por Marcelo Costa
A vida não anda sendo muito cordial com Morrissey nos últimos dois anos. Em janeiro de 2013, o cantor foi internado em Detroit e diagnosticado com úlcera hemorrágica, sendo obrigado a cancelar toda sua turnê. Em março, nova baixa no hospital, desta vez para cuidar de seus dois pulmões, que acusavam pneumonia. A terceira internação aconteceu em junho deste ano, quando Morrissey desmaiou após um show em Boston devido a uma infecção respiratória. Não é à toa, então, que o tema morte permeie a maior parte das 18 canções (12 na versão tradicional, 18 na edição deluxe) que compõe “World Peace Is None of Your Business”, seu décimo disco solo (o primeiro em cinco anos).
Morrissey, desde sempre, segue uma constante em sua carreira: mudanças bruscas de sonoridade de um álbum para o outro (uma olhada detalhada em sua discografia deixa isso bastante claro), e se o disco anterior, “Years of Refusal” (2009), trazia as guitarras sujas de Jesse Tobias em primeiro plano, “World Peace Is None of Your Business” aposta na delicadeza instrumental, mas não só: há um acento world music (ambientado na sonoridade tradicional do bardo) que se espalha por boa parte das canções buscando casar as melodias com o olhar de Morrissey resgatado de suas andanças por esse mundo velho sem porteira (aliado a um manual de ideais clichês que, ok, precisam ser ditos, mas não deixam de ser clichês).
Duas canções do disco levam nomes de lugares (“Istanbul” e “Scandinavia”) enquanto outras citam cidades espanholas (“The Bullfighter Dies”), lugares franceses (“Kiss Me a Lot”) e países em que a pobreza é visível: “Brazil, Bahrain, Egypt, Ukraine”, lista Morrissey na faixa título (e primeiro single), completando: “So many people in pain”. Na canção, aberta por mais de 30 segundos de percussão, Morrissey parte para o ataque: “Trabalhe duro e pague docemente seus impostos: nunca pergunte por que” e “A polícia irá paralisá-lo com suas armas: é pra isso que o governo serve” até concluir de forma provocativa: “Cada vez que você vota, você apoia o processo”. Jesse Tobias sola absurdamente sobre uma base esparsa e quase mântrica.
A segunda canção, “Neal Cassady Drops Dead” (que também cita Allen Ginsberg nominalmente) é uma das duas melodias assinadas pelo tecladista Gustavo Mansur no álbum (outras cinco levam o nome do fiel escudeiro Boz Boorer; Jesse Tobias também assina cinco). Mansur faz um solo de violão flamenco no meio da canção, cuja letra questiona (após elencar doenças no estilo “O Pulso”, dos Titãs): “Vítima ou aventureiro: quais dos dois você é?“. O violão flamenco de Gustavo retorna (ao lado de acordeom!) em “Earth Is the Loneliest Planet” (num resultado muito melhor) com Morrissey sentenciando: “Os seres humanos não são lá muito humanos”.
No grupo de canções “diferentes” ainda se encaixa a épica “I’m Not a Man”, com quase oito minutos de duração (um minuto e meio de introdução angustiante e silenciosa que o produtor quis cortar, mas Morrissey manteve) e um crescendo grandioso que deve soar muito bem ao vivo. Na letra (uma das mais provocativas do disco – e um das melhores), Morrissey lista arquétipos de masculinidade (Don Juan, Casanova, atletas de hóquei, homens das cavernas, virilidade, matar e comer animais, câncer na próstata) para concluir: “Se isso define ser homem: eu não sou um homem”. Com abertura de trompete, a espanhola “The Bullfighter Dies” lista cidades espanholas em que a tourada é idolatrada, enquanto o vocalista canta: “Ninguém chora quando o toureiro morre porque todos nós queremos que o touro sobreviva”. Será?
A ironia, tão típica de Morrissey, soa pesada, raivosa e até séria em “World Peace Is None of Your Business” – como era de se esperar após tantas visitas a hospitais. Ele não parece soar cínico como outrora nem quando diz para seu par “beija-lo muito” seja no “Mausoléu da Bastilha, num curral, no jardim de uma igreja ou no quintal de sua mãe” durante a excelente “Kiss Me A Lot”, uma das canções mais pops do álbum (com trompete no arranjo e solo metalizado de guitarra), e uma das melhores. Outro exemplo é “Kick the Bride Down the Aisle”, com backing vocal de Kristeen Young, harpa no arranjo e Morrissey detonando o matrimônio (de forma misógina): “Chute a noiva do altar e não se engane: é o melhor que você pode fazer para o bem de todos / Pois até vacas no pasto sabem mais do que sua noiva no altar”.
