por Marcelo Costa
“A Farra do Circo”, de Roberto Berliner e Pedro Bronz (2013)
Erguido pela primeira vez em janeiro de 1982 na praia do Arpoador, em Ipanema, o Circo Voador nasceu para suprir a carência de espaços culturais de um grupo de artistas, e acabou se transformando no oásis de uma geração que ainda sofria a repressão da ditadura, mas não deixava o desejo de criar arrefecer. “A Farra do Circo” mostra os quatro primeiros anos da história deste projeto sonhador, que em outubro de 1982 se mudou para o bairro da Lapa, local em que continua em atividade. Do começo, em 1978, com o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone e nomes como Perfeito Fortuna, Patrícia Travassos, Evandro Mesquita, Regina Casé e Luis Fernando Guimarães, passando pela montagem do primeiro circo, a desmontagem pela prefeitura e a remontagem na Lapa, até a caótica viagem para Guadalajara, na Copa de 1986, no México, “A Farra do Circo” consegue condensar o essencial da época: a aura absolutamente mambembe, desorganizada e precária do projeto compensada pela vontade de fazer uma programação eclética e inteligente que atraia pessoas para prestigiar grupos nascentes como Barão Vermelho, Paralamas (tocando “Veraneio Vascaína”, uma parceria de “Flávio Lemos e Renato Manfredini”) e Blitz (com Lobão na bateria) além de nomes consagrados como Caetano, Gil e Chico. Isso sem contar dança (Debora Colker), teatro (Pedro Cardoso, Deborah Bloch e Dercy Gonçalves sempre genial), poesia (Paulo Leminski) e muito mais. Filmado por Roberto Berliner em VHS na época, “A Farra do Circo” é um documento histórico.
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“Olho Nu”, de Joel Pizzini (2014)
Partindo de um vasto material de arquivo cedido pelo próprio cantor, que inclui shows, videoclipes, entrevistas, aparições em programas de TV e gravações caseiras, o diretor Joel Pizzini uniu filmagens que realizou durante três anos que acompanhou Ney em turnê e na sua terra natal, Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, resultando em um filme-ensaio que apresenta a vida de Ney Matogrosso de sua infância até o estouro do Secos & Molhados e a posterior carreira solo. A opção por uma narrativa não linear e nem cronológica diminui o impacto da trama (principalmente para neófitos), ainda que o resultado final seja ótimo. Ney fala de sua relação com o pai (“Dei sorte na vida de ter sido filho de militar, o que me tornou transgressor”), de quando saiu de casa e foi morar em Brasília (“Eu fazia laminas de biópsia no hospital”) e serviu na aeronáutica (“Foi a primeira vez que vi homens se beijando sem abdicar da masculinidade”). Fala do estouro, no meio da ditadura, com os Secos & Molhados (“A primeira vez que meu pai me viu pela TV, ele ficou muito chocado, mas acredito que, como ele, todos os pais brasileiros ficaram”), analisa o fim da banda, que durou os anos de 1973/1974 (“Brigas por causa de dinheiro, fama, sucesso”), e se diz influenciado pelo Tropicalismo (“Caetano exibia a libido de forma moderada, eu só sei ser subversivo”). “Olho Nu” cumpre a tarefa de contar a história do artista sem desmascarar a pessoa, e funciona como introdução a obra deste grande interprete.
Ps. O DVD lançado pelo Canal Brasil traz como bônus dois programas da série “O Som do Vinil”, de Charles Gavin, sobre os discos “Secos & Molhados”, de 1973, e “Águas de Pássaro”, estreia solo de Ney em 1975, que ajudam na construção do personagem.
***½
“A Linha Fria do Horizonte”, de Luciano Coelho (2013)
Com o Sul do Brasil em foco (e em bela fotografia), o diretor Luciano Coelho expande o olhar para a região do Rio da Prata para mostrar a proximidade de artistas gaúchos (Vitor Ramil, Marcelo Delacroix, Arthur de Faria) com músicos vizinhos da Argentina e Uruguai, como Jorge e Daniel Drexler, Kevin Johansen e Ana Prata, buscando flagrar não só a criação de um circuito colaborativo como a singularidade estética, musical e de costumes da região do Cone Sul. Vitor Ramil explica a Estética do Frio – conquistando a atenção de Arthur de Faria e de Jorge Drexler, que brinca: “Eu e Vitor falávamos da Ilexândia, o território da Ilex Paraguariensis, o nome científico da erva-mate” – e fala da milonga, definindo-se: “A minha milonga é a de um cara que ouviu Beatles a vida inteira”. Em certo momento, Jorge Drexler diz: “Vitor Ramil é muito mais brasileiro do que admite ser”. Vitor retribui: “Jorge é mais brasileiro do que acredita”. A questão da identidade é um dos vários temas deste belo documentário que soa essencial para um momento em que artistas do rock nacional dos anos 80 (Panamericana) e nomes da nova geração (Somos Todos Latinos) cantam canções latinas. Na página do Canal Brasil, um leitor comenta: “Sensacional mostrar que o gaúcho está muito mais ligado ao Cone Sul que ao Brasil tropical. Esta é uma das bases dos independentistas/separatistas”. Exatamente na sequencia, uma leitora o corrige: “Não é sobre separatismo! O doc fala justamente sobre quebrar fronteiras, e não criar mais”. Palmas e palmas e palmas.
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– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
Mais documentários musicais:
– Festival In-Edit 2014: Pulp, Kathleen Hanna, Hendrix, The National e mais (aqui)
– Festival In-Edit 2015: Slint, Banguela Records, Joe Strummer, Elliott Smith (aqui)
– “Cobain – Montage of Heck” remexe os diários e o baú do ídolo do Nirvana (aqui)
– Três docs: “Os Doces Bárbaros”, “Os Novos Baianos” e “Raul Seixas” (aqui)
– Três filmes musicais: “My Way”, “Searching for Sugar Man” e “Sound City” (aqui)
Inusitado e uma bela surpresa esse “A Linha fria do Horizonte”, de todo modo as indicações são todas maravilhosas…