Precisamos falar sobre Father John Misty

Texto por Carlos Messias

De tempos em tempos surge um artista original que, além de voz própria, consegue ser representativo de sua época, tanto por incorporar padrões estéticos quanto por dialogar com as questões em voga. E se a geração Y ainda não tem um porta-voz contemporâneo, o cantor e compositor Josh Tillman, 36 anos, é forte candidato. Nascido em Washington D.C., ele iniciou a carreira em Seattle no começo dos anos 2000, gravou oito discos solo de maneira independente, foi baterista da banda de indie folk Fleet Foxes e em 2012, já baseado em Los Angeles, adotou a persona que lhe colocaria em evidência: Father John Misty.

“Eu estava compondo um álbum que representava uma guinada como compositor e como ser humano”, explica Tilman, em entrevista por telefone concedida em março, na mesma semana de sua apresentação no “Saturday Night Live”. “Percebi que o nome realmente não importava. Eu estava morando em uma espécie de república de trintões solteiros e um dos meus colegas de quarto perguntou: ‘Como você vai chamar isso?’. E eu respondi: ‘Father John Misty’. Ele olhou pra mim e disse: ‘Não’. E eu falei: ‘Sim’. Realmente, é essa a história”, simplifica o músico, que recentemente lançou “Pure Comedy”, seu terceiro álbum como Father John Misty, uma espécie de ópera-rock sobre a decadência do mundo moderno na qual ironiza questões como rede sociais, o conservadorismo americano e o culto à celebridade.

Depois de “Fear Fun” (2012) e do excelente “I Love You, Honeybear” (2015), Father John Misty ressurge com seu magnum opus, “Pure Comedy”, um clássico instantâneo que resgata a tradição de álbuns conceituais nos moldes do Pink Floyd. Tamanho fuzuê em cima do trabalho (lançado pela Sub Pop em vinil duplo com pintura que remete à superfície da Lua e encarte com capa em cinco cores), que foi anunciado ainda em janeiro com um curta-metragem homônimo sobre a concepção do álbum e a publicação de um ensaio literário no qual Tillman descreve os humanos como uma espécie com meio cérebro, que deliberadamente atribui sentido às coisas enquanto tenta sobreviver. Apesar do teor lírico e da narrativa densa de algumas de suas canções, o músico diz não ter pretensões literárias. “Música não é literatura, você não consegue divorciar uma canção da melodia. Composição não é apenas poesia com sequenciadores, é uma arte em si”, defende. “O problema é que música foi tão mercantilizada que todos presumem serem experts, enquanto a maioria simplesmente não entende. Devem existir tantas pessoas que entendem de música no planeta como que entendem de escultura”.

Segundo o músico, o título do álbum dá conta de definir seu conteúdo. “O tema central é: ‘Pura Comédia’. Acho que o tema é que os seres humanos amam coisas que não são passíveis de serem amadas. Há algo irônico nisso. É onde você ama a humanidade. Fazemos coisas o tempo todo que não fazem o menor sentido. Às vezes é muito bonito e às vezes é muito nojento. Ao mesmo tempo, achamos que estamos fazendo coisas que fazem sentido, que têm justificativa intelectual”, elocubra.

Na faixa homônima, que abre o disco, Misty descreve o surgimento de nossa espécie como uma tragicomédia protagonizada por criaturas que, por terem as cabeças grandes demais para passar pelo ventre, teriam nascido semi-formadas, na esperança de que quem nos recebesse do outro lado fossem suficientemente bondoso para nos explicar exatamente que diabos estaríamos a fazer neste planeta, o cenário desta tragicomédia intitulada vida. Tal milagre, no entanto, deixaria questões em aberto, como a deficiência periódica de ferro, de modo que, enquanto um sai para caçar, o outro tira leite. Ou vice-versa. Essencialmente os mesmos instintos que hoje se manifestam sob o avatar de conflitos geopolíticos nos quais meu deus é melhor que o seu e ai de quem refutar o texto de um livro sagrado, “escrito por epiléticos odiadores de mulheres”. Não é menos desesperador no mundo ocidental, onde um apresentador de reality show lidera a maior nação do planeta. “O que torna esses palhaços adorados por eles [no caso, nós, terráqueos] tão especiais?”, ele canta. Esses mamíferos estariam obcecados em customizar novos deuses como desculpa para continuarem sendo animais sem Deus. A única coisa que faria com que se sentissem vivos seria a luta pela sobrevivência, mas tudo que estariam em busca seria algo para anestesiar a dor. Até que não sobrasse sequer um humano. Apenas matéria aleatória suspensa no escuro. “Detesto dizer, mas um ao outro é tudo que nos resta”, diz no último verso.

Na conversa por telefone, Father não se diz um existencialista ou sequer um niilista. “Sou um saxofonista”, ironiza. “Na verdade eu não sei o que sou. A gente apenas vive. Você não anda por aí e diz: ‘Como um existencialista, eu vou fazer isso ou aquilo’. Eu tenho falado sobre Jesus constantemente nessas entrevistas, mas isso não quer dizer que eu seja cristão. Eu poderia dar alguma resposta chata, como que não acredito em um barbudo no céu, mas sou uma pessoa espiritualizada, mas tudo Isso tudo não passa de vaidade. Quando tomamos as decisões que nos definem, ninguém está perguntando quem somos. As decisões mais verdadeiras são tomadas no escuro.”

