Para Entender: Butthole Surfers

por Leonardo Vinhas

Se você conhece os Butthole Surfers, é bem provável que eles ocupem um lugar remoto em sua memória: é a banda que teria dado a Daniel Johnston o ácido que o enlouqueceu; são os autores de “Pepper”, cujo clipe rodou um bocado na MTV há mais ou menos uma década; uns malucos que volta e meia apareciam na revista Bizz em matérias que ressaltavam mais sua excentricidade que sua música. Ou talvez você não saiba quem são. Depende da idade e do quanto tempo da sua vida você dedicou a procurar bandas estranhas (anos 1990, lembra?).

Esses texanos fazem por merecer todas as referências acima (inclusive o desconhecimento), e a Bizz, que já os mencionava num longínquo texto da seção Porão em meados dos anos 1980, não estava errada em apontar suas impressionantes idiossincrasias de palco. Mas a loucura – eis aqui um caso onde a palavra não é mera figura de linguagem – ia além das performances e dos vídeos. Havia arte na música que eles criavam – e que talvez não criem nunca mais, já que o último disco de estúdio foi lançado em 2001, e embora nunca tenha sido anunciado oficialmente o fim da banda, é pouco provável que eles voltem a se agrupar.

A história, porém, começa muito antes: mais exatamente, em 1976, quando dois estudantes da Universidade de San Antonio, Gibby Haynes e Paul Leary, se conheceram e descobriram compartilhar interesses: música incomum, escatologia, imagens chocantes e humor negro. Criaram um fanzine para veicular essas obsessões, o Strange V.D. e só montariam uma banda em 1981, na qual ambos assumiam guitarras e vocais, e eram acompanhados pelos irmãos Quinn e Scott Matthews (baixo e bateria, respectivamente), que poucas semanas depois abandonariam o barco.

Usaram vários nomes absurdos até adotarem a singela alcunha (“os Surfistas do Olho do Cu”) com a qual seguiram carreira. Foi um “batismo por engano”: antes de um show, o cidadão que ia apresentar a banda se esqueceu do nome dela (na época era The Inalienable Right to Eat Fred Astaire’s Asshole, ou O Direito Inalienável de Comer o Rabo do Fred Astaire). Por isso, usou o título da primeira canção no setlist como o nome da banda. “Como aquela noite foi a primeira vez em que ganhamos algum dinheiro, decidimos manter o nome. Só que demorou meses até a gente ver a cor de grana novamente”, explicaria Leary em 1993 ao jornalista José Julio do Espírito Santo.

O som explorava as fronteiras entre hardcore e psicodelia, trazendo sementes do noise e do rock alternativo dos anos 1990 (Kurt Cobain era fãzaço). Estavam ali, lado a lado com o Sonic Youth e o Pussy Galore (da qual fazia parte Jon Spencer), mas eram ainda mais anárquicos. Por anos, mantiveram dois bateristas (um deles, King Cofffey, segue com a banda até hoje, compondo, com Haynes e Leary, o núcleo central dos Surfers), que surravam seus kits em pé, usando muitos surdos e ton-tons, ficando entre o tribal e o industrial. Leary exploraria as possibilidades de sua guitarra extrair ruídos até o limite, mas não negava o fato de ser um músico hábil, de formação virtuosa. Aos poucos, ele cantaria cada vez menos, deixando os vocais ao cargo de Gibby, dono de uma voz única, simultaneamente grave e anasalada, entoando scats, gritos, lamentos e vocais pop numa mesma estrofe.

Ao vivo, tudo ganhava contornos mais difíceis de assimilar. Gibby, do alto de seus quase 2 metros de altura, costumava terminar os shows pelado, às vezes com um ramalhete de flores preso (ou enfiado) à bunda; antes disso, provavelmente já teria ateado fogo a um prato de bateria. Filmes surrealistas e cenas de freak shows eram projetados atrás da dupla de bateristas. Durante três anos, contaram com uma dançarina nua (Kathleen Lynch) em suas fileiras, que rebolava, simulava atos sexuais e agressões, e fazia malabarismos e contorcionismos – reza a lenda que, em pelo menos um show, ela e o vocalista teriam transado de fato durante o show.

Lançaram apenas oito LPs (mas vários EPs, ao vivos e bootlegs com inéditas estão disponíveis e há bastante material para download no site oficial e no Youtube), todos bastante diferentes entre si. Os anos gradualmente deixaram o som mais acessível, assim como as apresentações ao vivo iam tornando-se mais contidas. Flertaram com o mainstream no começo dos anos 1990: disco produzido pro John Paul Jones (“Independent Worm Saloon”, disparado o melhor de sua discografia), estiveram entre as atrações do primeiro Lollapalooza, faziam vinhetas para a MTV, eram presença constante em trilhas sonoras de Hollywood. Em 1996, tiveram seu maior hit, “Pepper”, apesar de a letra ser uma espécie de versão violenta, perversa e redneck da “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade.

