por Renata Arruda
com colaboração de Marcos Xi
Conhecido por seu trabalho como músico e compositor em projetos como o duo Godasadog, ao lado do produtor e Adam Matschulat Aguiar, e a banda de rock alternativo Bratislava, foi nas letras que Victor Meira iniciou seu trabalho artístico. Insatisfeito com o curso de Publicidade e incentivado por um amigo que havia se mudado para o Canadá, em 2006 Victor decidiu tentar a sorte em Toronto, onde ficou quase um ano trabalhando ilegalmente no que aparecesse: limpeza de entulho de construção, landscaping para condomínios e, no final, em uma marcenaria. Enquanto isso, guardava o dinheiro recebido em espécie debaixo do colchão. “Levei uma mala com uns quarenta livros, era basicamente o que eu fazia lá. Foi nessa época que eu arrisquei meus primeiros poemas”, conta ele.
De volta ao Brasil, lançou dois zines e passou a frequentar saraus, onde teve contato com o pessoal do coletivo paulistano Poesia Maloqueirista, grupo independente de poetas urbanos que, dentre tantas coisas, organizou a Récita Maloqueirista no Espaço Parlapatões e a publicação periódica Revista Não Funciona. Porém, em 2010, o poeta e contista resolveu mudar a chave da literatura para a música, dando início ao Bratislava. E descobriu que o maior desafio era escrever as letras:
“Eu já tinha criado uma intimidade com o formato de conto e de poesia. Escrevi muita coisa de 2006 até 2010 e aí me deparei com um formato diferente, que é o de letra de música, e foi muito complicado. Achei que a intimidade com as letras ia ser um facilitador, mas foi foda; todas as letras que eu escrevia ficavam duronas. ‘Mapa do Deserto’, por exemplo, que tá no ‘CARNE’, eu escrevi e reescrevi um trilhão de vezes até chegar num ponto em que não estranhasse. Levou tempo pra que eu começasse a me sentir um pouco mais à vontade com esse formato, mas até hoje continuo achando minhas letras, tanto as do Bratislava quanto as do Godasadog, meio literárias”, reflete.
Foi através do envolvimento com o Poesia Maloqueirista que Victor Meira lançou seu primeiro livro, “Bemóis” (80 páginas, R$ 20), que reúne alguns dos micro-contos postados ao longo dos anos em seu blog Quadrado Vermelho. O título faz parte da coleção/selo Edições Maloqueiristas que, contemplada pelo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) e com distribuição feita em parceria com a Editora Hedra, chegou em formato de box trazendo 26 publicações, entre inéditos e reedições, com correção e revisão dos poetas Heyk Pimenta e Juliana Bernardo e projeto gráfico de Victor — que também é designer. Em “Bemóis”, o autor buscou inspiração no absurdo e no fantástico para as mini narrativas calcadas na solidão, na confusão e na violência da vida urbana e da religião, frequentemente acenando para o lado obscuro da vida e do ser humano. “Os contos sempre relatam situações estranhas. Por exemplo, o conto que dá título ao livro começa com um diálogo entre deus e o diabo, no qual eles conversam sobre a decadência do cristianismo e a consequência fatal disso: o desaparecimento deles dois do imaginário do povo. Se comparam a Zeus, Poseidon e outras divindades que hoje só ocupam livros de mitologia, e não mais cultos e igrejas”, explica.
Demonstrando habilidade como contador de histórias e pleno domínio da narrativa, o que leva o leitor a eventualmente se frustrar com “Bemóis” é que os contos se encerram rápido demais — quando o leitor se prepara para imergir na história, descobre que ela chegou ao fim. “O editor da Devir disse que a leitura dos micro-contos era frustrante, porque todos têm uma promessa brilhante, uma criação de situação/cenário/personagem que te fisgam rapidinho, e aí, excitado, você veste o escafandro, aquela roupa pesada de mergulho, afivela tudo, rosqueia os encaixes impermeáveis, lacra todas as partes e quando finalmente pula no mar, descobre que era uma piscina de criança (inventei essa metáfora agora, ele se expressou de outra maneira)”, relembra. “Guardei com carinho esse feedback porque acho que o ‘Bemóis’ pode proporcionar essa experiência sim. Mas ele é o que ele é. As histórias dele são curtas, recortes, frutos de um processo que exigia concisão, já que os textos eram escritos para serem lidos em um blog”.