No clipe de “Total Entertainment Forever“, já o quarto single do trabalho, George Washington joga um videogame no qual Kurt Cobain (interpretado por Macaulay Culkin) é crucificado ao lado de Bill Clinton, que leva um charuto no pé. Quando perguntado se ele se considera um cronista do seu tempo, o cantor e compositor dá uma resposta abstrusa. “Eu não sei sobre o que mais escrever. Sempre estive mais interessado nas ideias que eu passo nas letras do que na ordem das palavras. Do nada eu incluo palavras como ‘bolas’ em canções [risos].” Um exemplo concreto do que ele está dizendo é “A Bigger Paper Bag”, uma balada melódica e sensível, cujo refrão, sem comedimento de vocabulário ou pretensão, diz:

“Eu estava mijando na chama,
Como uma criança com grana ou um rei louco de cocaína;
Eu tenho o mundo pelos bagos,
Devo me comportar?”

A falta de modéstia contribui com a legião de haters dedicada ao músico. O fato de ele ter raspado seu característico barbão e agora ostentar apenas um bigode inflamou ainda mais as acusações de hipsterismo. “Isso acontece apenas porque eu sou tão bonito”, brinca. “As pessoas veem um cara de bigode e falam: ‘Que hipster’. O que é um hipster? A propósito, eu sou um homem de 35 anos [seu aniversário foi em maio] e não um moleque andando por aí com uma camiseta em gola V, tomando cerveja e discutindo sobre música com outros idiotas na internet. Um hipster é alguém que julga os outros baseado em critérios tolos, como ‘você não deveria usar isso, você não deveria dizer aquilo etc.’. E toda vez que alguém me acusa de ser hipster, essa pessoa está sendo hipster, pois é isso que hipsters fazem”, desabafa.

O álbum foi lançado uma semana antes da apresentação de Misty no Coachella, festival onde foi um dos headliners. O músico ressurgiu com seu nome turbinado, depois de ter dividido autoria na faixa “Hold Up”, de Beyoncé, além de “Sinner’s Prayer” e “Come to Mama”, de Lady Gaga. Que não devem ter sido lá grandes esforços. A essa altura da carreira, Tillman decodificou a canção enquanto forma. Na série “Generic Pop Songs”, que desde 2015 costuma disponibilizar no YouTube e retirar na sequência, ele mostra como consegue tirar uma onda apenas jogando palavras e frases clichê sobre melodias aleatórias:

“Generic Pop Song #3” poderia passar por uma faixa do Justin Bieber…

… enquanto “Generic Pop Song #9” caberia perfeitamente num disco do Calvin Harris…

… aliás, Rihanna, se liga…

… nem Lou Reed na fase Velvet Underground ele perdoa.

Outra passagem do músico pela crista do mainstream foi sua atuação no clipe de “Freak”, de Lana Del Rey. “Uma coisa que eu gosto de ser um músico profissional é que tenho a oportunidade de desenhar merchandising, desenhar capas de álbuns e colocar as mãos em muitas coisas diferentes, o que eu acho divertido. Vocês faz clipes e pode até atuar neles”, comenta.

No vídeo de Lana Del Rey, Tillman simula tomar um ácido. O gesto é corajoso, uma vez que ele já declarou publicamente fazer uso de microdoses de LSD para tratar de ansiedade e depressão. Pergunto se ele acredita em drogas lisérgicas como dispositivo de expansão da consciência. “Claro”, responde. “Elas ajudam no seu processo criativo?”, insisto. “Sim”, reconhece.

O método pode ter contribuído com um disco épico que remete ora a Beach Boys ora a Elton John, sem perder aquela levada folk característica de Misty. Que agora faz uso de arranjos mais orquestrados. “Por muito tempo, estive interessado em música como um cara com uma ideia e um violão, o que sempre me pareceu muito poderoso. Mas, com um tempo, comecei a me interessar cada vez mais por arranjos mais complexos”, diz. As 13 faixas incluem canções monumentais como “Leaving LA”, com 13 minutos, que lembra as longas narrativas de Bob Dylan, ou “So I’m Growing Old on Magic Mountain”, com 10 minutos, que de tão delicada parece uma pintura.

O álbum fecha com “In Twenty Years or So” e a previsão de que em coisa de 20 anos o experimento humano chegará ao seu violento fim. Na letra, ele homenageia o Talking Heads e brinca com a oralidade no verso: “The piano player is playing ‘This Must be Place’”. Por fim, abre-se um cenário mais otimista, no qual Misty reconhece o milagre da vida e  admite: “Não há nada a temer”.

Para conhecer mais de Father John Misty:

“Real Love Baby” (single de 2016)

Do álbum “I Love You, Honeybear” (2015)

Do álbum “Fear Fun” (2012)

No Fleet Foxes (2011)

Como J. Tillman (2003-2010)

– Carlos Messias (siga @carmessias) é jornalista e assina o blog Sem Manual de Instruções. Foto: ZoeMcConnell / NME

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