O lado mais pesado (tematicamente) do álbum traz a canção de levada indie (na linha do Belle and Sebastian) “Staircase at the University”, cuja letra narra a história de uma menina tão pressionada a ter sucesso que opta por se jogar na escadaria da universidade “partindo a cabeça em três partes”. Já “Istanbul” (com a bateria buscando reproduzir o caos de barulhos da cidade) flagra um pai reconhecendo o corpo do filho em um caixão enquanto a acústica “Mountjoy” (nome de uma prisão localizada no centro de Dublin) cita o romancista irlandês Brendan Behan e define (de forma bastante óbvia): “Todos nós perdemos: ricos ou pobres, todos nós perdemos”.
Essa obviedade (de certa forma até então rara nos textos de Morrissey) já havia sido atestada na faixa título, quando ele acusa a classe dominante dizendo que “os ricos devem lucrar e ficar mais ricos / e os pobres devem ficar mais pobres”. Outro sinal: “Todos os melhores já morreram”, ele canta em “Oboe Concerto”, a faixa que encerra a versão tradicional do álbum, para concluir (de forma brilhante): “A geração mais velha já tentou, suspirou e morreu, o que me leva à sua fila local”. Na climática e teatralizada “Smiler with Knife”, ele avisa: “Pressione a lâmina contra a minha pele (…) Estou farto da vida (…) Sexo e amor não são a mesma coisa”.
Entre as faixas extras, “Scandinavia” (que integrou o set list de alguns shows da turnê sul-americana do cantor em 2012) é Morrissey em sua mais completa essência, uma pessoa que pode odiar um lugar em um minuto, e ama-lo no minuto seguinte: “Eu estava entediado em um fiorde e amaldiçoei o coração e a alma da Escandinávia: deixe que as pessoas queimem; deixe que seus filhos chorem e morram em asilos de cegos. Mas então você veio e estendeu sua mão e me apaixonei por você e pela Escandinávia” (há como não rir mesmo com o tom melodramático da canção?).
A suicida “One of Our Own” narra a história de uma pessoa que perdeu seu par (“Ele morreu salvando a minha vida”) e quer ir ao seu encontro (“Me dê a arma. Eu te amo e não faço trabalho pela metade”. Em “Forgive Someone”, o personagem avisa: “Se você perdoar alguém, vou cortar minha própria garganta”. Com introdução de cabaré dos anos 30, “Art Hounds” atualiza “Paint a Vulgar Picture” de forma cruel (como não poderia deixar de ser) enquanto o personagem oferece uma ajuda (“Quando você não puder suportar o mundo real, pegue minha mão”) que não pode dar (“Tomo quinze comprimidos para dormir e quinze para ficar acordado”).
“World Peace Is None of Your Business” foi gravado em Saint-Rémy-de-Provence, na França, local imortalizado por Van Gogh em quadros como “A Noite Estrelada”, e produzido por Joe Chiccarelli, que já havia trabalhado com Strokes e Alanis Morissette (a provável ligação é o guitarrista Jesse Tobias, que também tocou na banda de Alanis) e se surpreendeu com a dedicação do cantor: “Eu não tinha ideia de que ele se envolveria tanto no processo”, contou o produtor nesta entrevista. “Quero dizer em todos os aspectos… até na mixagem. Mesmo quando não estava no estúdio, ele me enviava uma mensagem tipo, ‘Em dois minutos e 32 segundos desta canção, por favor, traga o violão para a direita”.
As 18 canções de “World Peace Is None of Your Business” mostram um Morrissey mais verborrágico do que o habitual (talvez no momento mais denso de sua carreira). Chega a ser um crime da gravadora não incluir as letras na versão simples do disco, e o fato do cantor declama-las em vídeos oficiais (sob o olhar e atenção de mulheres como Nancy Sinatra e Pamela Anderson) torna ainda mais óbvio (como se precisasse) o valor da palavra escrita para este homem, um dos poucos na música pop atual cujas letras merecem alguma reflexão (concordando ou não com sua opinião). Ame ou odeie, Morrissey está mais vivo do que nunca e lançou um dos álbuns mais intensos de sua carreira.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Leia também:
– Discografia comentada: todos os discos de Morrissey (aqui)
– Morrissey ao vivo no Benicàssim, 2008: “Tudo é possível” (aqui)
– Morrissey ao vivo em Buenos Aires, 2004: “Eu sou Jean Cocteau” (aqui)
– Morrissey ao vivo em Buenos Aires e Rosário, 2012: “Estranhamente depressivo” (aqui)
– As duas cerejas do bolo “Greatest Hits”, de Morrissey (aqui)
– “Ringleader Of The Tormentors”: um Deus da música pop adulta (aqui)
– “You Are The Quarry – Special Edition”: mais nove faixas inéditas (aqui)
– “Mozipedia”: uma enciclopédia sobre Morrissey e os Smiths (aqui)
Não achei a letra de Kick the bride misógina não. Na minha opinião, ele só tá falando de algo que acontece. Só tá contando uma história.