Tendo a música como sua principal atividade no momento e prometendo o lançamento do segundo álbum do Bratislava e um EP do Godasadog ainda para 2015, Victor Meira fala sobre “Bemóis” e literatura na entrevista a seguir:
Queria começar com você contando sobre seu envolvimento com a literatura. Quando você começou a escrever, a levar a sério, quando surgiu seu interesse como leitor?
Comecei a ler por prazer no colegial, quando um amigo me emprestou “O Hobbit” (1937, J. R. R. Tolkien). Foi o primeiro livro que me fascinou a ponto de eu achar que ler era prazeroso, um fim em si mesmo, e não uma obrigação ou um meio pra se obter conhecimento e sabedoria (como muita gente ensina para a gente na infância). Isso em 2002, 2003. Li outras fantasias na sequência, descambei em alguns “Sherlock Holmes”, depois nos contos do Allan Poe e aí comecei a ler de tudo. Os primeiros escritos vieram em 2006, quando eu estava morando em Toronto. Tranquei a faculdade pra fazer essa viagem, morei por quase um ano lá. Trabalhava com construção e marcenaria, e nas horas vagas eu lia muito. Escrever foi um desdobramento dessa experiência, talvez uma resposta aos livros ou à solidão que eu sentia lá. Não era uma solidão ruim, eu gostava. Acho que a gente inventa maneiras de se expressar e de se relacionar com o mundo, mesmo em tempos de solidão.
E que tipo de leitor você é? O que você costuma ler?
Gosto de ler ficções e romances, de preferência escritos a partir do começo do século passado. Acho difícil se conectar profundamente com textos muito antigos. Dos grandões, Cortazar, Borges, Saramago, Huxley, Sartre, Camus, Bukowski. Gosto muito dos livros e quadrinhos do Lourenço Mutarelli, dos quadrinhos do Moebius. Uma descoberta recente foi a russa/americana Ayn Rand. “Fountainhead” me assombrou, soou como uma ideia nova, talvez boa, perigosa. O herói do livro é detestável até você compreender a virtude dele – e isso vai acontecendo aos poucos, devagar.
Você contou que de 2010 pra 2011 você mudou de literatura para a música. Como foi isso?
Eu sempre quis ter uma banda, desde moleque. Não foi uma mudança tão objetiva, nem muito radical, mas comecei a encontrar mais prazer em fazer música do que em escrever poemas ou contos. Talvez isso mude novamente no futuro, não dá pra saber. Comprei um Gianinni Jazz Bass de um amigo que fez um precinho camarada, eu nem estava planejando isso. Ele me vendeu o baixo + um ampli por R$ 400. Meu irmão, Xande, já tocava guitarra fazia uns anos. Aí começamos a brincar de compor e a brincadeira começou a ficar divertida…
Uma coisa interessante é que você admite ter sentido uma dificuldade inicial de escrever letras. Uma vez me pediram pra escrever a letra de música e como eu acho que é necessário ter alguma intimidade tanto com a música quanto com a poesia para funcionar, achei que foi difícil e não gostei muito do resultado, não tinha a minha voz. Como foi esse processo de encontrar a sua voz na composição de uma letra?
Então você sabe exatamente como é. Nas primeiras tentativas, o gigante da autocrítica faz com que as letras fiquem quadradas, muito cuidadosas, normalmente desligadas da cama musical na qual elas estão querendo se deitar. É um processo cheio de receio, buscando critérios que ainda nem existem – e que só vão existir conforme você for compondo, música sobre música. Leva um tempo (às vezes, alguns discos) pra perceber isso, começar a criar um território, um set de critérios, um superego crítico que colabore ao invés de vetar ou amedrontar o espírito criativo. O primeiro release com o qual eu me senti um pouco mais confortável com o resultado da mescla letra/música foi o “Hoje” (2013), do Godasadog.
Muita gente acha que quem escreve é capaz de escrever qualquer coisa, mas nem sempre é assim. García Márquez era um roteirista de cinema medíocre, por exemplo. E há muitas críticas aos livros de Chico Buarque, por exemplo…
O Millôr tem uma frase assim, “o xadrez é um jogo chinês que aumenta a capacidade de jogar xadrez”. Acho que é por aí. Se você escreve letra de música, você vai ser bom em escrever letra de música. O mesmo vale pra poesia, conto, texto publicitário, piada. Minhas piadas são muito ruins, imagine! Só a Livia dá risada delas.
