uma viagem. E hoje eles só estão fazendo uma viagem por semana. Eles têm que acumular para encher o avião cargueiro para trazer para São Paulo. Vem pedidos da RiMO, vem pedidos da SUP (Sony, Universal, Paramount), que acabou, mas tem os produtos que foram liberados ainda. E fora outras coisas que o avião traz. Além disso, tem a opção da carreta, que leva 17 dias para chegar aqui em São Paulo.
A pré-venda de produtos se tornou uma forma mais garantida de movimentar o mercado, com os clientes confiando nas empresas e investindo nos lançamentos futuros. Qual sua análise nesse norte que o mercado tomou?
A pré-venda ajuda bastante, mas eu prefiro trabalhar com pré vendas curtas. Eu gosto de fazer como fiz com o pack do “Massacre da Serra Elétrica”, que tem uma pré-venda que não é muito longa. Por exemplo, a ideia era entregar o “Halloween” no próprio dia das bruxas. Eu fiz a máscara de brinde. Todo mundo esperava que fosse entregar agora. E eu também. Só que a RiMO não tem a máquina para fazer o stamper aqui no Brasil. Ela faz na Alemanha o stamper do blu-ray. A única empresa que tem aqui é a Sony, que fabrica o próprio stamper e fazia para a SUP (Sony, Universal e Paramount). Até orcei o valor para fazer na Sony, Solution2Go, e eles disseram que fariam a entrega em 15 dias. Só que o DVD 9, camada dupla, eles não fazem mais. Parou de fazer DVD 9, também. Só fazem blu-ray por causa do vídeo game. Então, você fica amarrado. Na RiMO, você fabrica o DVD 9, fabrica o blu-ray. E o “Halloween” é um digipack. Eu tinha esse sonho de fazer um digipack nos moldes dos lançamentos no exterior. E o “Halloween” foi o primeiro nesse modelo. Mas a luva, pôster, cards eu faço na gráfica aqui em São Paulo. Lá eu tenho o material gráfico que prefiro. E a pesquisa que fiz com os colecionadores confirma. O material é mais reforçado, a gramatura é melhor, a impressão é melhor. Então, foi atrasando por isso. Mas não concordo em fazer pré venda longa, como estava sendo feito no mercado. Eu acho que estava muito banalizado, jogando muito para a frente em muitos meses. Eu acho legal uma pré venda de blu-ray igual a que eu fiz do “Lobisomem Americano em Londres” e a do “King Kong”, que você coloca em junho com entrega em agosto, que são os 45 dias do tempo da fábrica. Isso eu acho legal. Mas a do “Halloween” que aconteceu agora de atrasar por conta da fábrica, eu, como colecionador, não curti. Temos que colocar uma pré venda e fechar a data, mas infelizmente houve os atrasos. E agora nós só temos essa fábrica para fazer os produtos. Eu tenho medo que vire um monopólio para o ano que vem e os caras coloquem os preços e entrega do jeito que quiserem. Espero que não aconteça. O “King Kong”, por exemplo, eu pedi para fazer mais 500 unidades. Mas com esse filme, o stamper já está na fábrica aqui no Brasil. Por isso eles conseguem fazer em 20 dias e a entrega fica mais rápida. A dificuldade seria se fosse necessário mandar o pedido para fora. O contato com o fabricante em outro país, a devolução para cá. A Alemanha começou com a nova fase do vírus (N.E. entrevista concedida em 30/10/2020). E isso gerou atraso. No contato em Paris, em comprei os direitos da Studio Canal e o primeiro filme que eu quero trazer é “O Pianista” (N.E. Lançamento confirmado na live do Blog do Jotacê em 06/11/2020). Eles me enviaram o material gráfico hoje. Só que eu preciso do HD do filme, dos extras, porque eu tenho até o dia 10 de novembro para mandar para a RiMO o master pronto para eles fabricarem e assim eu entrego em dezembro. 45 dias. Seria para o dia 15 de dezembro, pois eu acho que é um lançamento que tem que ser feito antes do Natal. É um filme que eu sonho como colecionador. Eu o acho maravilhoso. Acho que vai bater recordes de vendas. A Studio Canal recebeu o contrato em 01/10/2020, quase há um mês, e vai liberando aos poucos o material. Recebemos o material gráfico hoje. As fotos de “O Pianista”. Algo lindo. Só que o HD do master não chegou para mim ainda (N.E. entrevista realizada em 30/10/2020).