Entretanto, brigas com gravadoras e com outros colegas de profissão (de Ian MacKaye, do Fugazi, a Nick Cave e todo o R.E.M.), aliados ao abuso de drogas (principalmente de Haynes) sempre mantiveram a banda longe do sucesso massivo, mesmo quando ele era uma possibilidade real. “Weird Revolution”, o último disco de inéditas (2001), não traz nenhum sinal de brilhantismo, apenas algumas faixas corretas, e deixou claro que, como banda, não havia muito mais a mostrar. Os shows foram ficando cada vez mais esporádicos, e desde uma última apresentação em 2011 no Canadá, não se ouve mais falar deles. Haynes e Leary seguem produzindo vários artistas e colaborando em gravações alheias, separadamente.

Não importa. Os Butthole Surfers já fizeram sua história, ultrajante, errática e politicamente incorreta. Como convém à sua imagem, sua trajetória provou-se uma fábula, sem moral ou “final edificante”. Mas escutando essas cinco canções (ou muitas outras, evidentemente),dá para entender porque não houve outra banda como os Surfistas do Olho do Cu.

“Fast (aka The Fart Song)”: Inserido no final do curta em super 8 “Bar-B-Q-Movie” (1988), o clipe traz todas as sandices cênicas que fizeram a fama da banda, enquanto o som exemplifica bem o hardcore dissonante dos primeiros anos.

”Ricky”: Coesão para que? Os Surfers podiam ser botar um baixo à frente, desfilar uma harmonia de tribo indígena em pé de guerra e enfileirar efeitos de guitarra – e ser considerados “pop” e “clássicos” por seus fãs. “Ricky” é um dos grandes “não hits” de “Hairway to Steven”, o disco mais comentado da banda.

“Hurdy Gurdy Man”: O original de Donovan é um clássico folk, com leve psicodelia e apelo radiofônico. Os Surfers tiram o “levemente” e o “folk”, amplificam o “apelo” e mandam solos épicos, vocal “tremido” (de Paul Leary) e arranjos de cordas.

“Goofy’s Concern”: Exemplo perfeito da engenharia de John Paul Jones para “Independent Worm Saloon”: velocidade, peso, e um grito funcionando como refrão. O ex-Led Zeppelin queria que os Surfers soassem mais diretos, e admirava Paul Leary a ponto de convidá-lo para tocar em seu disco “Zooma” e na subsequente turnê. Em resultado, sua produção deu à banda o melhor som de guitarra de sua história.

“Pepper”
Mais afeitos ao pop radiofônico e às programações eletrônicas, os texanos lançaram “Electric Larryland”, seu álbum mais acessível, em 1996. “Pepper” foi o salto mainstream da banda, mostrando a sonoridade que identificaria os singles da última fase produtiva dos Surfers (e também suas faixas para o cinema).

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

Para entender:
– Para Entender: New Model Army -> Extensa discografia que merece ser vasculhada (aqui)
– Para Entender: Los Fabulosos Cadillacs -> Uma das maiores bandas da América Latina (aqui)
– Para Entender: The My Morning Jacket -> Excelentes álbuns e shows delirantes (aqui)
– Para Entender: The Replacements -> Em seu auge, a banda lançou discos perfeitos (aqui)
– Para Entender: Mano Negra -> Uma das bandas mais influentes da França (aqui)
– Para Entender: Black Crowes -> Uma música bela, intensa e pouco acomodada (aqui)

One thought on “Para Entender: Butthole Surfers

  1. Butthole Surfers é doença de primeira. Sequela até a última gota. Harcore noise drone nowave psicodélico. Pra gurizada que não conhece, uma bela e excêntrica banda a se desvendar. Nunca esqueço de “22 going on 23”, do disco Locust Abortion Technician, uma das músicas mais ENCAGAÇANTES que já ouvi. Nela, uma gravação de um programa de rádio (nunca pesquisei para saber se a gravação é verdadeira, creio até que sim) registra uma mulher (“22 anos, indo para 23”, ela diz) confessando ao locutor que, após ter sido atacada sexualmente no último mês de julho, aparentemente pelo próprio marido, tem tido problemas para dormir, sonhos ruins que se repetem e se repetem. Ao fundo, uma base instrumental arrastada e sufocante, com um homem a repetir palavras sobre remédios, tratamentos para depressão, ansiedade, insônia etc. A música vai ficando gradualmente mais corrosiva, enquanto a mulher relata que nada tem conseguido acabar com aqueles sonhos. E que, tão logo o marido entra em casa, ela simplesmente surta, torna-se paranoica e é insultada. E quando pede a ele para fazer uma viagem, qualquer viagem (afinal, ela “adora viajar”), ele simplesmente diz que já fez todas as viagens que gostaria em função do seu trabalho. A música então para, e se escuta apenas o absurdo ruminar de bovinos. Sério, a música é feia e incômoda (eu acho genial), mas acho que algumas bandas e artistas nasceram com esse estranho dom: transformar a escrotidão, os lances e fatos mais estúpidos e horripilantes da vida, em alguma espécie de arte. É feio, mas é bonito, saca?

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