Texto e fotos por Marcelo Costa
Na segunda metade dos anos 00, a música inteligente brasileira sofria com a perda de espaço em rádios e TVs, cada vez mais voltados para a venda de publicidade (através de jabás) e menos para a meritocracia, e a falência do modelo de gravadoras, que durante décadas ampliou o alcance dos artistas ditando rumos musicais, modas e comportamentos, mas que neste começo do século passou a trabalhar no modo xerox: detectar algum movimento surgido em meio ao público e reproduzir dezenas de artistas para abastecer esse mercado, um ato ao mesmo tempo de entrega de pontos e pura canalhice artística que acabou soando como uma vergonhosa lápide para uma indústria que já foi decisiva nos rumos da música.
Foi nesse cenário de terra arrasada (sem apoio de rádios, TVs e gravadoras) que um boom de festivais independentes surgiu (e se uniu) em vários cantos do Brasil propondo-se ser a saída para novos artistas, pois poderiam se conectar diretamente com o público. Poderiam. Colocando a política à frente da música e se esquecendo da importância do público, um grande número destes festivais desapareceu sem deixar saudades, e os que ficaram ou já estavam sedimentados quando o movimento surgiu (como os respeitados Abril Pro Rock, de Recife, surgido em 1993, e Goiânia Noise, cuja primeira edição aconteceu em 1995), ou perceberam que não é possível produzir um festival sem olhar e/ou se interessar pelo público.
O Festival Se Rasgum, de Belém, cuja primeira edição aconteceu em 2006, em meio ao boom de festivais independentes nacionais, é um distinto integrante do segundo grupo, tendo sempre em sua programação algum nome de destaque que consegue atravessar a barreira do independente e se conectar com uma parcela da massa, e traze-la para um ambiente também repleto de novos artistas. Já passaram pelo Festival Se Rasgum desde 2006, entre tantos artistas, nomes como Mundo Livre S/A, Cordel do Fogo Encantado, Plebe Rude, Nação Zumbi, Pato Fu, Lobão, Leoni, Bidê ou Balde, Mallu Magalhães, Jards Macalé e Tom Zé, nomes que ultrapassam a barreira do indie e conseguem atiçar a curiosidade de um novo (velho) público.
Mantendo a receita de sucesso, a programação 2014 reuniu nomes que já têm um público fiel, como Nei Lisboa, Silva, Gerson King Combo, Arnaldo Antunes, Vanguart (que tocou na primeira edição do Se Rasgum, em 2006, e retornou em 2014 para ser coroado como um dos shows mais cantados pelo público nesta edição) e os ídolos locais Félix Robatto e Felipe Cordeiro, com novas promessas da música brasileira (Camila Honda, Aeroplano, Molho Negro, Turbo) e artistas de trajetória respeitada como Acabou La Tequila, Pelvs, Violeta de Outono e Gangrena Gasosa, numa mistura que tinha tudo para dar certo. E deu.
Com 27 atrações no line-up divididas em quatro dias e em três locais diferentes, o Se Rasgum 2014 deu a partida no reformado Teatro Margarida Schivasappa com a delicada Camila Honda mostrando seu recém-lançado primeiro disco, produzido por Felipe Cordeiro. Ainda que o som não estivesse perfeitamente equalizado (problema perceptível nos três shows no teatro), Camila se saiu bem numa performance que remete a uma Fernanda Takai (algo que a ótima cover de “Twiggy,Twiggy”, do Pizzacato 5, no final do show, aproximou ainda mais) com leve e charmoso acento brega (que a diferencia). A deliciosa “Fora de Área” mais as covers de “Sabiá” (Luiz Gonzaga) e do hit local “Aparelhagem de Apartamento” (Molho Negro) foram destaques.
Ex-integrante (e principal compositor) d’A Euterpia, nome respeitado no cenário local que encerrou recentemente as atividades, Antonio Novaes foi o mais prejudicado com o som embolado do teatro, pois suas texturas musicais exigem mais cuidado da mesa de som, o que não aconteceu. De camisa vermelha aberta no peito e regendo a banda (metais, backing vocal e baixo) no teclado, Novaes mostrou as canções de sua estreia solo, “Antônimo”, e uma sonoridade que o aproxima de Arrigo Barnabé (como na deliciosa “Tenha Mais Cuidado”), ainda que haja mais Brasil em suas canções, como exibe “Do Tamanho do Mundo”, que fechou um ótimo show com Camila Honda voltando ao palco e dividindo backings com Cacau Novais e um break exageradamente longo e provocante.