Há alguma movimentação entre as distribuidoras e lojas quanto a abrir um diálogo com a RiMO quanto a isso?
Não. Ainda não começou essa conversa. Acho que está todo mundo na correria de virar os seus produtos, de fazer a sua parte, e ninguém ainda está atento a isso. Ontem foi que eu soltei o comunicado e o pessoal começou a abrir mais os olhos. Falei com o Fabio (Martins, proprietário da FAMDvD), falei com o sr. Alexandre (Arrais, proprietário da Classicline). Ficamos preocupados nesse sentido, mas acreditamos que a SUP possa voltar pelo laboratório que fechou da Sony. Que a Universal e Paramount possam se juntar e continuem tendo os exclusivos por lá, também. Isso vai ajudar a fortalecer. Através do Sr. Alexandre, da Classicline, nós temos fácil acesso ao gerente da RiMO. O pai dele, sr. Maurílio, que fundou a Classicline, conhece o Lírio Parisotto há muitos anos. Acho que através deles, do sr. Oceano Vieira, que fundou a Versátil, seria uma grande chance de a gente tentar marcar um diálogo para o ano que vem. Conversar com a RiMO sobre tudo o que está se passando nesse momento. Eles, com certeza, estão sabendo que a Novodisc fechou.
Na entrevista com Fabio Martins, da FAMDvD, ele trouxe uma observação bastante acertada quanto a saída da Disney do mercado de mídia física na América Latina em 2020, pontuando que se trata de uma empresa tão gigantesca, que ela olha lá de cima e não enxerga a América Latina e o mercado de mídia física. Observando o grande número de tiragens, não posso deixar de concordar.
É verdade. E não só a Disney, mas os grandes estúdios, quando lançavam DVDs aqui no Brasil, elas faziam 200 mil, 150 mil cópias. Uma linha de produção imensa. Ganhavam muito dinheiro. É aquilo que eu falei: eles não prezam a Arte, a Cultura. É o lado financeiro, apenas. Eles querem ganhar muito dinheiro do jeito mais prático. Se eles vêm com um ótimo lançamento, investem, e vendem 3, 4 mil discos? Para eles, isso não compensa. Ter escritório no Brasil, funcionários no Brasil, essa quantidade de vendas, para os caras, não é nada. E para nós independentes, vender hoje 1000 blu-rays, a gente consegue pagar a parte da entrada dos direitos, porque a maioria dos estúdios cobra royalties. Pagamos as nossas contas e a consegue sobrar algum dinheiro para a gente investir em outros produtos, lançarmos e continuar lançando no futuro. Mas caras não pensam assim. Eles pensam em ganhar muito dinheiro como ganhavam no passado. Houve filmes com 500 mil mídias. Imagina uma empresa faturar isso?! Era outro mundo. Agora, os caras vêm para o Brasil, lança “O Rei Leão” e vende quatro mil cópias entre DVD e blu-ray? Para eles, não compensa mais. Compensa ter uma diretoria no Brasil? Compensa ter uma sala na Berrini? Não compensa pra eles. É um alto investimento. Então, para eles, tanto faz. Eles não ganhavam muito dinheiro mesmo com tiragens altas. Eu comprava Disney para o meu site, também. O representante passava a venda para nós, explicava que o filme seria lançado em dois meses e que a tiragem ia ser de 2000 unidades em DVD e 3000 blu-rays. Aí davam a capa para fazermos uma pré venda curta. Tinha aquele tempo de um mês para você comprar, anunciar e já subiam o título para o streaming, para o canal fechado. O tempo da janela entre lançamentos estava muito rápida. E em relação a Universal e a Paramount, ambas estudam diminuir esse tempo para os lançamentos no cinema aqui no Brasil, inclusive. Antigamente aqui no Brasil, para lançamentos no cinema, você contratava os direitos na Ancine para exibição por 70, 90 dias. Dependendo do tamanho do filme. Hoje, a Universal está pensando em deixar a janela para o cinema no Brasil em 20 dias. E isso para um filme com procura. Então, é muito pouco tempo. 20 dias de cinema. Depois mais 15 a 20 de mídia, depois vai para o canal, vai para streaming. Está se fechando demais. Eles não acreditam mais no Brasil, mesmo. É isso mesmo. Eles não estão nem aí para o Brasil, para nós, para a nossa Cultura, para as salas de cinema, para a mídia física. É algo que não compensa para eles. Para nós, independentes pequenas, quando eu falo em vender duas mil unidades em blu-ray de um produto, tipo “O Pianista”, eu tenho vontade de sair correndo pelado na paulista (risos). É um negócio fabuloso. Mas para os caras não é nada. Para mim, é um sucesso maravilhoso.