Você pode contar mais sobre o grupo Poesia Maloqueirista e seu tabalho com ele? Como você chegou ao grupo?
Conheci o Berimba de Jesus e o Caco Pontes em 2008, acho. Nessa época eu escrevia mais poemas do que contos, e ao ir atrás de saraus em São Paulo, me deparei com os grupos e récitas que eles frequentavam. Comecei a arriscar uns poemas nos saraus, mas nunca fui bom de récita. É preciso muita cara de pau, uma atitude que só poeta-poeta tem. É uma qualidade muito foda, admiro muito. Dois poetas que são lindos de se ver recitando são o Daniel Minchoni e o Heyk Pimenta. São dois poetões, têm o tipo de voz e de atitude que poeta tem que ter. Minhas tentativas de assumir essa postura eram eu imitando eles, hahaha. Nunca me senti confortável recitando. É sempre uma tremedeira danada.
Falando sobre o “Bemóis”, os textos foram pinçados do seu blog e essa opção pelos mini contos foi algo que, na minha opinião, funcionou bastante. Mas como você vê o fato de os leitores terem cada vez menos interesse em textos mais longos na internet?
Acho que a internet é, em si, um lugar de experiências rápidas, práticas, instantâneas, que satisfaçam os micro-desejos que surgem de segundo a segundo, e mudam a cada instante. Pra um texto longo ser lido na internet ele precisa ser muito relevante, ter algum aspecto polêmico, estar ligado de alguma forma à agenda setting, aos temas “trending” daquela semana, daquele dia. Acho que nenhuma ficção possui esse tipo específico de relevância. É outro tipo de experiência, que talvez pertença mesmo ao impresso.
Saramago uma vez declarou, a respeito do Twitter, que “de degrau em degrau, vamos descendo até o grunhido”. Por outro lado, Jennifer Egan já escreveu um livro inteiro com Tweets. Também há o fator da proximidade entre autor e público proporcionada pela internet, o que ajuda a disseminar o trabalho. No final das contas, você acha que redes sociais ajudam ou atrapalham a fazer literatura e formar leitores?
Ajudam, sempre ajudam. Como a internet atrapalharia? Criando um hábito de ler só coisas rápidas, curtas, tweets, posts? Duvido. Essa preguiça de ler textos longos já existia muito antes das redes sociais. As pessoas precisam de um bom motivo pra encarar um romancezão de 500 páginas, e por meio das redes você consegue descobrir novos autores, compartilhar experiências das suas leituras, convidar amigos para um sarau, pra o lançamento de um livreto, de um zine. É uma ferramenta de ouro especialmente pra escritores iniciantes e independentes.
A poesia e o conto são dois gêneros difíceis, as editoras não costumam apostar muito porque, segundo elas, não vende. Outro dia li uma resenha da Patti Smith para um livro de contos do César Aira e ela mesma comenta que não costuma ler muitos contos, porque eles terminam muito rápido e bate uma sensação de tristeza. O que você acha?
Pois é, isso é verdade. Antes de lançar pela Poesia Maloquerista eu cheguei a enviar o “Bemóis” para algumas editoras. Uma delas me deu um feedback que tem mais ou menos a ver com isso que você falou. O editor da Devir, Douglas Quinta Reis, conversou comigo por telefone e foi muito amável ao dispor quase uma hora do tempo dele pra me falar o que ele tinha pensado do livro, como leitor e como editor. E uma das coisas que ele disse foi que a leitura dos micro-contos era frustrante, porque todos têm uma promessa brilhante, uma criação de situação/cenário/personagem que te fisgam rapidinho, e aí, excitado, você veste o escafandro, aquela roupa pesada de mergulho, afivela tudo, rosqueia os encaixes impermeáveis, lacra todas as partes e quando finalmente pula no mar, descobre que era uma piscina de criança (essa metáfora eu inventei agora, ele se expressou de outra maneira). Guardei com carinho esse feedback porque acho que o “Bemóis” pode proporcionar essa experiência sim. Mas ele é o que ele é. As histórias dele são curtas, recortes, frutos de um processo que exigia concisão, já que os textos eram escritos para serem lidos em um blog. Autores como Charles Dickens escreveram livros volumosos e super prolixos porque ganhavam por cada palavra escrita. Às vezes a circunstância define o caráter técnico de uma produção literária. E isso passa a ser intrínseco à obra. Quer dizer, eu jamais “estenderia” meus contos pra que se adequassem ao formato impresso. Eles são o que são.