Principal nome da primeira noite, Nei Lisboa foi saudado calorosamente pelo público paraense, que recebeu com euforia, ainda nos primeiros acordes, músicas como “Telhados de Paris”, “Baladas” (a mais cantada da noite) e “Rima Rica Frase Feita”, três canções de “Hein?!”, álbum de 1988. O público pediu (Nei fez o bis no meio do show) e foi atendido: “Faxineira”, “Deixa o Bicho” (“Faz tanto tempo que não toco essa que nem sei se lembro”, confidenciou), “Babalu” e “Por Aí” fizeram a felicidade da audiência que lotou o teatro, e ainda ouviu “Verão em Calcutá”, “Bar de Mulheres”, “Pra te Lembrar” e várias canções novas, do álbum “A Vida Inteira”, de 2013, como a excelente “No Boleto ou no Cartão”, encerrando a primeira noite do Se Rasgum.
O segundo dia do festival, gratuito, aconteceu na agradável Estação das Docas, e foi aberto com o contraditório Ultranova, prog tardio que de novo não tem nada. Na sequencia, os cariocas da Biltre (um improvável cruzamento de Inimigos do Rei com Comunidade Nin-Jitzu) divertiram o público juntando batida dançante e letras engraçadinhas como a de “Churros”, cantada pelo público entre risos: “O amor é como um churros / É tão bom no primeiro pedaço / Mas depois é um esforço danado / Pra espremer o docinho do fundo”. Ainda houve tempo para uma homenagem ao biscoitinho de castanha do Pará, para uma canção inspirada em uma manchete do jornal Meia Hora e uma boa cover de “Piranha”, de Alípio Martins.
Apesar da diversão das piadas em forma de música, o segundo dia do festival começou de verdade quando o quarteto potiguar Camarones Orquestra Guitarrística pisou no palco com Anderson Foca e Fausto apostando nos riffs ásperos e a baixista Ana Morena dando um show particular no quesito empolgação. Para o final, Camillo Royale (Turbo) e João Lemos (Molho Negro) acrescentaram mais duas guitarras à formação. Foi bonito. Encerrando de forma empolgante a noitada, a Orquestra Contemporânea de Olinda fez todo mundo dançar com “Ciranda de Maluco” e “Boneco Gigante” e antecipou a farra carnavalesca com “Sinha Pureza” (de Pinduca) e marchinhas. Terminaram no meio do público, aplaudidíssimos.
Os dois dias mais badalados do festival aconteceram no Hangar, com dois palcos e uma maratona de 20 atrações que atravessou a madrugada – principalmente na primeira noite, prejudicada por um atraso de quase duas horas. Na sexta, as locais Aeroplano e Meio Amargo foram boas surpresas. Lançando seu segundo disco, a Aeroplano exibe um ótimo trabalho de guitarras barulhentas fazendo a cama para letras acima da média – embora ao vivo o vocal, anasalado a lá Paulo Ricardo, deixe o conjunto um pouco datado. Já a Meio Amargo, projeto de Lucas Padilha que conta com João Lemos (Molho Negro) na guitarra, apostou no pop rock folk blues esbarrando em alguns clichês, mas mostrando potencial no palco externo.
No Salão, a hilária banda de saravá metal Gangrena Gasosa chegou intimando: “Se Deus é 10, o Satanás é 666”. O show foi uma porradaria divertidíssima, que colocou o sexteto carioca entre os destaques do festival, e fez de canções como “Não Entendi Matrix”, “Quem Gosta de Iron Maiden também Gosta de KLB” e “Chuta Que é Macumba” bordões na noite paraense. A empolgação foi tanta no show do Gangrena que eles poderiam emprestar um pouco de animação para o mítico Acabou La Tequila, seleção indie (Kassin, Renatinho, Melvin e Nervoso) que tocou um punhado de hinos do underground (“Kung Fu”, “Flaming Moe”, “Pra La em Tijuana”) com o freio de mão puxado. Foi bom, mas podia (deveria!) ser muito melhor.
Após perder uma apresentação bastante elogiada da Aldo The Band (importante salientar que a área de alimentação estava muito bem servida), o próximo show da lista era de Félix Robatto, o ex-La Pupuna, que mostrou nada menos que nove músicas de seu ainda inédito álbum solo, que, pelo apresentado no show, deve aparecer em diversas listas de melhores do ano. “Cerveja”, de clipe recém-lançado, e a participação de Lia Sophia, foram os grandes momentos da apresentação. No Salão, uma imensa plateia aguardava ansiosamente Silva, que fez um bom show antecipando a comoção que aconteceria com o Vanguart no mesmo palco: cada canção vinha precedida do grito emocionado da plateia, que cantou praticamente tudo.