Também achei misógina e o trecho em que ele diz que a noiva só quer um escravo também soa ridiculo. Há outras formas de atacar a instituição casamento (Cobain se saiu bem em “Breed”) do que dizer que o sonho de uma mulher em casar faz dela uma pessoa burra e o de ter uma empregada faz dela uma pessoa aproveitadora. Não é uma história, é um estereótipo.
a misoginia do Morrissey é completamente justificada, mas aí vão dizer que eu sou preconceituoso, e todo mundo acha pelo em ovo onde quer. Morrissey é coisa seríssima!
quanto ao disco eu brinquei lá no twitter outro dia dizendo que achava que o Morrissey tava fraquinho porque não come carne, mas a verdade é que fazer um disco melhor que o Years of Refusal não é fácil. e com boa vontade dá pra encaixar de cara Kiss Me Alot, Bullfighter Dies e Earth num top 10 da carreira.
Primeiro – a letra não é misógina
Segundo – o ódio NUNCA é justificável
Terceiro – eita
Quarto – falando do que realmente importa aqui, o disco é muito bom e a produção, impecável
Primeiro: a letra é misógina… para mim, para a Joana e para o eder (creio eu pela opinião dele). Você (e qualquer pessoa) tem todo o direito de não achar misógina, Lor, mas daí querer convencer as pessoas na insistência fica difícil. Ainda mais que entre 1390 palavras que escrevi, tenha sido essa que você quis destacar. O engraçado, porém, é você dizer que o “ódio nunca é justificável” justamente sobre um cara como Morrissey, que vai de extremos absurdos (“Se você perdoar alguém, eu corto o meu pescoço com uma faca”) que, sim, acabam formando a persona que todos admiramos. Se não existisse ódio no mundo, dificilmente Morrissey existiria. E todas essas contradições fazem Morrissey ser Morrissey.
Ansioso para ouvir este álbum, é realmente um crime não conter as letras no encarte, ainda mais que Morrissey lançou estes vídeos declamando estas mesmas letras…
Poxa, não tava querendo convencer ninguém na insistência não. É que a opinião do Eder de que a misoginia é justificável bateu aqui como um soco; o que eu disse não tem nada a ver com o Morrissey. E talvez o Eder também nem tenha dito o que eu entendi… Bom, em nenhum lugar da letra eu tenho a impressão de que o Moz esteja se referindo a todas as mulheres, então eu mantenho minha opinião. 🙂
Hehehe, tá bom, Lor. 🙂
Mac, gosto do modo como você, em repetidos textos sobre Morrissey, tem destacado o valor do homem como letrista. Num mundo no qual 99,9% da música pop não diz nada sobre nada, é sempre importante reconhecer que Morrissey, concorde-se ou não com o que ele diz, sempre foi um letrista acima da média e interessante. Sim, ele (como 99,9% da música pop) falou sobre “amenidades” como pés na bunda, o desespero do telefone que nunca toca, a inadequação juvenil (mas sempre com muito mais classe e sensibilidade que a média); bem como de coisas mais “intelectuais” e “sérias” como política, racismo, economia, comportamento. Em suma, um cara (solo ou com smiths) que sabia dar alguma profundidade a uma boa e velha harmonia pop seguida de estrofes. Quanto ao lance da misoginia, sempre se manifestou na obra: basta lembrar (exemplo emblemático) de pretty girls makes graves e sua perda de fé nas mulheres (sempre achei muito interessante como a canção inverte os tradicionais papéis: o homem é presa; a fêmea, predadora e ardilosa). Mas, qualé, a decepção da “persona” Morrissey nunca se reduziu às mulheres, tem pra todo mundo: abarca boa parte da humanidade e suas vidas (amantes, pais, professores, patrões, empregados, realeza, Djs, gravadoras etc etc etc)KKKKKKKKKK. Pro cara, “a terra continua o lugar mais solitário de todos” ;). Mas o importante, e triste, é que letristas como ele tem se tornado cada vez menos frequentes (pelo menos pra mim – não a toa, tenho ouvido mais música eletrônica e “abstrata-ambient-chame coomo quiser” do que nunca). Quem se acostuma com Morrissey e Joe Strummer, não engole qualquer coisa pelos ouvidos 🙂
Ainda tenho que ouvir esse novo, esse parece ser mais variado. Gostei do anterior mas achei ele meio rock pesado demais pro estilo do Morrissey.
Falando em letras, so ultimamente percebi que What Difference Does it Make? é sobre um homossexual dar em cima de um hetero.
“Que diferença isso faz?”
“but now you know the truth about me, you won’t see me anymore, but I’m still fond of you”