Você já chegou a arriscar escrever contos maiores, novelas? Tem maiores pretensões para a literatura?
Nunca escrevi nada muito longo. Mas, claro, tenho vontade.
No ano passado alguns escritores se uniram e organizaram a FLIPobre, um evento literário online, com uma maioria de escritores independentes/marginais, todo feito em formato de hangout. Qual a sua opinião a respeito da praticamente inexistência de espaço para escritores independentes nos grandes festivais de literatura? E quais as alternativas para sobreviver nesse cenário? Uma saída para um autor estreante seria se unir a um coletivo?
Coletivos literários são uma ótima ideia, especialmente os mais ativos, que promovem saraus, récitas, lançamentos. Viram um grupo de troca, de celebração da escrita, de compartilhamento. A Poesia Maloqueirista fazia a Récita Maloqueirista, um sarau aberto no palco do Espaço Parlapatões, onde qualquer um podia subir e compartilhar seus versos. Escritores independentes precisam de espaços pra mostrar sua obra e pra conhecer a de outros autores semelhantes, espaços que promovam troca e crescimento.
Voltando ao “Bemóis”, quando li “O Motorista”, o conto que abre o livro, a minha interpretação foi para o caminho de se imaginar uma sociedade no futuro ao mesmo tempo qualificada e sem muita distinção de classe, em que trabalhos como o de motorista de ônibus seriam valorizados, mas li que seria uma espécie de crítica à super-especialização. Poderia comentar um pouco sobre isso?
Não sei se é uma crítica, no sentido reprovatório, mas um exercício de visão de um futuro possível, no qual o conhecimento super democratizado e super acessível cria profissionais cada vez mais especialistas. O conto é uma projeção utópica, se levarmos em conta as condições de trabalho de um motorista de ônibus no cenário proposto, uma contratação intelectualmente exigente e aprazível, over brandy and cigars. Mas ele se desenrola quase no tom de um deboche sutil, como uma utopia que não crê em si mesma, ou que tem consciência de que tem cara de utopia.
No livro também é bem recorrente as figuras de deus e do diabo, principalmente deste último. Religião é um tema importante para você?
Fui cristão até os 17 anos. Hoje a religião não me interessa mais como prática pessoal, mas continua me interessando muito enquanto tema e material de estudo. Tenho amigos de infância que hoje são pastores, muitos outros que nunca pararam de frequentar a igreja. Meus pais abriram muito a cabeça pra outros conceitos e acabaram criando suas próprias versões, entendimentos ou interpretações da ~verdade~, mas se consideram cristãos. A família da minha noiva é bastante cristã, vão todo sábado à igreja, praticam do modo que aprenderam quando eram crianças. E ao mesmo tempo tenho muitos amigos que, como eu, perderam o interesse pela prática religiosa e tem ideias em comum comigo. Então é um assunto que volta e meia se faz presente no meu cotidiano. Eu fui um cristão seríssimo, estudava a bíblia diariamente com meus pais, conversávamos bastante. É uma herança que carrego comigo.
Falando um pouco sobre música, você tem dois projetos bem conceituados nos seus nichos: o Bratislava e o Godasadog. A música é a sua atividade principal, hoje?
Sim, é a atividade à qual eu mais me dedico. Continuo escrevendo em menor escala e também estudo pintura realista.
E quais são os próximos projetos para as bandas e para a literatura?
2015 é um ano de muitos lançamentos e participações em projetos de outros artistas. O Bratislava está em processo de gravação do segundo álbum da banda, e o Godasadog está em produção de um novo EP, inteiramente produzido à distância (já que Matschulat está morando em Berlin desde o começo de 2014). Para a literatura os planos ainda são nebulosos.
– Renata Arruda (@renata_arruda) é jornalista e assina o blog Prosa Espontânea. A foto que abre o texto é de Rafael Koch Rossi (Divulgação). A ilustração acima é de Victor Meira e está presente no livro “Bemóis”.
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