Quem viu o show inteiro do Silva perdeu boa parte da apresentação do lendário Gerson King Combo, um dos ícones da soul music brasileira, que aos 69 anos continua colocando a galera pra suingar com versões de canções de Tim Maia, James Brown e hits próprios como “Mandamento Black” e seu irresistível refrão: “Eu te amo, brother”. Já havia passado das 3 da manhã quando o Vanguart entrou em cena, mas a grande maioria do público não arredou o pé, aguardando os cuiabanos e fazendo um coral arrepiante mesmo nas canções menos conhecidas do disco “Muito Mais Que O Amor” (2013), mostrando o excelente momento de uma das raras bandas dos anos 00 que já integram o primeiro escalão do rock nacional.
O quarto e último dia do Festival Se Rasgum 2014 mostrou um lado (pesado) de Belém bastante interessante com o Molho Negro fazendo uma grande apresentação no salão e a Turbo, bastante prejudicada pelo som, mostrando força no palco Deck. Com disco novo na praça, o trio Molho Negro mostrou domínio de palco, mas esbarrou na confiança excessiva, que fez com que o final do show perdesse em empolgação para o começo (vale dar uma sacada na lei do W defendida por Paul McCartney). Já o quarteto Turbo, comandando por um empolgado Camillo Royale, sofreu com o som, que não saia das caixas como parecia estar soando no palco: a banda quebrando tudo lá em cima, e as guitarras soando baixo entre a galera. Ainda assim foi possível perceber que há coisa boa ali para quem gosta de rock sujo.
Com apenas Fabio Golfetti da formação original, mas soando exatamente o mesmo de discos clássicos do rock nacional como “Violeta de Outono” (1987) e “Em Toda Parte” (1989), o Violeta de Outono abriu a noite com dois hinos (“Dia Eterno” e “Declínio de Maio”), tocou canções de seus discos mais recentes (“Volume 7”, de 2007; e “Espectro”, de 2012), e chamou ao palco um convidado especial, o herói local Pio Lobato, que assumiu a segunda guitarra numa poderosa versão de “Tomorrow Never Knows”, dos Beatles, e em “Outono”. Não resistindo ao apelo cativante do público, o Violeta ainda emendou mais uma música em um dos raros bis do festival. O show terminou com Pio agradecendo: “Estou aqui como fã. E é do caralho”.
Pausa para alimentação (o que custou o show de Jaloo, já que, devido à posição errada dos bares no lado externo do festival, estava complicado entrar no Deck após qualquer show iniciado) e, na sequencia, os cariocas da Pelvs num baita show de (às vezes duas, a maioria três, de vez em quando quatro) guitarras urrando de forma estridente. O repertório começou com um passeio pelo “presente“ (“Keep Your Music Away”, do álbum “Anotherspot”, de 2006, mais “Backdoor”, “She’s Never Had a Drink” e “Freddy Car 311”, do disco “Peninsula”, de 2001) e terminou como uma celebração dos 20 anos do disco de estreia da banda, com três faixas de “Peter Greenaway’s Surf” (1994) e destaque para “Surferena”, num arranjo que chocava a levada suave de baixo e violão com o barulho da bateria e das guitarras. De arrepiar.
Os argentinos da Él Mató a un Policía Motorizado fizeram um show de hits undergrounds portenhos no Se Rasgum, e quem esperava pelos maiores clássicos da banda deixou o festival sorrindo e rouco ao gritar (em meio ao volume alto das guitarras) as letras de “Amigo Piedra”, “Mi Proximo Movimiento”, “Chica Rutera”, “Mas o Menos Bién” e “Mujeres Bellas y Fuertes”. Do Mississippi norte-americano, o trio noise Bass Drum of Death (duas guitarras e bateria), na estrada desde 2008, surpreendeu o público paraense com uma apresentação consistente, que ainda carece de personalidade, mas ganha pontos no quesito empolgação. “Crawling After You”, da trilha do game GTA V, foi celebrada pelo bom público.
Na reta final, Felipe Cordeiro, acompanhado do pai Manoel Cordeiro e jogando em casa, fez uma apresentação consagradora que animou até o pessoal da “pipoca”, que curtia o show da rua dançando agarradinho em canções como “Lambada com Farinha”, “Legal e Ilegal”, “Problema Seu”, “Tarja Preta” e as covers para “Marcianita” e “Alma Não Tem Cor”. Mostrando versatilidade, Pio Lobato subiu ao palco para encorpar o carimbó “Fogo na Morena” e encerrar um grande show. Alta (bem alta) noite já se ia quando Arnaldo Antunes subiu ao palco para encerrar a 9ª edição do Festival Se Rasgum no show mais concorrido dos quatro dias do evento, que ainda teve Felipe Cordeiro no palco e canções do Titãs em um set list mais dançante, que funcionou muito bem como encerramento do festival.