Originalmente, essa pauta surgiu a partir da petição lançada pela volta da fabricação de aparelhos de blu-rays no Brasil. Eu busquei contato com diversos fabricante, e todos se recusaram a dar declarações. Você acredita que pode ser possível esse retorno da fabricação de players?
A petição pela fabricação de aparelhos de blu-ray chegou a pouco mais de três mil assinaturas. Qual empresa vai investir em uma linha de produção em Manaus para fabricar dez mil aparelhos? Não dá conta. Esse é o país dos impostos. Não temos incentivo nenhum para Cultura. O governo não dá incentivo algum para a gente evoluir na Cultura. E eu me refiro não só a filmes cult, clássicos, mas a nossa Cultura em geral. Desde o berço. Educação, Cultura, Moradia. Tudo envolve isso. Eu queria, de coração, que fosse diferente. Mas eu acredito que não. Vai ter uma live da TecToy (N.E. A TecToy, que era uma das fabricantes de aparelhos de blu-ray no Brasil, promoveu em 07 de novembro um live com artistas populares e a comunidade de grupos de colecionadores fez diversos pedidos nos comentários acerca de uma volta da fabricação). Quem sabe os caras não vêem os comentários e podem começar a pensar em produzir novos aparelhos. Imagina um aparelho em 4K, com uma TV 4K, filmes em 4K. Mas, tirando a TecToy, acho que marcas como Samsung, Sony, LG, essas empresas não têm o mínimo de interessem em produzir esse produto no Brasil. Eu espero que eu esteja enganado. Mas acho que não vai acontecer isso. Eu escuto o jornal todas as manhãs e a chamada é “o país dos impostos”. Então, as empresas pagam muito para produzir no Brasil. Tudo tem repasse. Se passar por quatro mãos, todo mundo paga imposto para o governo. É como a fábrica do DVD que eu falei antes. Se eu tivesse dinheiro para investir, eu ia comprar uma máquina para me manter vivo no mercado. Pelo menos do DVD. Eu até procurei parceiros, mas é difícil investir meio milhão em uma empresa dessa para fechar duas máquinas funcionando, uma de blu-ray outra de CD, para acabar daqui a dois anos? Ideia de maluco. Eles iam dizer que preferem deixar o dinheiro aplicado, investir em outra coisa, outro mercado.
Temos hoje um perfil diferente de se manter o mercado de colecionismo de filmes. Fabio Martins disse em sua entrevista comigo que o mercado conta com um número máximo de 900 pessoas que compram regularmente. E as redes sociais, grupos de WhatsApp, são uma forma de reforçar sua marca. Como você encara esse novo modelo?
As mídias sociais andam muito poluídas. Coisas muito negativas. Mas, para nós que estamos nesse mercado da mídia física, temos que ter contato. E isso que o Fabio falou, eu acredito também. Pessoas que compram mês a mês, você coloca aí no máximo 800, 900 colecionadores por mês. E a gente tem que participar dos grupos, sim. No Obras Primas, a gente comia quieto, pelas beiradas, com um produto muito bom. Mas, antes, não participávamos de grupos. Com o lançamento de “Um Lobisomem Americano em Londres”, começamos a participar mais. O importante é chegar a notícia ao colecionador. Mantê-lo bem informado, bem esclarecido, buscando resolver qualquer problema com transparência.
Em 2018, você enfrentou um baque grande que foi a recuperação judicial das livrarias Cultura e Saraiva, o que gerou um calote imenso para o selo Obras Primas, que fornecia produtos para ambas. Como foi passar por aquele período e colocar a empresa em pé novamente?
Eu lembro que quando a gente começou em janeiro de 2018, eu cheguei para o Thiago e falei que aquele ia ser um ano nosso. Sugeri lançarmos formatos em digipack, digibook. Ir para cima, mesmo. Trazendo grandes obras. Foi assim com as melhores obras do ano. O pack do “Cosmos”, a Livraria Cultura pedia exclusividade para comprar cinco mil cópias, sabe? E eu nunca achei legal exclusividade para parceiro nenhum. Eu queria vender para todo mundo. Nem pensava no meu site. Agora, depois de muito tempo, é que eu fui investir no site. Porque ele estava vendendo muito pouco no começo desse ano. Sempre vendeu muito pouco. Eu até comentei que nós tivemos que trazer os funcionários de volta por conta da alta demanda de vendas com o blu ray de “Um Lobisomem Americano em Londres”. Mas, voltando, 2018 foi isso. A Livraria Cultura pediu o pack do “Cosmos” com exclusividade antes mesmo de sair a arte. Eu havia anunciado os projetos para lançar para o mercado e a Cultura veio e comprou 4000 unidades de uma só vez. E foi o ano em que eles não me pagaram. Imagina 4000 unidades a 150 reais? Coloca isso no custo de direitos, de royalties, de impostos que são obrigatórios. A revolta maior é essa. Então, se você pede meio milhão para a Cultura, você paga 12% de imposto ao governo. O governo quer receber, não está nem aí. Ainda tem o imposto da Saraiva. Eu pensei: “final de ano, 13º, férias dos funcionários. Eu sempre fui funcionário na vida. No dia em que eu atrasar o salário de um funcionário, eu fecho a empresa”. Esse é o meu lema. Então, quando aconteceu isso com a Cultura e a Saraiva não me pagar, eu fui e desapareci. Desapareci, mesmo. Fiquei trancado no quarto 10 dias. Eu já tenho algo hereditário que é uma depressão severa. Tenho caso na minha família de suicídio com meu irmão, que se matou há 10 anos e que eu tentei salvar, mas não consegui. Então, quando eu quebrei, eu fiquei naquela: “O que eu vou fazer?” Mas aí eu pensei em meu filho, minha esposa, meu sogro, minha sogra (meus pais já são falecidos), meus irmãos, a quem eu ajudo. Eu tinha uma de duas decisões: pedir falência, não pagar funcionários, pessoas que pagam aluguel, contas. Isso eu não podia fazer. Não podia fazer isso com essas pessoas. E a outra opção era ir para cima. Eu tinha um crédito no banco. Fui lá pedir 200 e poucos mil reais emprestados ao banco. Pedi a um amigo pessoal mais 140 mil. Vendi um carro. Deu 400 mil reais. Isso porque os 500, 600 mil reais que viriam das livrarias não eram meus. Eram dos meus fornecedores; da gráfica; era da Novodisc; da RiMO; era da contabilidade; de advogado; era dos funcionários. Era de todo mundo. O que ia sobrar era para reinvestir em novos produtos e continuar empreendendo. Foi uma paulada absurda na cabeça. Joguei tudo para cima. A minha esposa e meu filho muito perto com muitas orações. Eu fiquei 10 dias só com medicação fortíssima para não fazer besteira. Mas levantei a cabeça e pensei: “Vamos pra cima, pois eu tenho um nome. Vamos! Vamos!” Graças a Deus, não pedi prorrogação de boleto pra ninguém, paguei todo mundo em dia. Fornecedores, a Novodisc, a RiMO, a gráfica (o Roberto, que trabalha na gráfica, está comigo há 14 anos. Um irmão para mim). Não devo nada para ninguém. Consegui pagar a última parcela do banco esse mês. Foram 36 parcelas de R$32 mil. Não e fácil. Muito dinheiro. Juros absurdos que pagamos. Mas mantive a empresa viva e as pessoas saudáveis. Gráfica, as fábricas, os meus funcionários, contabilidade, governo. Tudo em dia. Eu posso ficar fodido, mas as pessoas ao meu redor, não. Jamais!
Após tantos percalços tanto nos últimos anos quanto nesse desafiador 2020, você pode dizer que conseguiu recuperar o selo Obras Primas?