Às vésperas de completar 10 anos, o Se Rasgum se firma como um dos principais festivais da região Norte apostando em grandes nomes da música brasileira sem esquecer que é preciso renovar o cenário, e o caso Vanguart é o mais emblemático, já que a banda foi uma atração do primeiro ano do festival, em 2006, e fechou com requintes de emoção a edição 2014 do evento. Se a mescla de artistas na escolha do line-up merece aplausos, talvez seja oportuno analisar a viabilidade de um line-up tão extenso, já que os atrasos nas duas noites prejudicaram o público. Será realmente necessário juntar 10 bandas num mesmo dia do festival? O público aproveita mais do festival com tantos artistas, ou o cansaço acaba cobrando seu preço no final da madrugada?
Ainda assim, com muito mais acertos do que erros, o Festival Se Rasgum segue um modelo inspirador, que abre porta para as novidades (independente do estilo, importante salientar) sem renegar quem já está estabelecido. Quem ganha com isso é o público, é a cidade de Belém, que tem no calendário anual um festival que, além de valorizar a boa música, cria um ambiente agradável para os frequentadores e movimenta a cena local. Que a fórmula continue sendo lapidada e que o festival continue de olhos e ouvidos abertos para as coisas boas que a música proporciona. Não é nada fácil manter um projeto cultural no Brasil por 9 anos, então que as comemorações para o Festival Se Rasgum Ano 10 comecem já. Belém merece.
TOP 5 do Festival Se Rasgum 2014
1° – Felipe Cordeiro (19 pontos – 4 votos)
2° – Gangrena Gasosa (11 pontos – 3 votos)
2° – Jaloo (11 pontos – 3 votos)
4° – Nei Lisboa (8 pontos – 4 votos)
5° – Él Mató a un Policía Motorizado (6 pontos – 2 votos)
QUEM VOTOU
Adriano Costa, do blog Coisa Pop (leia a cobertura do festival)
1 – Gangrena Gasosa
2 – Violeta de Outono
3 – Nei Lisboa
4 – Molho Negro
5 – SILVA
Iuri Freberger, produtor
1 – Felipe Cordeiro
2 – Jaloo
3 – Él Mató a un Policía Motorizado
4 – Nei Lisboa
5 – Violeta de Outono
Kamille Viola, do jornal O Dia
1 – Felipe Cordeiro
2 – Jaloo
3 – Felix Robatto
4 – Gerson King Combo
5 – Gangrena Gasosa
Marcelo Costa, do Scream & Yell
1 – Gangrena Gasosa
2 – Felipe Cordeiro
3 – Él Mató a un Policía Motorizado
4 – Nei Lisboa
5 – Orquestra Contemporânea de Olinda
Tathianna Nunes, da Revista O Grito (leia a cobertura do festival)
1 – Felipe Cordeiro
2 – Aldo The Band
3 – Jaloo
4 – Félix Robatto
5 – Nei Lisboa
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Leia também:
– Convidados elencam seus Top 5 do Festival Se Rasgum, Belém, 2011 (aqui)
– Se Rasgum 2011 cumpre com louvor a função de apresentar o novo ao público (aqui)
– Se Rasgum 2010: Belém tem potencial para se firmar como pólo musical (aqui)
– Se Rasgum 2009: Festival une sem radicalismos variadas vertentes musicais (aqui)
Com isso, eu digo: Parabéns Se Rasgum. Belém merece!
Bem pontuado os acertos e erros, pena que vc perdeu duas ótimas apresentaçoes (Aldo the Band e Jaloo) os conheci no festival, merecem reconhecimento. Levantaram a galera fizeram um show de nivel alto. 🙂
Que lei do W é essa?
Gustavo, acho que é do livro “A Intimidade de Paul McCartney”, do Howard Sounes (falo rapidamente sobre ele aqui: https://screamyell.com.br/blog/2012/07/19/a-intimidade-de-paul-mccartney/)
A “lei” do W é algo assim: um show tem que começar bombástico, dar um leve caída, crescer novamente no meio, dar outra leve caída e terminar bombástico. Como o desenho da letra W. Mais ou menos isso.
Cara, eu preciso ver um show da Gangrena Gasosa, posso imaginar o quanto deve ser insano e divertido. Bom eles terem conseguido tocar sem serem expulsos do festival por “mexer com energias muito pesadas”, já que até de festival de death metal foram banidos com essa alegação rrsss