Sim. Hoje, eu posso dizer que, graças a Deus, consegui recuperar o Obras Primas. E fora que eu levei outro calote esse ano da Livraria Cultura. Eu entrei como sócio incentivador e meu advogado orientou a ir liberando aos poucos as mercadorias. Nesse “aos poucos”, deu 129 mil reais e os caras não pagaram. Sacanearam de novo. A (divida da) Livraria Cultura (comigo) ultrapassa R$700 mil. Eles entraram em março para não pagar ninguém. Venderam a Estante Virtual por R$30 milhões para a Magalu, e quando chegou em maio, eles mandaram um e-mail para mim falando que não teriam condição de pagar o acordo de 2019, pois tinham algumas coisinhas pendentes, e algumas coisas que eu estava liberando agora esse ano. E essas “coisinhas” deu R$129 mil que não pagaram. Então, foi mais R$129 mil para recuperação judicial. Eles conseguiram derrubar a R.J. de 2018 e os R$600 mil que me deviam lá. Eles conseguiram entrar na justiça, que deu apoio a eles. Um deságio de 80%. Sobraria R$140 mil para mim. Mais dois anos de carência agora para começar a pagar a primeira e o restante em 48 vezes. Um negócio assim de Brasil. Agora, foi pedido falência da Cultura. Eles entraram na justiça e ganharam 120 dias para não fechar as portas. Eles estão vendendo produtos meus até hoje lá. Vendem como querem, quando querem e pelo preço que querem. Produtos de R$49,90 fizeram queima a R$9,90. Porque sabem que não vão pagar mesmo.
Creio que é como você falou antes. A ideia não é enriquecer nesse mercado, mas, sim, retroalimentá-lo. Mantê-lo vivo pelo máximo de tempo possível e sobreviver dele. Já é algo tão desacreditado em tempos de streaming, que acho mais válido pensar assim.
Sim. Verdade. Por exemplo, as pessoas que não são do nosso mercado, eles nem sabem mais que existe mídia. Quando você fala que vende mídia original, eles se surpreendem: “ainda vende mídia original de DVD?” Os meus representantes antigos, quando a gente se encontra em redes sociais, eles perguntam o que eu estou fazendo da vida. Falo que estou com um site, com uma distribuidora de filmes. Ele falam: “O que? Filme? DVD original? Não tem mais ninguém vendo isso!”. Os caras acham que acabou tudo. Tem gente que acha que o mercado acabou. Quem trabalhou comigo há 20 anos, acha que não existe mais esse mercado. Meu filho tem 21 anos hoje. Trabalhou comigo quatro anos na empresa, onde aprendeu a fazer autoração e tudo. Ele está em outra área. Quando saiu, ele me perguntou se íamos ficar no mesmo mercado sem saber quanto tempo vai durar. Ele perguntou isso pensando na família. Ele tem 21 anos e foi estudar TI. Ele só vê Amazon Prime, Netflix, não se liga em mídia física. Ele mesmo me fala que prefere colecionar camisas do time que gosta.
Pensar no mercado nos próximos anos como um desafio é algo que estimula?
Todo ano é uma luta. Eu e o Thiago, um dos curadores e que está comigo há oito anos, o Rodrigo (Venino) também, estamos há muito tempo pensando a cada virada de ano: “bom, passamos mais um ano”. A gente vibrava. “Passou mais um?” Vibrava de novo. Então, 2020 foi um crescimento natural que eu jamais esperava ter. Tanto até que, como falei, no começo da pandemia eu afastei funcionários. Depois, foi voltando todo mundo e a gente continua firme e forte. E vamos continuar. Meu trabalho é pensando no mercado de mídia física permanecer. Ela viver. Essa é a minha ideia e sempre foi.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
Panorama do Mercado Cinéfilo de Mídia Física em 2020 no Brasil
01) Fábio Martins – Loja FAMDv
02) Fernando Luiz Alves – Loja The Originals
03) Classicline, 1Films e Vídeo Pérola
04) Valmir Fernandes (Obras Primas do Cinema)
05) Igor Oliveira (CPC UMES Filmes)
06) Daniel Herculano (Clube Box)
07) Gleisson Dias (Rosebud Club)
08) André Melo e Fernando Brito (Versátil)
09) Juliano Vasconcellos e Celso Menezes (Blog do Jotacê)